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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




domingo, 30 de outubro de 2016

Brincadeiras infantis - parte 4: cantigas de roda

Em seguimento à série, o Blog apresenta mais uma parte das lúdicas da criançada, desta feita, uma das mais célebres, as cantigas de roda, também conhecidas por danças de roda e rondas. É bem conhecido o fato de sua extensão geográfica. Todas as regiões a conhecem e tem seu próprio repertório, variável a cada época, surgindo novas cantigas, relembrando as do passado, esquecendo outras... Algumas das peças cantadas / dançadas são mais difundidas, outras nem tanto. 

Contudo o que mais salienta além da lúdica em si e do conteúdo folclórico é propriamente a socialização das crianças, que confere ao ato sua plenitude de significação. Confraternizam-se os pequenos de mãos dadas, girando e girando em alegria e descontração, cantando as mais inocentes e saudosas canções, que muitos de nós também cantamos na meninice.

A pureza dessas rondas se confronta de imediato com as brincadeiras modernas, especialmente as eletrônicas que semeiam violências, vícios, emulação, imediatismo e ainda o fechamento em si mesmo, como se o jogador se metesse num casulo de auto-suficiência. Dentro de um imenso contexto social, cuja análise renderia muitas páginas, pontos de vistas e estudos especializados, essa questão foge a alçada de uma mera postagem e aqui é apenas pontuada.

Fato é que a estrutura social hodierna com a vasta gama de novas opções de entretenimento oferecida ao menor de idade, acaba por seduzi-lo a novas brincadeiras e outro estilo de vida e não tarda abandonar as antigas quando mesmo, sequer as conhece, pois a vida urbana já não as propicia.

Análises e lamúrias à parte, as rondas consistem em reunião de crianças de ambos os sexos, mormente pelo menos nessa região, com predominância das meninas, em espaço aberto, para a prática de cantigas tradicionais, passadas a cada geração de memória e oitiva, vivenciando-as e aprendendo-se pela repetição, nas praças, largos, beiras de rua, quintais amplos, adros das igrejas, etc. Logo alguma criança lembra de uma e provoca o início da cantoria, de forma espontânea e começam automaticamente a repeti-la, ou dramatizá-la com gesticulação condizente. Isto porque algumas são apenas cantadas. Não é raro sentarem-se de penas cruzadas em disposição de círculo enquanto as entoam. Outras vezes, como é de praxe, de mãos dadas vão girando em círculo, ritmadamente.

Noutros tempos, nas escolas, isto era muito comum. No recreio, brincava-se de roda, de pique e outros. Não era raro que a própria professora se metesse no meio de mãos dadas com seus alunos.

A letra das cantigas é deveras singela. Trata do próprio cotidiano, de assuntos pueris, cita elementos da natureza. Fala até de namoro mas não se atreve a passar das palavras. Quem não se lembra do "Ciranda, cirandinha!" , "Fui no Itororó" , "Caranguejo não é peixe" , "Demarré" , Terezinha de Jesus" , "Pirulito que bate, bate" , "São João, da-ra-rão!" e de outros clássicos do gênero? Mas recordemos agora de outros um pouco menos afamados, senão mesmo, mais raros:

"Samba, crioula,
que veio da Bahia,
pega essa criança
e joga na bacia.

A bacia é de lata,
areada com sabão,
pega essa criança
com seu camisolão."

Nem gasta dizer da antiguidade desta cantiga que decerto remonta ao período da escravidão, possível alusão às mucamas que cuidavam do serviço doméstico, entre os quais banhar o sinhozinho ou a sinhazinha na velha bacia, dos tempos que roupa de dormir era camisolão. Crioula, informamos novamente, é o nome que se dava outrora aos nascidos no Brasil, mas filhos de pais africanos. Era usado para distinguir o escravo nacional (crioulo) do traficado da África (negro da costa).

A natureza serve de tema inspirador:

"As flores já não crescem mais,
até o alecrim murchou;
o lambari morreu,
o sapo se mandou,
porque o ribeirão secou,
porque o ribeirão secou."

Como já foi dito, a gesticulação específica acompanha muitas cantigas. Em alguns exemplares há variedade intensa de gestos, movimentos e ações coletivamente aceitos e compreendidos, de tal forma que a linguagem de sinais se soma para ampliar a comunicação pela cantiga:

"Eu sou um boneco de pau,
me chamo José Pica-pau.
Eu sei agachar, (as crianças se abaixam)
eu sei levantar (elas se erguem)
eu sei bater palmas pro ar!" (batendo palmas)

Outras tem finalidade educativa, estimuladora ou instrutiva:

"Mamão é bom,
bom pra valer,
faz ficar forte
também crescer.

