Coletânea de calangos de Barbacena
Em fevereiro de
1996, numa ida à cidade de Barbacena / MG, foi oportuno conhecer uma senhora de
prodigiosa memória, coração pleno de bondade e espírito elevado de humanismo. Isto
foi possível graças ao apoio do sr. Luthero Castorino da Silva, que naquele
ensejo nos pôs em contato e acompanhou com presença muito positiva o diálogo
com a saudosa “Dona Josefina”, à época senhora octagenária, preta afeita às tradições rurais e aos preceitos da umbanda.
Infelizmente, em
alguma reviravolta da vida, as anotações daquele dia se perderam para sempre e
já não é mais possível dar outros detalhes.
Não obstante esta
observação, ficou-nos como ótima impressão a receptividade daquela senhora de grande
conhecimento, que na ocasião, de muito boa vontade, espontânea em plenitude,
cantou alegremente e dialogou conosco, revelando um sem-fim de composições do
cancioneiro popular. Dentre tantos, bastou ser provocada com um versinho de
calango para disparar imensa cantoria de memória, fluente, de melodia firme,
canto de grande autenticidade, demonstrando domínio do gênero poético-musical
em tela.
Seus calangos
obedecem a princípio ao estilo do calango solto. Interpõe de tanto em tanto
refrões em ritmo mais acelerado, algo bastante peculiar. Um dos refrões que se repete é "tico-tico tá danado na semente do juá", verso também praticado nos calangos fluminenses, como o mostrou Cáscia Frade (1986). É uma referência ao esperto passarinho, assaz conhecido Brasil afora. A composição absorve
da cultura popular sua linguagem típica (versos e fórmulas-feitas,
expressões). Tanto mais, estão impregnados de elementos do mundo rural, algo
bem típico do calango. Mesmo vindo para a cidade, esta manifestação folclórica
traz a roça dentro de si.
Como sói acontecer
com os calangos em geral, os versos da “Linha do A” terminados em verbos,
perdem o “R” ou qualquer outra consoante final: contá (contar), imaginá
(imaginar); com muitos substantivos acontece o mesmo: jorná (jornal), lugá
(lugar). Se assim não fora a rima estaria comprometida e a principal regra do
calango descaracterizada. Com a mesma lógica, palavras oxítonas de sonoridade
fechada, são facilmente sujeitas a corruptelas de pronúncia, o que é muito
genérico no falar do mineiro e no calango não seria diferente: tocadô (tocador), tô (estou), sô (senhor), sô (sou). A necessidade de ajuste à
métrica obriga o encurtamento de palavras, seja por contração – n’água (na água), qu’eu (que eu), pra
(para) – seja por supressão – tá (está),
paia (palha), rodia (rodilha). A regra mor do bom calangueiro é esta: ajustar
qualquer pronúncia para não corromper a rima e a métrica.
Sem mais delongas,
segue a exposição dos versos coletados. Para maiores detalhes sobre o calango,
ao fim desta postagem estão disponíveis links de acesso a outros números desta
série. Resta dizer que foram inseridas notas de rodapé contendo comentários
sobre detalhes dos versos.
Meu amigo e
companheiro,
Agora eu vou lhe
contá:
Você pra cantá imagina
Eu canto sem imaginá...
Falei brincando,
No calango da
lilia!
Quando eu tô
comendo carne
Não gosto que gato
mia!
Meu amigo e companheiro
Agora eu vou lhe
falá:
Tabulero tá na
cabeça
Como letra no
jorná!
Falei brincando,
No calango da
lilia!
Quando eu tô
comendo carne
Não gosto que gato
mia!
Quando eu tô
comendo carne
Não gosto que gato
mia;
Quando eu tô
comendo carne
Não gosto que ninguém
espia...
Filho de Maria Lima,
Neto de sô Zé
Limá,
Puxa linha, sô
Antená.
Puxa a linha, sô
Antenô,
Qu’eu quero te acompanhá!
Eu puxo pra
arrebentá;
Você puxa dali
pra’qui
Eu puxo daqui pra
lá...
Meu amigo e
companheiro
Agora qu’eu vô
cantá,
Eu sô nêgo do pé
grande
Coisa qu’eu num
tenho canseira
É se eu tô a
pelejá!
