Das muitas brincadeiras tradicionais das crianças, o pique é uma das mais interativas e queridas. Sua popularidade e variedades país afora são imensas.
Uma definição interessante encontramos no site do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular:
"Brincadeira que consiste basicamente em corridas e perseguições. De modo geral possui os seguintes componentes: o perseguidor, que corre atrás dos outros participantes, e o pique, que pode ser um objeto, um local, uma palavra ou um gesto, com a função de colocar os participantes a salvo da perseguição."
Pela forma como essa lúdica se desenvolve muito bem se poderia classificá-la como um jogo. GARCIA & MARQUES (1991, pp.29-33) expuseram boa coletânea de definições de "jogos" e classificando-os, esclareceram modalidades quanto ao uso de objetos, quanto à emissão vocal, quanto à ação e características principais. Esta última inclui "jogos de correr e pegar" e "jogos de esconder" (dentre outros), onde naturalmente, podemos ajustar o pique.
Aqui nas Vertentes o pique é muito usual em várias localidades. Mas doravante descrevo tal como vi e brinquei inúmeras vezes em São João del-Rei na década de 1970, quando era efetivado sobretudo (mas não exclusivamente) por meninos. As regras não eram a bem da verdade rígidas e até mesmo mudavam em pequenos detalhes conforme a região. E muitos desses detalhes se perderam em minha memória... Contudo, lembro ainda, que brincávamos na Caieira (hoje Bairro São Judas Tadeu) de:
- Pique-esconde: o mesmo que "esconde-esconde". Ao meu tempo de criança era o mais popular dos piques. A partir de um sorteio (*), a um dos brincantes cabia a função de "pegar" os outros, isto é, achá-los onde se escondessem. Dizia-se então: "o pique está com fulano...", referência ao "pegador". Definia-se o local do pique, uma referência qualquer _ um portão, mourão, árvore, parede, pedreira, etc. Ali era o pique, um ponto neutro. No pique o pegador virava-se de costas para os meninos, tampava os olhos e contava em voz a alta até ... tal número (20, 50, 10... a combinar). Contar rápido ou olhar a direção que os colegas fugiram para esconder era tido por trapaça e decorria muita reclamação, que acabava por anular aquela "queda" e recomeçava o processo. Queda é cada rodada completa do jogo. Durante a contagem, os meninos se escondiam: atrás de portas, debaixo de camas, dentro de armários; buracos, pedreiras, na sombra de um cupinzeiro, numa moita, qualquer lugar enfim, desde que dentro de um perímetro pré-definido e sob obrigação do pegador vasculhar. O silêncio era absoluto. Quando avistava um guri escondido, logo o pegador corria em disparada até o pique onde batia a mão e anunciava em alta voz: "um, dois, três... Henrique!" (João, Chico... seja qual fosse o nome do achado). E aquele que foi anunciado estava a partir de então fora da brincadeira e devia sair do esconderijo revelado. Se ele tivesse dúvidas se fora realmente encontrado devia chegar até o pegador e perguntar em protesto. Tendo a resposta, se conformava, ou tentava blefar, que não era ali que se escondera, por vezes, discutindo, mas a palavra do pegador sempre falava mais alto. Na sequência ia procurar os demais e assim com cada um, até achar todos. Se último estava num local muito difícil o pegador por vezes ia ao pique e gritava sua desistência. O moleque oculto se revelava então, sem dizer onde estava. E a brincadeira recomeçava mas o pegador não mudava, era o mesmo. Mas se achava a todos, havia novo sorteio para definir o novo pegador. Se quem já foi pegador participava ou não do novo sorteio era um detalhe de regra variável conforme a região.
- Pique-lata: muito semelhante ao pique-esconde, porém no pique ficava uma lata que funcionava como mecanismo que permitia o recomeço do jogo. O pegador ao achar uma criança e correr ao pique anunciava o nome da mesma, batendo estrepitosamente a lata. A diferença maior residia no fato de que uma das crianças que se mantinha no esconderijo podia sorrateiramente sair dele, e esgueirando-se sem ser vista pelo pegador corria ao pique e batia na lata gritando o nome de um colega já achado, "salvo, fulano...", o que o conferia anistia. Com isto, o achado podia voltar a se esconder o que o fazia imediatamente, porque o pegador ao ouvir o rival batendo na lata corria ao pique. Se os via por aquelas imediações ainda, na suposição que não houve tempo para esconderem, bastava anunciar o nome de ambos para que os dois saíssem do jogo. Mas se os dois, salvo e salvador, se mantivessem no pique, estavam imunizados. O pegador chegava, os via ali e nada podia fazer. Tinha que se voltar de costas e contar de novo para dar tempo deles se esconderem. No mais, era como o pique-esconde.
