Acalanto ou cantiga de ninar é o nome que se dá a
pequenas e simplórias canções, que por força da tradição, os adultos cantam
baixo para acalmar os bebês, de forma propositalmente suave, doce e por vezes
repetitiva, para induzir o sono.
Pais e mães, madrinhas e padrinhos, avós e tias
zelosas, conservam o costume em cada família, a bem da verdade, no país
inteiro. A modernidade dos costumes e o progresso tecnológico ainda não baniu
de todo este hábito carinhoso. E não é exclusividade brasileira. Equivale do
ponto de vista musical ao berceuse
francês e o lullaby inglês, segundo
Oneyda Alvarenga (*). Diz a autora que a palavra acalanto é erudita; a designação
popular é cantiga de ninar, e ainda, que, “foi
utilizada por extensão e pela primeira vez pelo compositor brasileiro Luciano
Gallet”.
Renato Almeida (**) atribui a origem portuguesa de
nossas cantilenas para criancinhas dormirem, dizendo-as ser “canção ingênua, sobre uma melodia muito
simples (...) é uma das formas mais
rudimentares do canto, não raro com uma letra onomatopaica, de forma a
favorecer a necessária monotonia, que leva a criança a adormecer.”
Cascudo, porém, dá pistas que além de Portugal nossos
próprios indígenas também conheciam tais cantigas, ditas de macuru (berço). Tanto mais, existem em
outras nações europeias: “kalebja
polonesa, wiegenlied alemão, canción de cuña espanhola.” E fornece vasta
bibliografia a respeito de sua existência no novo e velho mundos. Sobre a
terminação de certos versos com som de vogais entoadas estendidas, propôs:
“Em quase todos os acalantos, o final adormecedor é
uma sílaba que se canta com várias notas, á-á-á-á, ú-ú-ú-ú, o ru galaico, ainda
popular nas cantigas de berço portuguesas. Creio que esse processo, de
entonação primária, é uma reminiscência melismática, um índice oriental de sua
origem, através da Península Ibérica.”
Obviamente que Minas Gerais como celeiro de tradições
não desconheceria os acalantos, tal e qual a região das Vertentes. Resistindo
aos anos ainda ouvimos em São João del-Rei:
“Dorme,
neném,
Tutu já vem
pegar,
Detrás do
murundu,
Com pedaço de
angu...”
Ou
outro conhecidíssimo:
“Nãna, neném,
Que a cuca
vem pegar!
Papai, foi
pra roça,
Mamãe, foi
passear.”
Ambos aludem a mitos daquilo que
CASCUDO (1983) muito bem colocou como parte do “Ciclo da Angústia Infantil”. Tutu e
cuca são seres místicos e míticos, monstros do imaginário popular invocados à
guisa de assombro para pegar a criança que teima em não dormir, permanecendo
nos brinquedos ou na pirraça, sobrepondo-se ao cansaço dos pais:
“Não o
descrevem nem há a menor alusão a um detalhe físico. Sabe-se apenas que, à sua
simples menção, as crianças fecham os olhos e procuram adormecer sob o império
do medo. O Tutu vive nos lábios das amas de todo o Brasil. (...) Tutu é uma corruptela da palavra quitutu, do
idioma quimbundo ou angolês, significando papão, ogre. Correlatamente decorrem
os sinônimos de temível, poderoso, assustador” (p.167)
O povo concebe mais de um tutu, porque os denomina especificamente... "tutu do mato", "zambeta" (ou cambeta, que significa coxo), "marambá":
"Sai tutu-zambeta,
de cima do telhado,
deixa meu neném
dormir seu sono sossegado".
"Vai-te embora, óh tutu,
óh, tutu-marambá,
senão o pai do menino
manda de matá!"
Já a cuca parece ser alteração do nome “coca”, monstro
ancestral do imaginário ibérico, por vezes figurado como um dragão
aterrorizante.
Outros acalantos célebres também correntes aqui seguem
transcritos tal como os são-joanenses o
entoam:
“Sapo-cururu,
Na beira do
rio,
Quando o sapo
canta, ó maninha,
Diz que está
com frio...
A mulher do
sapo,
Também está
lá dentro,
Fazendo redinha,
ó maninha,
Para o
casamento.
A mulher do
sapo,
Foi quem me
criou,
O marido
dela, ó maninha,
Foi meu
professor.”
Redinha, diminutivo de rede, parece antes artefato de
tecido para se deitar, pendente entre dois suportes que propriamente a rede de
pesca; ou ainda pode ser alteração de rendinha, renda, roupinha, peça do
enxoval. É como se depreende pela alusão ao casamento.
Quem não ouviu...
“Boi, boi,
boi,
Boi da cara
preta,
Pega esse
menino,
Que tem medo
de careta!”
No norte mineiro, pelas bandas de Pirapora, ouvi em
1987 uma curiosa variante regional:
“Boi, boi,
boi,
Boi da cara
branca,
Pega esse
menino,
Que tem medo
de carranca!”
