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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




domingo, 12 de agosto de 2012

Vida Rural


Crônica da vida na roça


Até meados do século XX, o meio de vida no distrito de São Gonçalo do Amarante (ex-Caburu), em São João del-Rei/MG, não se distanciava muito daquele dos tempos coloniais, exceção feita ao sistema produtivo que já não era escravista. Mas, por assim dizer, após a abolição e as transformações que se seguiram como conseqüência, ajustadas as novas condições de produção, com trabalhadores empregados nas fazendas e pelejando nos serviços “de meia”, além dos sitiantes, a economia local como que se estagnou, ou, em palavras mais otimistas, evoluiu muito lentamente.

Está óbvio que desta forma, se de um lado não havia um futuro de grandes expectativas para os moradores de São Gonçalo do Amarante àquela época, por outro, a estruturação social em comunidade estava bem preservada, longe da covardia capitalista, de tal sorte que possibilitava aos naturais daquele lugar manter à plena suas manifestações culturais, religiosas, relações sociais (de compadrio, de família, de amizade), relações de trabalho e transmissão de saberes.

O filho seguia ao pai. “Filho de peixe, peixinho é” ou “já nasce nadando...”, diz o provérbio popular.

Desta maneira, as crianças naquele ambiente de luta contínua pela garantia do sustento, do sem-fim de afazeres da roça, habituavam-se desde muito cedo ao trabalho pesado, ajudando aos pais em todas as tarefas e por conseguinte aprendendo-as. Tinham ao seu alcance o ensino fundamental do grupo escolar local. As menos afortunadas caíam na teia do analfabetismo.

Tinham nesse ensino e naquele que recebiam dos pais, bem como no exemplo dos avós, dos padrinhos, “dos mais velhos”, o mais rigoroso aprendizado moral, cívico, religioso, cultural e social. É neste aspecto que o trabalho dignifica o homem e não pelo irrisório valor da remuneração em si, frente ao contrapeso da carga horária, insalubridade, etc. Muitas vezes essas pessoas eram sofridas, devido às muitas necessidades; privadas de tantos direitos, mas sabiam como ninguém de seus deveres. Daquela geração não sairiam os bandidos e sacripantas que hoje infestam o país em pestilenta epidemia, mas sim homens de bem e mulheres de muito respeito, uns e outros, trilhando a vida em favor da família, para o trabalho e pela fé.

Essa hombridade, qual ponto de honra e moral, passou por gerações como sustentáculo da estrutura social. 

A comunidade tinha vida de subsistência. O roçado dos sítios e fazendas, a horta e o pomar dos quintais, o mel dos ocos das árvores, as pequenas criações domésticas, garantiam tudo que precisavam para viver. Na cidade só iam comprar o sal e o querosene. Lá vez por outra buscavam algum bem que o comércio de São João del-Rei dispunha e o dinheiro alcançava.

O excedente da produção era vendido para garantir algum dinheiro vivo. Mas não eram produções de fins plenamente comerciais. Os cargueiros (burros com balaios às costas), tropas e carros-de-boi carregavam até a cidade aquilo que sobrava na roça e voltavam trazendo algum trocado e o que por ventura faltava na zona rural. 

“Todo mundo” era católico. Servir a uma instituição ligada à Igreja era uma honra suprema, uma dignidade à mostra, uma prova de fé e obra cristã, mesmo que muitas vezes o retorno que os padres davam à população fosse quase nulo, numa nítida relação de exploração da boa vontade alheia, sob a égide do temor ao fogo do inferno, impresso por contínuos sermões acusativos, fazendo os pecados pesarem como rocha e para aliviá-los, nada melhor que o trabalho para a Igreja... A palavra eclesiástica era bastante emblemática neste sentido, sobretudo num período de ideologia romanizadora. 

A quaresma era o tempo de respeito maior. Todo abuso era evitado; as caçadas suspensas, bem como bailes e foguetórios. Não havia festa nessa época; só reza, em casa e na igreja. Vias-sacras e encomendações de almas ecoavam no largo gramado, ao som da matraca em detrimento do sino. Participar delas era um dos poucos pretextos para sair ao sereno na noite quaresmal. Era o tempo das tentações surgirem. Fantasmas andavam à solta para fisgar os incautos. Na Semana Santa então, o respeito era dobrado, sobretudo na Paixão do Senhor. Quem ousava trabalhar neste dia? Ir ao boteco... nem pensar. Bater um prego em casa? Jamais! Mas na Páscoa a alegria voltava à plena, com o judas explodindo na sua forca na árvore de embaúba e o boi-malhado correndo atrás da gurizada na praça, sob a música dos tocadores.

Em tempos bem remotos os enterramentos eram dentro da capela. Mais tarde veio o cemitério do adro, bem na sua frente. Por volta de 1946 foi construído um cemitério, apartando-se de vez os mortos para um campo santo reservado. Ainda assim, mesmo com sua ermida central, essas trocas de endereço indicam a crescente dessacralização. Por essa época o velho campanário externo e lateral foi demolido. O sino veio ocupar um lugar inadequado, pendente no vão de uma janela frontal esquerda. A velha construção de taipa trincou graças ao peso e movimento do sino, pois sem colunas ou vigas, não tinha estrutura para suportá-lo. A recente reforma consertou este equívoco.

Uma vez por mês o capelão vinha celebrar. A missa congregava os rurícolas com a melhor roupa que cada um tinha. A família vinha completa, a pé ou a cavalo, mas quase ninguém faltava. Finda a cerimônia, onde imperava o mais absoluto respeito, no largo da capela, o povo em burburinho aproveitava o ensejo para a conversa salutar, a confraternização, para traçar negócios de barganha (a troca de produtos era importantíssima), obter notícias, comentar a política.

