Sob o nome de "medicina popular" os folcloristas englobam uma série de práticas e formulações que o povo empiricamente adota e propaga como mecanismo de tratamento de certas doenças.
Sempre que aborda tal assunto, este blog frisa o risco de semelhantes usos pelo eventual dano que pode trazer à saúde, pois tais receitas não foram cientificamente testadas e não se sabe seu real potencial de cura ou dano à saúde. Por isto, não se recomenda. Apenas se registra, pelo valor etnográfico e para que futuros estudos possam elucidar mais a questão.
Desta feita, seguem duas receitas populares coligidas em São João del-Rei no corrente ano, recolhidas de fonte familiar, difundidas informalmente por via manuscrita, distribuídas em cópias, aqui reproduzidas. Muitas vezes a perpetuação destas práticas se dá apenas por via oral, ficando neste caso consignada ao mesmo tempo uma prática de folk-comunicação.
Uma curiosidade é que os dois exemplares adotam pés de galinha como matéria prima. A primeira em especial exige que seja de galo, pela necessidade da presença das esporas, que quanto maiores, tanto mais eficiência emprestarão à simpatia.
A espora do galo é um símbolo de virilidade. Quando a espora é grande e aguçada, maior o valor é atribuído à ave. A espora cortada e posta a secar, uma vez conservada com a pessoa se torna um amuleto capaz de repelir uma série de males. Uma arma córnea contra quebranto. Tanto mais se for de galo preto. Trespassada numa guia evoca a força da linha esquerda, dos exus.
Quanto ao esporão é uma espícula (ponta) de osso que surge no osso do calcanhar (calcâneo) e provoca inflamação da estrutura das fáscias, gerando dor. É um incômodo terrível que aflige a muitas pessoas.
No caso da primeira receita, ou antes, simpatia, existe uma analogia entre o esporão do pé e a espora do galo, que passada sobre o pé do paciente com o enunciado próprio, tiraria supostamente o problema, uma vez que enterrada. Esta simpatia conserva elementos típicos, por magia simpática. Enterrar equivale a exterminar o mal. A recomendação de ser onde a pessoa não passará é uma tradicional medida de segurança para evitar que o mesmo mal retorne. Os pés do galo são esfregados sobre a pele três vezes, e o número de preces também é regulada em três, de valor especial no folclore.
Eis a transcrição:
"Oração do esporão. Dois pés de galo que tenham esporão, passe dos joelhos para baixo nos dois pés, mesmo que não esteja doente e reze: 'esporão, esporão! Leve este mal para onde eu não vejo', e de três vezes, reze três pai-nosso, três ave Maria, pede a Jesus que leve essa enfermidade. Enterra os pés em lugar onde a pessoa não vai passar."
É preciso frisar que não existe objeção a consumir o galo desta simpatia como alimento. Apenas os pés são usados.
A receita seguinte não se prende à pretensão mágica da simpatia. Apela em verdade para a química dos componentes, retirado o óleo que sobrenada no ato da fervura dos pés de galinha, fonte específica para fornecimento de cálcio nesta prática popular. O produto é ingerido parcimoniosamente, tomando-se de cada vez em medidas de colher, para o combate à osteoporose, segundo a crença.
Receitas como esta são comuns no seio popular. Eis a que está em questão:
"Remédio para osteoporose
2 Kg de pés de galinha;
2 litros de água ou mais, se precisar;
1 copo e meio de açúcar;
2 cavacos de canela;
2 nozes moscadas pequenas
2 copos americanos de caldo de laranja;
2 folhas de gelatina sem sabor;
1/2 copo americano de vinho branco seco.
Modo de preparar
Cozinhar bem os pés com 2 litros de água. Se precisar, acrescente mais. Deixar na panela de um dia para o outro. Retirar o óleo que fica por cima e jogar fora. Levar novamente ao fogo. Colocar os demais ingredientes e deixar ferver bastante. A gelatina pode ser dissolvida no próprio caldo. Tomar às colheradas, ao dia."
A "medicina popular" é uma vertente riquíssima da cultura popular e em cada região tem suas próprias características, componentes, formulações... fonte inesgotável para estudo e pesquisa do folclore.
* Texto e fotos: Ulisses Passarelli
Que absurdo. Cortar os pés do galo por causa do meu esporao. Nunquinha! Jamais.
ResponderExcluirCompreensível sua indignação; no entanto, como o texto destaca, não há objeção em usar da carne do galo. Ou seja: o animal é morto para consumo, como se fazem com as aves domésticas criadas com este objetivo. Apenas os pés são usados para dar cumprimento a esta simpatia.
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