Certamente é uma referência às figuras de proa, as
famosas carrancas entalhadas em madeira, figuras monstruosas de dentes
pontiagudos e ameaçadores, instaladas na ponta das barcas do Rio São Francisco.
Meu avô materno cantou-me uma assaz interessante que
dizia muito antiga, dos tempos do cativeiro, e que não encontrei em outras
fontes:
“Dróme,
dróme, Nhônhozinho!
Nhônhozin’
num qué drumi;
Nêgo véio tá
cansado,
Nhônhozin’
num qué drumi...”
Registrado tal e qual sua pronúncia. O sentido refere
a um escravo a quem foi dada a função de ninar o menino branco, filho do
senhor: senhorzinho, sinhozinho, nhônhozinho.
Em Santa Cruz de Minas além das clássicas cantigas de
ninar aqui já citadas correm estas:
“Nina, neném,
Do meu
coração!
Lú-lú-lulú!
Lú-lú-lulú!”
“Quando eu
era pequenina,
Nem sabia
falar,
Minha mãe já
me ensinava
Ao Deus do
céu adorar.
Entre beijos
e carícias
Ensinava o
nome seu,
Ela dizia: é
Papai do Céu!”
Bastante significativo é este acalanto informado pela
mesma fonte de Santa Cruz:
“Passa,
passa, manjerona,
Eu também
queria ir.
Manjerona é
mãe do sono,
Quem tem sono
quer dormir.
Passa, passa,
manjerona,
Eu também
queria ir.
Tenho sono e
não durmo,
Fico só
pensando em ti.”
A
manjerona é uma erva fina, rasteira, de folha miúda, muito cheirosa, da qual se
faz um chá saboroso se adocicado, que a medicina popular atribui a propriedade
de calmante e capaz de aliviar cólicas geradas por acúmulo de gases. As mães e
avós costumam dar na mamadeira um pouco de manjerona aos pequeninos para
favorecer o sono quando o choro se impõe e o ventre se mostra inchado (***). Daí
a expressão “mãe do sono”.
Por
outro lado, os indígenas tinham muito arraigado a noção de mãe, ci, uma mãe
para cada coisa ou elemento da natureza. Esta concepção, na formação étnico-cultural passou ao povo brasileiro como parte de seu folclore. Aqui
mesmo nas Vertentes, ouvimos falar em mãe da lua (personificada na figura do
pássaro urutau), mãe da pedreira, mãe da cachoeira, mãe do corpo (endométrio,
camada interna do útero). Será a manjerona uma personificação, ou melhor,
materialização do conceito de “mãe do sono”, um ente simbolizado numa planta
votiva?
Divagações
à parte, encerra-se esta postagem ainda com as memórias avoengas de São João
del-Rei, remetendo a uma antiga modinha melancólica, cuja autoria desconheço, e
que no seu bojo se expressa claramente a uma cantiga de ninar:
“A vida é
mesmo assim,
Eu bem sei, posso
afirmar,
Ainda que
resista dores
De não
suportar.
A vida é
mesmo assim,
Eu julgo por
mim e pelo desdém.
Eu ainda bem
me lembro
Quando eu era
criancinha,
Deitado numa
redinha,
Na sombrinha
do sertão
E a minha
mãezinha
Soluçava então
E a pobre da
velhinha
Entoava esta
canção:
Dorme, dorme,
filhinho,
Meu anjinho
inocente;
Dorme queridinho,
Que mamãe
está contente.
Agora desprezada
Sem ninguém
me querer bem
Eu vivo
abandonada
Por este
mundo além.
A vida é
mesmo assim
Eu julgo por
mim e pelo desdém."
Referências
Bibliográficas
CASCUDO,
Luís da Câmara. Dicionário do Folclore
Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro [s.d.]. 930p. Verbete: Acalanto.
CASCUDO,
Luís da Câmara. Geografia dos Mitos
Brasileiros. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: USP, 1983. 345p. p.167 e
ss.
Notas e
Créditos
* In:
“Comentários a alguns cantos e danças do Brasil”, Revista do Arquivo Municipal,
n.80, p.209. Apud CASCUDO [s.d.].
**
In: “História da Música Brasileira”, p.106. Apud CASCUDO [s.d.]
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Como procedimento este blog não recomenda qualquer uso ou prática da chamada “medicina
popular”, tais como ervas, raízes, cascas, sementes e outros. Apenas os
registra pelo valor etnográfico.
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Informantes principais: São João del-Rei – Aluísio dos Santos; Santa Cruz de
Minas – Elvira Andrade de Salles. Aproximadamente 1995-6.
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Texto: Ulisses Passarelli
Estou há muito tempo procurando esta ultima cantiga de ninar. Meu avô cantava para meu pai, que cantava para mim. Não vou deixar essa tradição morrer. Obrigada por postar ela aqui
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