Em São João del-Rei, em plena zona urbana, três velhas igrejas setecentistas foram erigidas como que nos vértices de um triângulo imaginário, consagradas ao Senhor Bom Jesus, sob diferentes invocações: numa colina ao sul, aquela singela capelinha branca, dedicada ao Senhor do Bonfim (1769); ao norte, também num morro elevado, a do Senhor do Monte, de data exata incerta; na baixada da várzea da Água Limpa, à beira do antiquíssimo Caminho Velho e já bem mais imponente que as anteriores, surgiu em 1770 a Igreja do Senhor Bom Jesus de Matosinhos.
Contraponteando quatro igrejas coloniais dedicadas a Maria, no Centro Histórico, estas consagradas ao Cristo ficaram à margem do núcleo urbano principal, pelos então chamados arrabaldes. Apesar da distância e aclive, nem por isto, deixaram de ser prestigiadas pelos devotos, sendo alvo de romarias ao longo dos anos e animadas festividades, conforme atestam antigas fontes jornalísticas da cidade.
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Capela do Senhor Bom Jesus do Bonfim, São João del-Rei, set./1998. |
Sobre a Capela do Bonfim (*) o que se sabe é que no ano de 1769, segundo CINTRA, a 06 de maio ...
"O Senado da Câmara da Vila de S.João del-Rei concede a José Garcia de Carvalho 'dezesseis braças de terra que pede pagando de foro a este Senado em cada ano meia oitava de ouro'. 'O suplicante como devoto do Senhor do Bonfim pretende fazer uma capelinha para se celebrar missa, a qual pretende fazer no morro por detrás da Intendência' (etc.)".
Pela data, fica claro então que a afirmação de que este templo é o mais antigo da cidade, ainda corrente entre muitas pessoas, não procede de forma alguma. Sabe-se que antes dele houve uma igreja no Bonfim, mas dedicada à padroeira Nossa Senhora do Pilar, "edificada no Morro da Forca, mais ou menos no lugar onde se encontram as duas caixas de água velhas e o Grupo Escolar Inácio Passos à Praça Guilherme Milward", segundo ALVARENGA. Foi construída logo depois da Guerra dos Emboabas (1707-1709), quando a primitiva, da época da fundação do Arraial Novo de Nossa Senhora do Pilar (1705), situada no morro oposto, encosta das Mercês, junto às lavras, foi incendiada numa das refregas entre paulistas e emboabas. Bem, a Igreja do Pilar que existiu no Bonfim foi demolida em detrimento da atual Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar (título dado em 1965), em 1721 e seus materiais aproveitados na obra desta, definitiva.
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Interior da Capela do Bonfim vendo-se nas laterais as imagens de São Francisco de Assis (esq.) e São Benedito (dir.). Setembro/1998. |
O Morro do Bonfim na parte mais baixa possui um cruzeiro antigo, possivelmente do fim do século XIX, marcando o centro da Praça Guilherme Milward, popularmente chamada até hoje "Morro da Forca", local onde no passado erguia-se o cadafalso da vila. Neste cruzeiro até uns anos eram afamadas as Festas de Santa Cruz pelo mês de maio, hoje desaparecidas. Afamaram-se também no bairro as barraquinhas do padroeiro, que se concluem no primeiro domingo de agosto, conforme mostra esta notícia d'A Opinião nº 23: “Começaram no dia 20 deste as novenas do senhor do Bom-fim, que terminarão no dia 29 do corrente, havendo todos os dias, após as novenas, leilão de prendas”.
Sua capela em São João del-Rei recebeu um sino novo em 1919, vindo de São Paulo, graças aos esforços de Severiano Rodrigues, dentre outros, conforme A Tribuna, nº255.
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Cruzeiro do Morro da Forca. Ao fundo, a Capela do Bonfim. |
Já a igrejinha do Senhor dos Montes certamente foi erigida em data imprecisa, devido à ausência de documentos primitivos, decerto perdidos. É possível deduzir que seja do final do século XVIII ou começo do seguinte, com base nesta citação de CINTRA, referente à data 23/02/1801:
"Para constituição do patrimônio da Capela do Senhor Bom Jesus do Monte, Manoel de Sá Peixoto e sua mulher Bernarda de S.José adquirem do Pe. Antônio Gonçalves de Siqueira, zelador e provedor do citado templo, 'uma chácara sita ao sopé do Senhor do Monte desta Vila com seus pertences, horta, quintal, pasto que ao presente se acha cercado de muros e valo', (etc.)".
