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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Caieira: história & memória


Na cidade de São João del-Rei/MG, entre o Matola e Matosinhos, num vale em forma de bacia, de bordas altas e bastante erodidas, nascem alguns cursos d’água estreitos, um tanto ferruginosos, todos de pouco volume, minando água de diversos brejos. Tais águas se confluem e formam o Córrego da Tabatinga, de extensão curta, já que logo adiante desemboca na margem direita do Córrego do Lenheiro.

Tabatinga é palavra de origem indígena, usada para designar uma argila esbranquiçada. Com ela os antigos faziam uma suspensão para caiar casas e nas velhas igrejas coloniais, uma base sobre a madeira, para o posterior douramento.
         
Esse vale sofrível, com vegetação paludícola nas baixadas brejosas, capoeiras nas grotas e pastos sujos nas encostas, foi no século XIX usado como pastagem. Tanto que seu primeiro nome, até onde pude rastrear, foi Pasto Manoel dos Passos, talvez nome de seu dono ou morador àquela época. Ao fim daquela centúria o terreno todo já pertencia ao grupo administrativo da ferrovia, que o pôs à venda em 1896 [1] :

A Companhia Agricola e Industrial Oeste de Minas - vende pastos de sua propriedade, denominados Manoel dos Passos – situados nas proximidades do Matadouro, os quaes confrontam por um lado com terras dos srs. Carlos Muller e José Pedro de Andrade Reis, e por outro lado pela antiga estrada da Tabatinga a ponte de Mattozinhos. Tratar no escriptorio da Companhia no Largo do Rosario, n.14. S. João d’El-Rey, 27 de Abril de 1896.

O terreno veio às mãos da família Mourão. Posteriormente foi arrendado por muitos anos pelo Coronel Joaquim Rodrigues Teixeira Amorim, que morava na única residência que ali havia, uma espaçosa edificação (das atuais é a mais antiga do lugar, com cerca de um século de existência), em estilo eclético de influência neoclássica. Fica em frente à linha férrea.

Tudo o mais era pasto, cercado acima dos trilhos e tendo curral junto à entrada da atual Rua Antônio Lombelo Rocha, vestígio do velho matadouro que aí havia, transferido a Matosinhos em 1910 [2].

Nas proximidades (já no final do Matola) fabricavam-se telhas e tijolos. Como de fato o terreno dos arredores era brejoso, tendo a matéria-prima necessária. Numa fonte jornalística surge com estas palavras[3]

Telhas curvas. Milheiro 80$000, cento 9$000, a varejo 100rs. cada uma. Na Companhia Agricola e Industrial Oeste de Minas, Olaria do Matadouro. Telhas de 2º qualidade 25 % menos.

Em 1914 sua propaganda aparecia em quase toda edição do jornal “Reforma”, o que se explica por ser o diretor deste jornal o dono da olaria, sr. Mário Francisco Mourão, que também vendia cal. Mais tarde esta fábrica ficou conhecida por “Caieira do Mourão”. Ficava na atual Rua Professor Mário Mourão Filho. A água para seu funcionamento, dizem, era captada no Córrego do Cala-boca e trazida por meio de um longo rego cavado em curva de nível na encosta do morro que ladea a margem esquerda do Ribeirão da Água Limpa. Os vestígios deste aqueduto são ainda visíveis. Tal rego porém é muito mais antigo que a própria calcinação que o aproveitou. Nas “Efemérides de São João del-Rei”, de Sebastião de Oliveira Cintra, consta na data 13/06/1809, que a câmara municipal pôs em praça “a fatura do rego por onde há de passar a água que há de vir do Córrego do Cala-boca para o chafariz que se pretende fazer nesta vila.


Propaganda jornalística da Caieira do Mourão. 
Jornal A Reforma, n.12, 22/06/1913, São João del-Rei
Fonte: Acervo Digital da Biblioteca Pública Municipal de São João del-Rei

Essa calcinação deu nome ao bairro residencial que surgiu no local do antigo Pasto do Manoel dos Passos. Daí por diante seria o Bairro da Caieira.

Também funcionaram por ali, na proximidade do ponto em que as águas cortam a atual Rua Henrique Benfenatti, pouco acima do dito curral, uma oficina de ferraria, que ferrava rodas de carros de boi e carroças e ainda uma empresa de moagem de pedras (que vinham da Serra do Lenheiro em carroções). Eram moídas para extração de ouro, num pilão elétrico, de propriedade dos srs. Silveira Carazza e Martim Jacinto Paulucci, segundo informações orais [4].