- Pique-pega: bem mais agitado, consistia numa imensa correria desordenada, caótica em verdade, do pegador atrás de um punhado de outras crianças participantes. Ninguém escondia. Ficava à vista e provocava o pegador a correr atrás delas, vaiando, gritando seu apelido, pondo alcunhas pejorativas inventadas na hora. O pegador corria daqui e dali. Pegar não era agarrar, embora acontecesse; bastava tocar a mão, a ponta dos dedos. Quem fosse pego, estava fora. Assim seguia, até pegar todos. Se o perseguido estava exausto ou percebia que o pegador corria mais que ele, fugia para o pique onde gritava: "Salvo!", resguardando-se. E permanecia em descanso por curto prazo e aguardava melhor oportunidade para voltar ao corre-corre. Outra fórmula de salvamento muito tradicional que havia era versejada, em declamação rápida:
"Tô no pique,
o pique é meu;
um, dois, três,
salve eu!"
- Pique-bandeira: modalidade de pique no qual o perseguido, driblando o perseguidor em correrias sem fim, se tornava imune a ser pego se alcançasse certo ramo ou galho arrancado e colocado num ponto específico (o "pique"). Bastava por a mão no ramo (chamado bandeira) e erguê-lo. Era o sinal da imunidade ou anistia. E o perseguidor tinha que correr atrás de outro guri. O alcançado não saía exatamente de jogo mas ficava parado onde fora alcançado, o que se dizia "congelado". A libertação do congelado se dava por invasão do time rival no campo oposto, tocando-lhe e gritando seu seu nome. Tudo muito rápido porque se fosse tocado ficava preso no campo inimigo. As crianças ficavam num campo retangular dividido ao meio. Cada metade do campo ficava uma turma em igualdade de número e de cada lado existia um pegador que invadia o campo oposto para pegar as crianças opostas, sempre provocativas. Ao serem perseguidas, negaceavam, driblavam e só achavam porto seguro na bandeira do pique, sempre de seu respectivo lado, nunca do oposto. O time que pegasse a todos os opostos primeiro ganhava. Nova partida ou queda podia mesclar os participantes de ambos os times, compondo novas equipes.
- Pique-vara: era o mais brutal e as mães sempre repreendiam os filhos por brincá-lo pois chegavam em casa com vergões na pele. Sorteava-se o pegador. Ele se virava de costas para fazer a contagem. Os demais brincantes rapidamente ia esconder uma pequena vara (geralmente de bambu ou de assa-peixe), pré-escolhida e desfolhada, verde e flexível, em lugar consensual que só o pegador não sabia. Finda a contagem, partia o pegador do pique, célere para procurar a vara. Os colegas o acompanhavam em proximidade dando dicas: "xiii... está gelado!" (muito longe da vara), "está frio!" (longe), "esquentando" (indo para a direção da vara), "quente" (próximo), "muito quente" (quase chegando ao esconderijo), "fervendo" (em cima do local), "ferveu!" (achou) e a molecada corria em disparada rumo ao pique, em ritmo de fuga desesperada porque o pegador, de posse da vara, perseguia os participantes dando-lhes varadas até chegarem ao pique, onde ficavam imunes e não podiam mais serem atingidos. Para imunidade deviam permanecer com a mão no pique. Provocadores tiravam a mão e faziam caretas, mostravam-lhe a língua, clamavam seu apelido, punham-lhe defeitos de lerdeza. E as varadas eram impiedosas, mas de imediato se refugiavam no pique. Não raro acabava em choro e briga. Choro pela dor; briga pelas provocações excessivas ou abuso do pegador se tentava por raiva descumprir a regra dar uma varada em quem estava no pique ou se batia com muita força. Uma variante idêntica substituía a vara por um pano molhado, que torciam em cordão para bater.
Referências na Internet
Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular.
Pique (brincadeira). http://www.cnfcp.gov.br/tesauro/00001248.htm (acesso em 21/08/2016, 08:30h)
Referências Bibliográficas
GARCIA, Rose Marie Reis, MARQUES, Lilian Argentina. Jogos e Passeios Infantis. Porto Alegre: Kuarup, 1991. 182p.
Notas e Créditos
* Sorteio: não é assunto previsto para esta postagem a descrição da forma de sorteio. Para tal pretende-se uma outra edição da série "Brincadeiras Infantis", dedicadas às fórmulas de escolha, em planejamento. Para consultar as edições anteriores clique nos links abaixo;
** Texto: Ulisses Passarelli
Amei seu espaço!
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