Esta aliás, como sói acontecer no velho interior brasileiro, seguia pelo regime do coronelismo, que sempre houve por aí afora e em certa medida sobrevive algures mais ou menos disfarçado. 

Poucos entretenimentos tinha aquela gente. Pescar e caçar eram dos mais queridos e garantiam algo comestível para casa. Para alguns era o baralho eventual à noite dos fins de semana, uma rodada do barulhento truco; ou, quem sabe, uma talagada de pinga, recostado ao balcão da venda. 

O cardápio cotidiano era simples. Consistia na famosa “comida de roça”, tão decantada na cidade, cuja singeleza costumeira, elevou a fama da cozinha mineira ante o cenário nacional. Arroz, feijão, angu e uma verdura, ovo frito, torresmo ou carne, conservada na lata de gordura. Eis o prato genérico. Não havia luxo, mas, bom tempero. Não faltava o ponto certo do cozimento, segredo de outrora. Ah, e é claro, o “fogão-de-lenha”. Quitandas assadas nos fornos de barro eram das melhores. Com café, substituíam muito bem os balofos e caros pães bromatados das padarias modernas. Os horários para alimentação eram sempre muito mais cedo que na zona urbana, pois era premente madrugar para o roçado ou para o retiro. Serviço pesado, a fome aflige logo. 

A saúde se regia pela boa alimentação. A gordura de porco, que a medicina condena, era a sua saúde, bem como o ovo caipira e a manteiga gordurosa. Não ingeriam essa atual carga infindável de produtos artificiais, cheios de conservantes e outras químicas terríveis, estas muito mais maléficas. No mais, a enxada era o melhor exercício físico para queimar os excessos. Quem poderia suportar (a apenas...) meio dia de verdadeiro serviço de roça com um prato magro recomendado pela ciência? Óleo, saladas, carne branca ... “Angu é que cria”, diziam, revelando que a comida há de ter “sustança” (ser encorpada, com poder nutritivo, intensidade, capacidade de satisfazer).

Os remédios vinham muito mais do mato que da farmácia. Cascas, folhas, raízes, sementes eram os ingredientes de mil e uma fórmulas medicamentosas para todos os incômodos. Da geração velha, já que faltava a assistência, muita gente passou quase a vida toda sem consultar um médico. No mais a fé completava a terapêutica na prece diária, elevando a auto-estima, a positividade psicológica, a auto-imunização e ainda a ajuda dos benzedores, que por toda parte houve, cruzando seu rosário e recitando palavras ligeiras e engroladas, mas espantando com elas as moléstias e assombros. Rezadores famosos deixaram seu nome na memória popular, e a fé do povo em suas ações era imensa. Curavam doenças estranhas para as pessoas da cidade, tais como quebranto, espinhela caída, vento virado, simioto; tiravam aguamento, davam receitas para friagem de estômago e bichas (lombrigas), além de benzer os acometidos de peçonha.

Depois da janta, ao redor da sapata do fogão à lenha, no calor das brasas, no lusco-fusco bruxuleante da lamparina, os mais velhos contavam causos, estórias de assombrações, de tesouros enterrados, de cavas medonhas, de porteiras que rangiam e batiam sem que ninguém (vivo) mexesse nelas, de princesas em castelos encantados, de animais que falavam e tinham virtudes e defeitos como gente. Tinha-se paciência e gosto para ouvir o fabulário, pois o império avassalador da televisão ainda não tinha se formado. O bom contador de estórias não tinha pressa. Esticava as narrativas acrescendo sons e gestos, tão teatrais que dava para se enxergar a cena na mente. 

As festas populares eram a ocasião maior de quebra da labuta cotidiana e sobretudo de recuperação das energias através das orações. Mais que isso, de afirmação e confirmação da identidade. Os moradores eram agora os atores. Retireiros, capinadores, conservas de estrada, lenhadores, carreiros transformavam-se em congadeiros e folieiros. Um deles puxando o fole da “cabeça de égua” varava a noite cercado pela companheirada cantando horas a fio na sua “oito baixos”, o calango desafiador. Nos bailes regidos pela sanfona, viola, pandeiro, dançava-se ordeiramente numa condição inimaginável na urbe. A diversão só era consentida como tal num ambiente de pleno respeito. 

A solidariedade era como uma instituição inquebrantável, manifesta no auxílio na hora do parto, graças às parteiras; no trabalho dos mutirões com vasta cantoria chamada “ronda”; na morte, confeccionando-se a padiola e trazendo condolências à família, num tempo de respeito ao luto, fosse o próprio ou o alheio. 

A vida na roça era polarizada: muito trabalho e pouco descanso, muita fartura alimentar e pouco dinheiro vivo, muito sossego e pouco conforto, muita fé e pouca mudança. O campesino era um homem inteligente, honesto e perspicaz, nada semelhante à caricatura do caipira imaginada na cidade. Aquele bobo de calças remendadas só vive na mente urbana, dançando desengonçado nas quadrilhas juninas. O roceiro é airoso para dançar. Aliás, tanto já zombaram, que chamar alguém de roceiro ou caipira tornou-se ofensa, quando deveria ser motivo de orgulho.

Assim era a roça. Esse o mundo rural observado na pequena São Gonçalo do Amarante, em parte mantido, em parte alterado, mas certamente extensivo a muitos outros rincões mineiros.


Residência em São Gonçalo do Amarante, 08/10/2011.

* Texto: Ulisses Passarelli
** Foto: Iago C.S. Passarelli
*** A fotografia escolhida para este post tem caráter meramente ilustrativo da arquitetura rural típica.


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