(Ofereço a Francisco José de Rezende Frazão)
Era costume na vila de São Gonçalo do
Amarante, distrito de São João del-Rei, o rito da encomendação pela quadra
quaresmal, emitindo a altas horas cantos lúgubres em sufrágio das almas do purgatório.
Ao som da matraca o clima era tenebroso, eivado de medos de toda sorte, de
assombrações variadas, pelo que ninguém se atrevia a espiá-los pelas frestas da
janela.
Desse grupo antigo nada sobrou senão os
cantos memorizados por antigos moradores. Os velhos praticantes morreram ou se
mudaram para a cidade. A falta de renovação aliada às mudanças sociais
sacrificou esta tradição. Notícias a respeito já foram publicadas como parte de
minhas pesquisas sobre este distrito.
Contudo, na quaresma de 2008, o
leiteiro Ednei Sebastião de Oliveira, Ministro da Comunhão, auxiliado por
abnegados companheiros, atendendo aos pedidos dos moradores, restituiu o ritual
com os mesmos cantos mas com nova fisionomia. No ano seguinte fui acompanhar a
Encomendação e desta observação procedem as presentes informações.
O grupo se reuniu dentro da igreja
pelas 19 horas. Vários moradores vieram acompanhar. A Irmandade do Santíssimo
Sacramento esteve presente com suas opas vermelhas e lanternas de prata,
ladeando o irmão cruciferário. O organizador deu abertura com uma prece e a
seguir leu uma passagem bíblica e dela fez breve explanação. A seguir convidou
todos a acompanhar com espírito de recolhimento e ressaltou que ninguém fosse
com superstição pois assombrações atrás da encomendação não existiam, isso era
crendice do passado.
Saíram à rua com o barulho seco da
matraca. Os dedos nas contas do terço rezaram primeiro uma via-sacra, fazendo
estações diante de casas pré-estabelecidas, que já abertas, com os moradores à
dianteira assistindo tudo, dispunham imagens na fachada e alpendre, quadros de
santos, toalhas de qualidade, jarras floridas. Entre os mistérios cantos
católicos assaz conhecidos.
Vencida a via-sacra, chegaram ao portão
do cemitério e diante dele, começaram a encomendação propriamente dita, com os
mesmos cantos antigos e seguindo o ritual à semelhança, que só não se completou
porque a chuva desabou com vigor obrigando o retorno antecipado à igreja, onde
se concluiu o ritual com a reza do fim e a entrega, todos ajoelhados muito
respeitosamente.
Sob o olhar puritano ou apenas
preservacionista, a balança do julgamento iria considerar descaracterizada a
nova encomendação. Contudo é preciso entender que os tempos mudaram e ninguém o
fará voltar. A encomendação à moda colonial se foi, porque os assombros que a
ambientavam foram banidos pela modernidade. No novo contexto social ela não
acha espaço nem função. Sua pequena dinâmica foi incapaz de sustentá-la.
Ora a nova encomendação veio com os
cantos originais, a matraca inseparável, um respeito irrepreensível, repleta de
devoção e fé nas almas, ofertando-lhes preces, enfim, seu objetivo central,
porém revelando a ausência de superstições, como convém a um Ministro da Comunhão
e aliada à via-sacra, que lhe serve de sustentáculo. É de se pensar se teria
êxito hoje aquela encomendação do passado num tempo moderno. O segredo da
vivência do folclore é o seu poder de adaptação e não a capacidade de se manter
intocável. Ednei enxergou isto e eis aí seu fruto, digno de louvor, repetido
aliás em 2010.
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Grupo de via-sacra e encomendação na vila de São Gonçalo do Amarante, 2009. |
Notas e Créditos
(*) Texto e foto: Ulisses Passarelli
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