Arriei o meu
cavalo,
Fui no munho busca
fubá;
Cheguei na porta
do munho
Requebrei pra lá,
pra cá!
Porta do munho,
Requebrei pra lá,
pra cá;
Na moega não tem
milho,
No caixão não tem
fubá.
Na moega não tem
milho,
No caixão não tem
fubá;
Na falta de
peneira fina
Meu chapéu coa
fubá.
Joguei meu chapéu
pra riba,
Sô nêgo da
demanda,
Sô duro de demandá;
Qué cantá comigo,
Tá duro de
pelejá...
Tava dentro de uma
venda,
Encostado no
balcão.
Numa venda,
Encostado no
balcão,
chegou quarenta
pessoas
todas de arma na
mão.
Todos me
cumprimentô,
Todos me pegou na
mão;
Me deram voz de
prisão
Disse, não tô
preso não!
Eu não tenho pai
nem mãe,
Nem parente,
geração,
Tô longe da minha
terra,
Morro não deixo
paixão...
Da minha terra,
Morro não deixo paixão,
Se eu apanhar eu
sou perrengue,
Se batê sô
valentão!
Todas cobra-carijó
Vive sempre de
porfia;
Cascavel anda de
rastro,
Caninana de rodia.
Falei brincando,
No calango da
lacraia!
Tico-tico foi na
roça
Comeu milho,
deixou a paia.
Eu sou filho do
pau-pereira,
Neto do jacarandá;
A casca do
pau-pereira
Só serve pra fazer
chá.
Se perguntá como
eu me chamo
Não sei não, minha
sinhá;
Sô nêgo da
dindinha,
Sô nêgo da
dindinha,
Sô nêgo da iaiá,
Se jogá pra baixo
deu
Se jogá pra cima
dá.
Jogá pra baixo
deu,
Jogá pra cima dá;
Isso tudo não é
muito
Eu consigo carregá!
Perguntá como eu
me chamo
Não sei não minha
sinhá,
Eu chamo sô
Lutero,
Sô Lutero,
Binidito Valadá,
Você vei cantá
comigo
Você não veio me ajudá.
Ô sô Lutero,
Você diga porque
não canta:
Você tem tão belos
versos
Tendo tão boa
garganta...
Meu amigo e
companheiro
Um caso eu vô te
contá:
Eu tô querendo alcançá.
Se você veio de
longe
Para me desafiá...
Como letra no
jorná;
Olha lá, olha lá,
Olha lá, olha lá!
Imbaúba é pau do
mato,
Aruêra é do
sertão;
Dei um tapa no
caixote
Esfolei a minha
mão.
No caixote,
Esfolei a minha
mão,
Vou chamar o meu
irmão,
Um chama Pedro
Outro chama
Sebastião.
Meu irmão chamava
Pedro,
Outro chama
Sebastião,
A imbaúba é pau do
mato
Vocês pensa que eu
tô perdido
Eu não tô perdido
não...
Eu subi de pau
arriba
Eu subi
arreparando:
Aprígio tava
durmino,
Malaquias cochilando.
Tava dormindo,
Malaquias
cochilando,
Valha-me, Nossa
Senhora,
Ôh, minha Santa
Germana.
Valha-me, Nossa
Senhora,
Ôh, minha Santa
Germana,
Eu num sei o que é de
fazê
No meio dessa
semana...
Falei brincando,
No calango da
lacraia!
Tico-tico foi na
roça,
Comeu milho,
deixou a paia!
No tempo que eu
era bobo,
Tempo da minha
bobage,
Beijava toco na
roça,
Pensava que era
image.
No tempo que eu era
bobo,
Tempo da minha
bobiça,
Comia toicinho
assado
Pensava que era
linguiça.
Dia qu’eu aqui
cheguei
Me mandaram
trabalhá,
Eu en’vinha
Capiná massambará;
Eu sô coco da
baía,
Na minha porta não
passa,
Se passá de manhã
cedo,
De tarde tá
derrubado...
Falei brincando,
No calango da
lacraia!
Macaco
vai na roça,
Come milho, deixa
a paia.
Tocador dessa
sanfona
Merece comer
galinha,
Casar com uma das
moça
Falar das outras
com Aninha.
Tocador dessa
sanfona,
Tem o dedo de
papel,
Quando ele pega a
tocar,
Parece um favo de
mel!
