"Cobrão" ou "cobreiro" é o nome popular de uma doença virótica que a ciência conhece por herpes-zóster, gerada pelo mesmo vírus causador da catapora, porém sob outra forma de manifestação. Contudo, CASCUDO [s.d.] afirmou acertadamente, que nos meios populares é o nome que se aplica a "qualquer dermatose zosteriforme". De fato, outras manifestações cutâneas, seja de natureza alérgica ou inflamatória, desde que manifestem semelhança física e de sintomas com o herpes-zóster, terminam batizadas ou classificadas na categoria cobreiro, como se verifica por exemplo, na região das Vertentes. Disse ainda o mesmo autor que é "expressão empregada em todo o Brasil, corresponde à velha palavra cobrelo" e ainda que "a origem portuguesa da terapêutica popular brasileira é evidente."
A área da pele afetada fica repleta de vesículas dolorosas, ardidas e de grande rubor. É uma doença que exige tratamento médico especializado e pode inclusive deixar sequelas significativas. Mas ao povo em geral a concepção corrente se pauta na crença que cobreiro se cura com reza e mais propriamente benzeção _ não qualquer uma, mas com as palavras e gestos específicos.
Mesmo em minha infância em São João del-Rei era acometido muitas vezes pelo tal do cobreiro. Ficava com a pele toda empolada. Então, minha mãe me recomendava às benzeções de Dona Arminda Rios, na Caieira, ou de Dona Maria Baixinha, na "Beira da Praia" (Rua Antônio Josino Andrade Reis, no Centro), ambas falecidas a muito tempo. E aqui as cito como registro de uma técnica imemorial e como manifesto admirado de gratidão pela sua fé e saber. Tantas vezes as vi fazendo em mim mesmo que gravei a fórmula e ao repeti-la, parece que as revejo, a trinta e cinco anos ou mais, idosas, concentradas no mister, com três pequenos talos (pecíolos) de mamoneiro à mão, dando-lhes incisões com uma faca:
"Cobreiro... bicho mau!
O que te corto?
Te corto a cabeça (davam um talho), o meio do corpo (outro talho) e o rabo (mais um talho)...
Assim mesmo eu corto!"
Sempre diziam que era em louvor das três pessoas da Santíssima Trindade e balbuciavam a meia voz três ave-marias.
A operação se repetia três vezes com cada um dos três talos. E para completar devia se repetir do mesmo jeito por três dias. Antes de cada incisão, passavam a faquinha em cruz sobre o local do cobreiro como se o cortassem, no ar, sem tocar a pele para não machucar. Os talos iam para o sol a secar, ou para a beira de fogão à lenha. A ideia era: enquanto o talo de mamona (Ricinus communis L., euforbiaceae) desidratava, o cobreiro secava junto, curando.
Pois todos se admiravam e eu inclusive, porque no primeiro dia parava de coçar e arder; no segundo criava uma casca como se estivesse secando e no terceiro, só tinha um vestígio sem importância. Então diziam: "graças a Deus! Vou rezar o terceiro dia pra completar a simpatia mas precisão não tem mais..."
Bem mais tarde deparei com outra formulação no Bairro São Dimas(*):
"Tava andando por um caminho,
com o Menino de Deus encontrei.
_ Que tem, senhor?
_ Cobreiro!
_ Não há nada que cura?
_ Ramos verde, água do monte..."
Esta fórmula não é exclusividade nossa, digo, regional. Sílvio Romero (apud CASCUDO) publicou ainda nos oitocentos ("Cantos Populares do Brasil"):
"Pedro, que tendes?
Senhor, cobreiro.
Pedro, curai.
Senhor, com quê?
Água das fontes,
erva dos montes."
Na versão do Bairro São Dimas, além da curiosa fórmula dialogada, a benzedura se completava com uma ação: o benzedor devia molhar três ramos verdes de alecrim ou incenso de jurema em água corrente e com eles fazer um círculo na área afetada, rodeando por fora, como se o molhado cercasse a pele acometida. Então se fazia uma cruz sobre. Depois jogava o ramo para trás. O procedimento se repetia três vezes.
Em Santa Cruz de Minas, o querido e saudoso benzedor Sr. Silvério, na Terra Arada, não dispensava o uso do terço como objeto sagrado dessas benzeções, também salpicando água sobre o local doentio por meio de um raminho de arruda, e afirmava, em suas palavras: "Não sou eu que benzo; é São bento que benze!". São Bento, cumpre lembrar, é o grande e prestigiado protetor contra veneno de bicho, peçonha: cobra, aranha, escorpião, lacraia, marimbondo, taturana, abelha.
As formulações teimam em repetir o número três, garantia mágica de sucesso. É o que reza a crença. A tradicionalidade evoca o nome do apóstolo pescador, Simão Pedro, em diálogo com Jesus, que ensina a receita com elementos da natureza, água pura, ramo fresco, símbolo do alívio das dores, refrigério do queimor. A sacralidade das palavras em regime de benzedura é evidente e eloquente.
Lembro ainda, que diziam as senhoras em São João del-Rei e mesmo na vizinha Santa Cruz de Minas, que o cobreiro tinha que ser cortado rápido com as preces devidas pois crescia circulando o corpo em vergões e se ao lastrar emendasse, isto é, unisse as duas metades do corpo em vermelhão, o sujeito morreria. Não dava mais tempo de benzer. Na verdade é uma velha crença. O herpes-zóster é unilateral: acompanhando a trajetória de um nervo, se interrompe na linha mediana do corpo.
O nome cobreiro se deve à crendice popular de que é causado por cobra. Acreditam que se uma serpente passar sobre uma roupa jogada num canto ou quarando num gramado e a pessoa vestir aquela roupa, pega cobreiro. Outrossim, se o indivíduo deitar-se num lugar onde passou uma cobra também pegará cobreiro e ainda, se a serpente esbarrar diretamente na pessoa.
Em Santa Cruz de Minas (**) soube de um detalhamento a mais: cobreiro se pega também de outros bichos: aranha, sapo e perereca _ tudo pela mesma forma de contágio. Cobreiro de aranha e de cobra é "seco", ou seja, as lesões apresentam aspecto de cascas. Coberto por crosta mais ou menos espessa, não liberam exsudato. Cobreiro de sapo e de perereca é "molhado", porque a pele fica úmida, drenando líquidos, "chorando água", conforme expressão coloquial. É uma alusão imaginária à vida terrestre ou aquática desses animais. Os cobreiros mais arredios à cura supõem serem provocados pelo sapo. Perereca ao pular sobre alguém em sua fuga espavorida, deixa um líquido, "xixi", dizem, por imaginá-lo urina, que acreditam transmite cobreiro de imediato.
É o que diz o povo. Daí as mães se zangarem com seus filhos que estão sempre brincando pelo mato, pois ora voltam com cobreiro, ora sapecados de taturana, empolados por aroeira, picado de formiga... mas não tem jeito, criança brinca com liberdade e alegria e sempre volta à natureza atraente.
Referências na Internet
Herpes-zóster (Cobreiro). Site Drauzio. http://drauziovarella.com.br/envelhecimento/herpes-zoster-cobreiro-2/ (acesso em 25/08/2016, 20:33h)
Referências Bibliográficas
CASCUDO, Luís da Câmara.
Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d]. 930p. Verbete: cobreiro.
Notas e Créditos
* Informante: Luís Santana, 25/09/1998
** Informante: Elvira Andrade de Salles, 1998
*** Texto: Ulisses Passarelli
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Adorei o texto e as histórias, essa tradição nunca deve ser esquecida.
ResponderExcluirDeus dá geito para tudo
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