Como não haviam casas, criadores de gado costumavam alugar toda aquela imensa pastagem do sr. Renato Mário Mourão, para por suas reses. Consta mesmo que houve a muitos anos um curral, aproximadamente onde hoje está a igreja do bairro [5].


Somente em 1964 o aspecto do lugar muda quando o mesmo é loteado com o nome de Bairro Jardim Central. Ainda em meados dos anos setenta o número de casas era pequeno. Com precariedade de infra-estrutura surgiram as primeiras ruas. Os lotes foram vendidos e principiaram as edificações. 


Caieira: Rua Henrique Benfenatti, esquina com Rua Eurico de Oliveira, em 1979. São João del-Rei.

É construída uma escola de primeiro grau, chamada Padre Sacramento no começo dos anos 1970. Era curioso naqueles idos o portão de ferro trancado fortemente, com corrente e cadeado e o muro guarnecendo só a frente já que toda a lateral era livre. Depois fizeram cerca de arame farpado. Muro mesmo, bem depois. O ensino era mal afamado, não sei se ruim de verdade ou se apenas caluniado, mas recordo bem das crianças daquele tempo, até as que estudavam lá, motejando assim: “Escola Padre Sacramento, entra burro e sai jumento” (burro, jumento = ignorante, inculto, analfabeto). Talvez fosse coisa de criança pois de outra escola próxima, a Aureliano Pimentel, diziam: “entra burro e sai pastel” (pastel = idiota). Do que sei hoje seu ensino é muito bom e nada deixa a desejar ao padrão brasileiro. 


Ressalvo como nota importante a presença de um raríssimo templo de umbanda, que tem por patrono Pai Joaquim de Angola, respeitadíssima entidade chefe. Digo raríssimo porque de fato existem cidade afora muitos terreiros e tendas mas de vida informal, lá pelos fundos de horta, em barracões e quartinhos sem nada que os identifique por fora. Este não. É uma edificação própria e exclusiva. É bem antigo pois consta ter funcionado noutro lugar, salvo engano nas Águas Gerais. Mas foi ali que se fixou. Conheceu um tempo áureo onde toda segunda, quarta e sexta-feira tinha sessão, reunindo muitos fiéis. De longe se ouvia o toque dos atabaques. Vive hoje uma fase de pouca movimentação. 


As primeiras casas do bairro se concentraram na parte baixa, junto à rua principal, que recebeu o nome de Rua Henrique Benfenatti (ex Avenida Guanabara). Para o alto eram pouquíssimas as residências, esparsas mato adentro. Não é exagero dizer-se assim. Ainda no ano de 1977, o último poste de iluminação pública era na esquina defronte à casa nº 415, que pertence aos meus pais. Daí para cima era luz de lamparina. A luz dos postes aliás não era grande coisa, senão um amarelão apagado e a campânula não era como as de hoje, mas tão somente uma saieta de chapa frisada em ondulações, protegendo a lâmpada. Não havia água encanada, só de cisterna, nem rede de esgotos, só fossa. Tão pouco pavimentação alguma. Era o poeirão na seca e a barreira nas águas. Só veículos utilitários subiam a parte alta da Caieira. Automóveis na estação chuvosa contavam com a ajuda compreensiva de um morador, que com seu jipe amarelo puxava com corda os carros morro acima. A água da enxurrada corria livre, esburacando a rua e abrindo valetas. O córrego transbordava com freqüência e impossibilitava o trânsito. No mais a subida era brava, muito íngreme. 


Caieira: veículo atolado na Rua Henrique Benfenatti, esquina com Rua Antônio Lombelo Rocha,
 em 1979. São João del-Rei.

Foi na administração municipal do prefeito Octávio de Almeida Neves, irmão do ex-Presidente da República Tancredo de Almeida Neves, que se deu início às mudanças. Um grupo de moradores, com listas e abaixo-assinados, tendo à frente o meu pai, David Passarelli, obtiveram daquele prefeito as primeiras melhorias. Friso que o combustível das máquinas foi rateado pelos moradores. O tope do morro foi diminuído graças a um trator de esteira e desta sorte se tornou menos íngreme. A imensidão de terra vermelha foi tocada para dentro do brejo à esquerda de quem sobe, no meio da subida, iniciando sua primeira fase de aterro. 