Lima, laranja e tangerina,
todas essas frutas tem vitaminas.
Agora todos prestem atenção:
papel e casca não vai ao chão!"

Era natural que as próprias professoras aproveitassem dessas cantigas para incrementar o processo educacional pela facilidade da linguagem acessível e de fácil absorção pela criançada. Mas não se constituía num aprendizado formal, institucionalizado. Nesse contexto específico as cantigas de roda eram atividades lúdicas dos momentos de confraternização, de uma espontaneidade sublime:

"O sino da escola
_ belém! Tocou,
dizendo que a aula já terminou.
Adeus minha professora,
adeus meus coleguinhas,
contente vou agora
ver a minha mamãezinha."

O amor ou pequenos idílios também tematizam alguns cantos, como este, muito antigo:

"Por cima do arvoredo,
de baixo do laranjal,
eu vi Dona Colondrina
com Dom Carlos a brincar.

Da cintura para cima,
nove beijos eu vi dar;
da cintura para baixo
eu quero me calar."

Como no caso acima, o palavreado ou a presença de arcaísmo denuncia a longevidade da ronda:

"Minha casa tem limão,
tem limão, tem melancia,
faz doce, sinhá?
faz doce, sinhá!
Faz doce de cocadinha."

Há ainda aquelas cantigas provocativas, por vezes de um insulto bem humorado, mas nada agressivo:

"Eu vi o sapo,
na beira da praia,
quando o sapo canta, maninha,
ela levanta a saia!"

Obviamente inspirado no tradicional acalanto, inclusive mantida a mesma melodia. Outra:

"Borboletinha, foi na cozinha,
fazer chocolate para a madrinha.
Poti, poti!
Perna de pau, olho de vidro,
nariz de pica-pau,
pau, pau!"

E ainda na mesma linhagem:

"A-do-le-ta, je-pe-ti-po-lá,
nesse café com chocolate
 e açúcar e abacate!
A-do-le-ta.

Amarelo e preto,
puxa o rabo do tatu
quem saiu foi tu,
cara de tatu!
olho de urubu!"

É um jogo de habilidade: os brincantes frente a frente, com as mãos espalmadas, a batem alternadamente com a criança que está adiante, no tempo forte da música, palma com palma, depois na mão oposta, depois cruzando à direita e à esquerda, com certa velocidade, o que demanda destreza. Quem erra sai da brincadeira sob o chiste dos colegas.

Relativamente comuns são as cantigas que replicam a última sílaba de cada verso como um eco: 

"A girafa barriguda, dá-dá!
Tem um carro, rô-rô!
De corrida, dá-dá!
Lá no barro, rô-rô!
Ela derrapou, pô-pô!
Ela berrou, ela berrou,
mas não parou..."

"Fui andando na floresta, tá-tá-tá!
E de repente, ti-ti-ti!
Vi uma oca, cá-cá-cá!
Saiu de lá um indiozinho, nhô-nhô-nhô!
Olhou pra mim, olhou pra mim
e fez assim: _ húúúúúúúúú!" 
(batem a mão na boca imitando um brado de guerra indígena)

"A barata diz que tem, tem-tem!
Sete saias de filó, ló-ló!
É mentira, rá-rá!
da barata, tá-tá!
Ela tem, tem é uma só!
Rá! Rá! Rá!
Rô! Rô! Rô!
Ela tem é uma só!"

Este pequeno mostruário de cantigas apenas evoca o tema. Exige outro volume para seguimento ao repertório.

Estes versos parecem não ter fronteiras. Várias cidades os conhecem, tal e qual ou em pequenas variações de melodia e letra. Outrora estiveram muito em voga. Nos subúrbios e nos arraiais ainda sobrevivem com certa escassez. Na memória dos adultos resta uma lembrança desse giro dançarino, dessa circularidade cantada e gesticulada, como se estivesse a acenar de antanho, no eco de uma frase: "nunca deixe morrer a criança que existe dentro de você!"

Notas e Créditos

* Texto: Ulisses Passarelli
** Informante: Maria Aparecida de Salles, Santa Cruz de Minas, 1994-1997.

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