Dona mais da
falsa,
Também sabe que
ele tem,
Quando ela me vê
chorando,
Chora comigo
também.
Como Chiquinha não
tem,
Como Totonha não
há;
Chiquinha não quer
qu’eu dê,
Totonha vem e me
dá.
Chiquinha não quer
qu’eu dê
A Chiquinha tá
doente,
E eu tô passando
má,
Chiquinha me deu
veneno
Na colher de tomar
chá.
Ai, fui rodando,
Fui rodando;
Fui rodando
E fui no fundo.
Fui rodando,
Eu fui rodando;
Fui rodando
E fui no fundo.
Que aconteceu com
o Lutero,
Me deixou sozinho
no mundo!
Coitadinho do
Lutero,
Todo mundo fala
dele,
Ele é muito
pequenino,
Mas eu gosto muito
dele!
Levantei sozinho,
Sozinho sem mais
ninguém;
Quem não me
conhece chora,
Que dirá quem me
quer bem.
Conhece chora,
Que dirá quem me
quer bem;
Pelo jeito qu’eu
tô vendo,
Comigo, não vai
ninguém!
Levantei de manhã
cedo,
Sem ter nada pra
almoçá,
Passei a mão na
espingarda
Bati pro mato
caçá.
Caçá fruta,
Pra matar a minha
fome;
O mato arrespondeu
Fruta verde não se
come!
Quem quiser cantar
comigo,
Passa banha no
topete.
Cantar comigo,
Você não é dos
primeiro
Passa perto do
papai
Toma bênção do seu
mestre!
Quem quiser cantar
comigo,
Dê um, dois, pulo
na rua,
Você não é dos
primeiro
Falei brincando,
No calango da
lacraia!
Periquito vai na
roça,
Come o milho, deixa
a paia.
Filho do
pau-pereira,
Neto do jacarandá,
Dei um pulo pra
cima,
Caí no mesmo lugá.
Dei um pulo pra
cima,
Bati no mesmo
lugá,
Meu amigo e
companheiro,
Um caso eu vou te
contá.
Meu amigo e
companheiro
Um caso eu vou te
contá,
Tico-tico come
verde,
Não espera madurá.
Tico-tico tá
danado
Na semente do juá.
Quando eu canto,
Canto certo na
toada,
Eu acompanho a
volta toda
Canto certo,
Canto certo na
toada,
Eu acompanho a
volta toda
Da sanfona
pianada.
Senhores que estão
aqui
Um favor eu vou
pedi
O verso qu’eu tô
cantando,
Tô tornando a
repeti.
Valha-me, Nossa
Senhora,
Santo Antônio
Livradô,
Fico triste,
apaixonada,
Quando morre um
cantadô.
Você diz que vai
embora,
Eu começo chorá,
Eu tiro sangue da
veia
E o coração do lugá...
Valha-me, Nossa
Senhora,
Ai, meu Deus, o
que será?
O Lutero vai
embora
Eu começo chorá!
Estou cantando,
No batido da
correia,
Quem quiser cantar
comigo,
Se não for forte
bambeia!
Cantar comigo,
Se não for forte
bambeia,
Quando eu tô
fazendo a barba,
Meu bigode
balanceia!
Não tenho medo da
chuva,
Nem também do trovão,
Tomara que chova
muito
Pra lavar meu
coração.
Onde está o
Lutero,
Por ele pergunto
eu;
Nunca mais
apareceu...
Notas e Créditos
*Texto, notas,
acervo e pesquisa: Ulisses Passarelli
** Agradecimentos especiais ao sr. Luthero Castorino da Silva, pela gentileza do apoio irrestrito a esta pesquisa. Igualmente manifestamos inolvidável gratidão à informante.
*** Para saber mais
sobre o calango leia as outras partes desta série:
Referências bibliográficas
CASCUDO, Luís da
Câmara. Dicionário do folclore brasileiro.
Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.]. 930p. Verbetes: Cabra; Calango
FRADE, Cáscia. (Coordenação). Cantos do Folclore Fluminense. Rio de Janeiro: Presença / Secretaria de Estado de Ciência e Cultura / Departamento de Cultura / INEPAC / Divisão de Folclore, 1986. 234p.
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