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Cruzeiro e Igreja do Senhor Bom Jesus do Monte, São João del-Rei, 1998. |
Ora, o patrimônio de uma capela era formado no ato de sua construção ou imediatamente antes, por ocasião do planejamento da obra, mas habitualmente não décadas antes. No mais o texto supratranscrito diz "ao sopé do Senhor do Monte desta Vila". O nome veio com a capela, não antes. O sistema antigo de denominação de logradouros era assim. O nome primitivo mudava com a construção da igreja do lugar, do qual existem muitos exemplos.
É frequente se afirmar que foi construída na década de 1840. Se assim foi, o quer dizer da citação de 1801? É possível que tenha havido uma capela primitiva, substituída ou ampliada nos meados dos oitocentos? A capela original é certamente dos setecentos. Luiz Antônio do Sacramento Miranda, em gentil colaboração, informou-me, pessoalmente, acerca da possibilidade do nome original dessa devoção ser "Bom Jesus de Trás os Montes", uma referência à geografia portuguesa, mais tarde alterada para Senhor dos Montes.
BURTON, em 1867, escreveu sobre esta construção:
"À nossa esquerda, fica a horrorosa capela de Nossa Sra.(sic) do Monte, parecida com os templos das modernas colonias espanholas, com duas janelas (com persianas pintadas de vermelho) e uma só porta, dando a impressão de um rosto sem nariz."
No ano de 1900 foi construída sua única torre, conforme noticia o jornal O Combate:
"Graças aos esforços do zeloso encarregado da capella do Senhor Bom Jesus do Monte o estimado sr. Emilio Viegas - foi levantada uma torre que está prompta na referida Capella. É um trabalho sólido e elegante que muito realça a bellesa da poetica Egrejinha."
Em maio de 1905, um jornal da cidade (O Repórter, n.19) registrou em nota intitulada "Senhor dos Montes":
"Com muita concurrencia e sempre animadas correram as festas que se fizeram nos dias 21, 22 e 23, na bella capellinha do Senhor Bom Jesus dos Montes, pitoresco arrabalde desta cidade. São procuradores das festas do anno de 1906, os senhores Lucio Justino de Andrade do 1º dia; José Machado do 2º e Francisco de Paula Assis do 3º."
Os zeladores da capela eram então os srs. Capitão Francisco Balbino de Mello e Emílio Viegas (
O Repórter, nº27).
A Câmara por esta época tocava obras de abastecimento d'água no Senhor dos Montes. Em setembro de 1905 ficou pronto o chafariz provisório do bairro, obra de canalização de José Francisco de Athaydes, jorrando água abundante e de melhor qualidade que a do restante da cidade, nos diz O Repórter nº35.
No ano seguinte a imprensa registrou nas páginas d'O Repórter nº15, a animação dos quatro dias festivos, com grande aglomeração de povo. Foi destacada a boa ordem dos festejos. Tocou a Orquestra e Banda Lira Sanjoanense sob a regência de Luiz Batista Lopes. O celebrante foi o Padre Custódio Sabino Franklin.
No cruzeiro fronteiriço, desde longa data, as romarias de maio eram coroadas com fervorosas festas em honra à Santa Cruz. Tais festejos alcançaram celebridade e sendo o local considerado um arrabalde à época, os melhoramentos que chegavam eram inaugurados ao tempo desses festejos, como a chegada da luz elétrica tardiamente, em 1926, marcada a inauguração para o primeiro dia dessa festa no "Senhor-dos-Montes" (como se intitula a nota d'A Tribuna), que anunciava também promessa de canalização de água potável para o ano seguinte, pelos esforços do Deputado Estadual (na época se dizia Provincial) Sr. Basílio de Magalhães. Em outra nota do mesmo jornal e com o mesmo título, em julho, anunciava-se a nova pintura externa da igreja, elogiada pelo resultado e motivo de celebrações locais.
A Igreja do Bonfim ainda é ligada aos franciscanos da Paróquia de São Francisco de Assis e a do Senhor do Monte desvinculou-se em 1999 da do Pilar, tornando-se em nova paróquia a 26 de novembro daquele ano.