Uma imensa vala foi rasgada de ponta a ponta e a rede de água e esgotos instalada. A seguir veio a extensão da luz e mais postes foram colocados. 


Logo as ruas laterais foram pouco a pouco sendo melhoradas e como sói acontecer, infelizmente, ganharam novos nomes, alguns de gente que não sabemos quem é, quem foi, o que fez para aquele bairro ou para a cidade, com poucas exceções. A nomenclatura original evocava capitais e estados. 


Na administração do Dr. Gerardo de Castro Cid Valério, vieram os meio-fio, rede de drenagem pluvial (absolutamente aquém da necessidade, como aliás é até hoje, mas veio...) e o primeiro calçamento, em pedras, tipo pé-de-moleque, apenas na principal e parte das laterais mais importantes. 


A passos de tartaruga a infra-estrutura progredia e se ampliava. Novas casas surgiram. O comércio era incipiente. Só havia um bar, o “São Geraldo”, em frente ao grupo escolar. Corria a década de oitenta.


Missas começam a ser celebradas aos domingos, ao ar livre no pátio interno da escola do bairro e se idealizava a construção de uma igreja. Tomou a frente o antigo morador sr. Vanderlei de Almeida, que com a ajuda de muitos outros, começou a angariar fundos. A primeira barraquinha (quermesse) para custear as obras foi feita na entrada da Caieira, na Rua Professor Mário Mourão Filho. A segunda num terreno ao lado da escola, esquina da principal com a subida da Rua Marechal Ciro do Espírito Santo Cardoso, hoje com residência construída. As barracas eram improvisadas com bambu, pita, caibros e lona plástica. A terceira quermesse passou a ser feita exatamente onde ainda é feita hoje, em frente ao atual salão comunitário. Daí por diante não mudou mais.


Por essa época, os alicerces estavam prontos e parte das paredes, ainda em princípio. No lugar onde foi edificada era um campo de futebol onde a molecada se divertia. 


As primeiras quermesses tinham pouco movimento, restrito aos moradores e poucos fiéis visitantes. Todos se conheciam e respeitavam mutuamente e a diversão ficava por conta do sistema de som onde ainda corria o tradicional “Correio do Amor” ou “Correio Elegante”, no qual os rapazes mandavam mensagens enamoradas para suas belas; jogos de víspora, pescaria e o jogo do coelhinho eram as diversões; barracas de comes-e-bebes e muito foguete completava o panorama festivo. A banda de música não vinha para os lados de cá, só mais tarde. 


A consagração da Igreja de São Judas Tadeu se deu a 26/10/1986, às 17 horas, pelo bispo Dom Antônio Carlos Mesquita [6]. 


A primeira procissão rodeou a Caieira toda, saindo dali pela Rua Major Antenor Carneiro de Carvalho (ex Rua Belém), subiu a Rua Professora Margarida Neves, passou junto à caixa d’água, desceu o “Morro do Zé da Luz” pela Rua Antônio Lombelo Rocha e tomou a principal rumo de volta à igreja. 


Anos mais tarde, o itinerário mudou e descendo pela Henrique Benfenatti, atravessando a linha do trem e tomava a direita, rodeando pela Praça Pedro Paulo, onde a comunidade local, dita Santa Clara, já na Paróquia de Matosinhos, prestigiava a passagem do santo querido com muito vigor. 


Em 2003 o trajeto foi de novo alterado: deixou de passar pelo Salão da Conferência de Santa Clara e passou pela Gruta do Divino Espírito Santo e Nossa Senhora do Rosário, onde havia grande recepção e ingressava na procissão a imagem local do Rosário. Tomando a “Beira da Praia” (Rua Antônio Josino Andrade Reis), retornavam à Caieira pela Antônio Rocha a partir da segunda travessa e daí direto à igreja. 


A retificação de 2006 recobrou o itinerário original das primeiras festas e dessa feita só um andor de São Judas saiu. Pois até aqui se usava dois desse santo e mais um de Nossa Senhora Aparecida. 

Na verdade uma grande multidão acompanha esta festa hoje e gente de toda parte vem acompanhá-la. A procissão parece-me que está entre as cinco maiores desta cidade, em número de fiéis. 


Retornando aos outros aspectos do bairro ressalto as alterações dos anos noventa, como o asfaltamento da via principal e parte das laterais, na administração Nivaldo José de Andrade.


