A formação étnica do Brasil por sua pluralidade permitiu a constituição de múltiplas formas de tradição popular em cada região e microrregião, com suas características regionais, alvo de estudos sérios, admiração e esforços de manutenção.
De cada cantinho da África, donde balançando no sofrimento do mar afora veio o escravo, com ele chegou inquebrantável seus costumes, aqui mesclados aos da terra nova, tomada de quantas vertentes indígenas tenham trilhado este país. Ainda tradições ibéricas aqui adaptadas à realidade do novo mundo, foram praticadas e modificadas por essa gente mestiça de saberes, riquíssima de conhecimentos. Pai de Trás-os-Montes, mãe tupi, avó de Zamora, avô cambinda. Dizer uma origem negra, branca e índia da cultura é uma visão tão simplista que desconsidera que cada continente de origem tinha e tem muitas raízes da tradição. Cada região da África, da América ou da Europa se desenha como uma área cultural específica mas não isolada, que faz intercâmbio de conhecimentos com as áreas vizinhas, permanentemente evoluindo e reciclando suas tradições.
A formação geográfica, climática, social, econômica e histórica de cada região do Brasil permitiu que em bases comunitárias se estabelecesse um emaranhado de danças folclóricas, festas tradicionais sob o manto católico, revivescência de costumes de outros continentes sob as possibilidades daqui, ao estilo colonial, mais ainda assim possível, contundente.
Mas já são tantas as mudanças sociais e tão severas que por assim dizer estão esfacelando as bases comunitárias que davam sustentação e vida às danças, festas e costumes tradicionais levando à sua ruína. Os que sobrevivem o fazem de teimosos, movidos por uma fé inabalável, pela coerência de uma missão herdada no berço. Mas quando é possível continuar uma Folia de Reis, uma Congada, Pastorinhas, Encomendação de Almas, Dança das Fitas, Festa do Rosário ou do Divino, tem-se feito sozinho, sem apoio público como se não fosse parte da cultura, à margem dos processos de captação de recursos, excluídos dos famigerados projetos, contemplando o seu fim logo ali ou se tornando não mais vivência comunitária, mas um espetáculo exótico, curiosidade para turistas, apresentação para cidadãos melancólicos saudosos dos tempos que se foram. Um apêndice.
As atrações da modernidade estimulam o jovem a não permanecer participante nos grupos folclóricos, como se nada ali o pudesse atrair porque também não fez parte de seu processo educativo; logo não compõe seu universo, não preenche suas expectativas. E assim se esvaem as esperanças de renovação. A ausência das tradições no ensino escolar, a fraqueza dos órgãos públicos em gerir políticas de fomento ao folclore são as maiores dificuldades que enfrentam nossos mestres reiseiros e congadeiros. Enxergam a idade chegando e com ela a canseira, sem vislumbrar substitutos, todos desestimulados de abraçar semelhante responsabilidade. O mestre é homem de posses muito modestas e falta-lhe tudo enfim para manter seu grupo folclórico ou festa: de um simples chapéu de palha para enfeitar de fitas, as próprias fitas aliás, cordas de violão e o violão inteiro; dos uniformes ao transporte, de um tudo, como se diz, vem do bolso do mestre, do capitão, do folião, do festeiro, do coordenador, do baluarte do folclore, desse herói da cultura que tem muitos nomes... Ditinho, Geraldo Elói, Dona Júlia, João Matias, Virgilinho, Lilia, Vavá, Dezinho, Raimundo Camilo, Moacir, Mário, Ventura, Luisinho Sanfoneiro, Tadeu, Lutero e tantos, tantos outros, idealistas, guardiões do saber. Eles arcam com tudo, despesas e trabalhos.
E os festejos vem aí: Jubileu do Divino, Festas do Rosário, Encontros de Folias. Vamos prestigiá-los e avaliar quanto vale a pena conservá-los para as gerações futuras, com tudo o que neles está contido e representado. Tradições daqui e das vizinhanças e de mais longe, disseminadas por subúrbios e vilas estarão congregadas como uma imensa irmandade nos adros e praças.
Como noutros anos o local da festa popular se encherá de todo o colorido e musicalidade do nosso folclore sob tantas faces cansadas; passos de danças, clamores, súplicas, verdade do ser, do viver, do sentir, essência no expressar da fé, mas também veremos um tanto de folcloristas de ocasião, gravando, anotando tudo, interrompendo coreografias para o retrato de melhor pose, tudo para seus “trabalhos” e monografias de linguagem culta, e nunca mais serão vistos! Sugam e se vão como um mosquito pestilento. E não faltarão os políticos, claro, dando tapinha no ombro dos congadeiros e dizendo parabéns, não deixa acabar...
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