Augusto Viegas, em parágrafo magistral, assim se referiu às capelas do Bonfim e Senhor do Monte sobranceiras à cidade:
"Muito brancas, armadas de argênteos campanários que ressoam a distâncias imensas e da cruz, que se projeta até o infinito, dir-se-iam, ante o esplêndido destino a que as consagrou a tradição, cândidas sentinelas morais a velarem pela fé e pelo civismo da população que no vale entre elas moureja." (sic, p.265)
Noutro lado da cidade, em Matosinhos, destaca-se o santuário onde concorrem fiéis desde os setecentos. No platô do grande bairro, edificou-se a partir de 1770 uma bela igreja, de cuja primeira festividade já se tem notícia quatro anos depois, por ocasião de Pentecostes. A devoção ao
Senhor Bom Jesus de Matosinhos se disseminou com grande vigor, bem mais que outras invocações aqui populares. Ainda hoje a Procissão do Senhor de Matosinhos é das mais concorridas, sem exagero, uma das cinco maiores da cidade em volume de fiéis, se não for a maior... No santuário destacam-se as comemorações da Semana Santa, crescentes em vigor e dois jubileus, um consagrado ao Divino Espírito Santo e outro ao padroeiro. Além, destas, correm várias outras comemorações anuais.
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Frontispício e interior da primitiva Igreja do Senhor Bom Jesus de Matosinhos. São João del-Rei. Autor e data não identificados. Fotos gentilmente cedidas por Osni Paiva. |
Lamentavelmente a igreja primitiva do Senhor de Matosinhos foi demolida por ocasião de seu bicentenário e substituída pela atual que se vê parcialmente na fotografia abaixo.
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Santuário do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, set.2004. São João del-Rei/MG. |
Na zona rural de São João del-Rei, a devoção ao Cristo também se nota fortemente. No povoado do Chaves, extremo sul do município, no alto de uma colina aplainada no topo, desde ao longe se avista a Capela do Monte Calvário, dos meados do século XX, onde o Senhor Bom Jesus é festejado anualmente, em animado evento que congrega toda aquela comunidade e demais sitiantes e moradores dos povoados circunvizinhos. Na Cananéia e na Colônia do José Teodoro existem duas capelas centenárias sob orago do
Sagrado Coração de Jesus (**).
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Capela do Sagrado Coração de Jesus, Colônia José Teodoro, em vista frontal e posterior. Fevereiro/2004. |
Sá Luíza da Cananéia, foi uma senhora cuja dedicação à vida religiosa, bem se poderia, de certa forma e guardadas as proporções, por analogia, comparar-se à de Nhá Chica. É uma personagem popular ainda lembrada pelo povo fiel do distrito de Emboabas que está a merecer uma pesquisa aprofundada e urgente das fontes memorialísticas. Foram seus esforços que encabeçaram as obras de edificação daquela capela rural.
Na Colônia, a igrejinha simpática parece olhar do morro para a antiga estrada para Ritápolis e para o leito da extinta Linha do Sertão, da EFOM. Foi construída em 1909 e as famílias de migrantes italianos tiveram força decisiva no processo de sua construção.
Referências Bibliográficas
ALVARENGA, Luís de Melo. Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar. Juiz de Fora: Esdeva, 1971. 80p.il.
BURTON, Richard Francis. Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho (1867). Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1976.
CINTRA, Sebastião de Oliveira. Efemérides de São João del-Rei. 2.ed. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1982. 2v.
GAIO SOBRINHO, Antônio. São João del-Rei através de documentos. São João del-Rei: UFSJ, 2010. 260p.
VIEGAS, Augusto. Notícia de São João del-Rei. 3.ed. Belo Horizonte: [s.n.], 1969.
Referências Hemerográficas
O Combate, n.10, 05/09/1900
O Repórter, n.19, 25/05/1905
O Repórter, n.27, 16/07/1905
O Repórter, n.35, 17/09/1905
O Repórter, n.15, 20/05/1906
A Opinião, n.23, 21/09/1907
A Tribuna, n.255, 18/05/1919
A Tribuna, n.744, 29/04/1926
A Tribuna, n.737, 18/07/1926
Notas e Créditos
* Segundo GAIO SOBRINHO (2010), na Rua Marechal Bittencourt (antiga Rua da Cachaça), no Centro Histórico de São João del-Rei, houve um Oratório do Senhor do Bonfim, conforme notícia de 1815 (p.211). Os oratórios eram pequeninas capelas, à semelhança dos passinhos.
**A devoção ao Sagrado Coração de Jesus difundiu-se bastante pelas igrejas rurais da região: Penedo (Ritápolis), Igreja do Gaspar, no Elvas (Tiradentes), São Gonçalo do Amarante (São João del-Rei) - junto com o padroeiro, etc.
*** Texto e fotografias (Bonfim, Cruzeiro, Senhor do Monte, Sagrado Coração de Jesus, Matosinhos 2004): Ulisses Passarelli
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