Em 2000, começa o loteamento da parte mais alta do bairro, a que deram o nome de Vila Belizário, já agora cheia de casas. Mas só em meados de 2008 vem o complemento da pavimentação. Para os meninos de meu tempo era o “Morro Careca” porque no seu cúlmen, no começo dos anos setenta tiraram muito cascalho e o mato não nasceu mais, ficando exposto o solo. Seu terreno é uma camada superficial de cascalho de 30 a 60 cm, sobre latossolo amarelo (“terra de óca”) Na meia-encosta da Caieira a terra é vermelha. 


O prefeito Sidney Antônio de Souza, em 2006, asfaltou todas as ruas do bairro, exceto parte da Rua Eurico de Oliveira (ex Rua Teresina).


Em 2006 concluiu-se ampliação da escola, com a construção de um anexo com novas salas de aula. Contudo em janeiro de 2008 não houve matrícula e ela permaneceu fechada, embora que provisoriamente algumas turmas da E.E. Aureliano Pimentel ali funcionaram no segundo semestre desse ano, enquanto sua sede passava por amplas reformas. Em 2009 foi demolida e no começo do ano seguinte correu a obra do novo prédio que aloja a Superintendência de Ensino. 


Em 2007, aos fundos dessa instituição foi construído o tão necessário pronto-socorro municipal, UPA (Unidade de Pronto Atendimento). 


Instalou-se em 2006 na Caieira à Rua Professora Margarida Moreira Neves, a Vara da Justiça Federal, a 31 de março, o que representou um avanço muito grande para toda a região, já que esta Subseção Judiciária tem jurisdição sobre 29 municípios[7]. 


O topônimo “Pasto Manoel dos Passos” é uma distante referência histórica. O nome de uso é Caieira. Mas ouvi dizer, que se chama hoje Bairro São Judas Tadeu. O santo que me perdoe e também quem loteou o lugar. Aqui para mim nunca foi Jardim Central e nunca será São Judas Tadeu, mas sempre a Caieira, ainda que não seja mais a que conheci, cheia de árvores e brejos. 


As árvores estão caindo a golpes. Caminhões e tratores dia a dia aterram as vossorocas. Toneladas de entulho engolem as minas do Córrego da Tabatinga – nome que não é mais usado. Acabaram os pastos onde o gado engordava. Só há agora lotes – aliás, poucos de resto, onde não existem mais tatus, corujas, codornas, candimbas; os brejos foram aniquilados pela urbanização e os que sobraram não tem mais preás, e as saracuras não teimam mais em viver aqui. Os pássaros estão sumindo. As crianças soltam pipas muito pouco, não jogam finco, nem bolinha de gude, não brincam em carrinhos de rolimã nem de carrinho algum, senão os de controle remoto. As meninas não brincam de roda, boneca, bambolê, queimada. Não há mais pelada por aqui, só jogo de futebol cheio de regras nos centros esportivos. A vida social do bairro mudou intensamente, bem como seu aspecto natural, que era quase de roça. 


Os velhos moradores se foram, com pouca exceção. Gente nova está chegando – premissa da vida - e não imagina o que isso aqui era, o que os pioneiros passaram, matando saúvas a eito. Carregava-se água em baldes, com os pés enlameados. Faltava água encanada. Feliz quem tinha cisterna. Esgoto, só de fossa a partir de uma certa altura do bairro. Na rua era poeira ou barro.


O bairro mudou positivamente. Mantém uma relativa tranqüilidade e segurança. Não é perfeito, mas aquele que já foi dos piores de São João del-Rei é hoje dos melhores.



Notas e Créditos

* Texto (02/07/2008, revisto em junho/2012) e foto-montagem de propaganda jornalística: Ulisses Passarelli
** Fotos (Caieira, 1979): David Passarelli

[1] - O Resistente, n.54, 21/05/1896.
[2]  - Ver: PASSARELLI, Ulisses. Matadouro. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, n.11, 2006.
[3] - O Resistente, n.207, 21/05/1899.
[4] - Gentilmente cedidas por meu avô materno, Aloísio dos Santos (1923-2004), que por ali trabalhou.
[5] - Informações gentilmente prestadas por meu sogro, José Cândido de Salles (“Zé Cristino Boiadeiro” , 1915-2001), que criou gado nos pastos da Caieira.
[6] - O Raio, n.455, 18/10/1986.
[7] - Folha das Vertentes, n.51, abr./2006. 

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