Para compreender isto é preciso contemplar, ainda que superficialmente, a grosso modo, como se diz, a maneira como o povo concebe as “divindades”. Cada qual tem um papel bem definido no plano universal, dentro do catolicismo popular, ainda que possam contrariar as pregações oficiais.
Assim, sob o nome de “anjos”, por exemplo, se congregam todas as castas da corte celeste: anjos (propriamente ditos), arcanjos, serafins, querubins, tronos, principados, potestades e dominações. O povo os considera mensageiros de Deus, entidades puríssimas que louvam o Criador dia e noite e cumprem o seu mandado. São criaturas divinas que surgiram com esse objetivo. Não encarnam. Nunca foram gente. Sempre viveram no céu. O anjo da guarda é um deles, especialmente designado para cuidar de um indivíduo, durante toda a vida terrena.
Os santos são diferentes. Foram homens e mulheres, tiveram carne, cometeram erros e acertos, fraquezas e qualidades perpassaram em suas vidas, mas, ingressando numa vivência religiosa, caminharam rumo à santidade, superando os pecados terrenos e alcançando a glória, antecipadamente ao juízo final. Tornaram-se exemplos de vida cristã a serem seguidos e mediadores entre Deus e os homens, bem próximos, porque também foram como nós. Conhecem nossos sentimentos porque de alguma forma um dia os tiveram também. São ainda protetores de cidades das quais são padroeiros. Tem também seu padroado em situações específicas ou ainda sob certas profissões. Assim, por exemplo, Santa Apolônia age contra dores de dentes e infecções bucais, sendo também padroeira dos dentistas; São Sebastião protege contra fome, peste e guerra, e daí por diante. São capazes de operar milagres, conceder graças, aliás, condição para a beatificação e canonização. Sua popularidade é tal que ao povo não basta as centenas de santos já existentes, pois também cria os seus, embora não reconhecidos oficialmente pela Igreja. Esta situação porém permite uma leitura crítica, ao avesso, ou seja: o povo “canoniza” novos santos que viveram próximos, na mesma cidade, região ou comunidade, conheceram de perto sua peleja ou foram parte dela, como Frei Damião, Padre Cícero, Odetinha, Nhá Chica, Manuelina de Coqueiros, Jovem Desconhecida, etc., porque as pessoas sentem necessidade de se verem representadas por eles, já que muitos dos santos oficiais nada significam para elas em termos identitários.
Nossa Senhora sob as mais diversas invocações e títulos, tem no imaginário popular um papel semelhante ao dos santos, conquanto mais exacerbado pelo respeito extremo que merece pela condição de Mãe de Jesus e por sua gravidez especial, o dogma da Imaculada Conceição. É a Mãe da Humanidade, carinhosamente cantada e louvada. Sua força é maior, pois se é Mãe dos viventes, também é dos santos, que na hierarquia estão abaixo dela. Foi coroada pela Santíssima Trindade e está ao seu lado. É a medianeira entre os homens e Cristo.
Quanto à Santíssima Trindade, forma católica dogmática, a função do Pai e do Filho são bem claras. Deus é o Senhor, o Pai, o Onipotente Criador de tudo e de todos, o Senhor do Universo, acima de qualquer coisa, o único a quem devemos adorar, a perfeição absoluta. Seu Filho, Segunda Pessoa da Trindade, é o verbo encarnado, a fonte anunciadora da doutrina, o Salvador.
Ora, recapitulando sem discussões teológicas: anjos, santos, Maria, Deus e Jesus, todos tem na mentalidade popular um papel muito claro. A função de cada um é bem definida no plano universal. Seus atributos são lógicos, telúricos e indiscutíveis. Mas e o Espírito Santo?
Tudo em torno dele é mistério. As escrituras não dizem muito. Os estudos pneumatológicos são praticamente restritos aos pesquisadores e oradores sacros. Sua linguagem é inacessível para o leigo. Os sacerdotes não conseguiram incutir no seio da população esclarecimentos didáticos acerca do Paráclito. Essa falha evangelizadora da Igreja abriu a lacuna que possibilitou às pessoas tirar suas próprias conclusões, imaginar o Divino ao seu modo, com a clareza que se fez possível.
Se é dito que somos a imagem e semelhança de Deus então Ele foi logo imaginado como um respeitável senhor de fornidas barbas brancas; se o Messias veio como um homem... se os anjos apareceram como vultos humanos e são imaginados alados; se os santos foram homens; ora, o Divino por outro lado, nunca foi visto ou referido sob forma humana. Não existe representação antropomórfica do Divino. É apenas simbolizado, ora como fogo, ora como pomba, vento, nuvem ... sempre abstrato. É o mais espiritualizado de todos, totalmente etéreo.
A pomba é o seu símbolo mais conhecido. Disse-me um saudoso congadeiro conterrâneo que o Divino apareceu como pomba por ser esse o único animal que não tem fel [1].
durante a Festa do Divino de Matosinhos, em travessia na Avenida Sete de Setembro.
O espiritismo ensina que ele é o Espírito da Verdade, que procede da pureza total, da bondade e sabedoria.
Algumas religiões evangélicas referem-se sempre ao Espírito Santo com respeito mas em escala apagada em relação ao Pai e ao Filho e alguns evitam o termo “Divino”, entendendo que sua divindade já está implícita.
Uma testemunha de Jeová, em missão religiosa à minha porta, atendeu-me o pedido de definição do Divino segundo a ótica de seu salão. Com muita concisão e clareza expressou: “O Espírito Santo é a força ativa de Deus. É o poder de Deus em ação.”
As religiões mediúnicas de matrizes africanas admitem o Espírito Santo em concepção próxima à católica e não restringem o uso do termo divino. Ele ilumina e dá forças espirituais a todos os orixás, guias e mentores, para que tenham energia para seu trabalho no plano universal. Chefia diretamente um agrupamento de espíritos benevolentes muito elevados que trabalham em favor da humanidade, a Falange do Espírito Santo. A respeitabilidade dos fiéis dos terreiros ao Divino é de extraordinária dimensão. Um ponto que recordo da abertura de um trabalho na Rua do Ouro, Bairro Alto das Mercês, em 1998, dizia:
* Texto: Ulisses Passarelli.
** Foto: Iago.C.S.Passarelli, 28/05/2012.
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