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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




sábado, 2 de julho de 2016

Coração Ferido

Nesta septingentésima postagem, expomos um conto religioso colhido em Santa Cruz de Minas, pelo final da década de 1990 (*), cujo roteiro versa sobre ciúme, crime e milagre. Na simplicidade e objetividade da narrativa, uma série de valores do ideário cristão são expostos, em linguagem acessível ao plano catequético não oficial. Em outras palavras, através da narrativa, o narrador transmite o horror à violência, o peso do machismo, a doença do ciúme, a cegueira da imaginação patológica e por fim, coroando tudo, o milagre, em cuja reticência deixa antever a possibilidade da conversão e do arrependimento, que em similitude à redenção dada pelo próprio Cristo, vem a preço de sangue. 

Interessante observar que a devoção ao Sagrado Coração de Jesus é relativamente nova na cultura popular; mas bem o vemos, através deste exemplar da literatura oral, que já deixa seus reflexos na folclore da região. 

Os contos religiosos são profundamente arraigados ao cotidiano do povo, como parte de seu universo de saberes e como elemento simbólico de transmissão da moral cristã, como modelo necessário de vida em sociedade, contra o qual, tudo que se insurge, cai por terra, de uma forma ou de outra. Através do conto popular, nos intervalos do trabalho doméstico, ou no campo, ou na oficina, ou na noitinha, hora de tranquilidade, à beira do fogão à lenha, ou da fogueira no rancho de boiadeiros e tropeiros, o mais velho transmitia ao mais novo, o pai ao filho, a mãe à filha, a madrinha ao afilhado e assim por diante, dentro deste código de linguagem, o saber inerente ao comportamento padrão, que agrada a Deus e que por conseguinte é premiado com o poder sobre-humano da graça e do milagre, quando tudo parece perdido e insolúvel. 

Sem dúvidas, o conto contrapõe humildade/lealdade de um lado e violência/domínio de outro, tendo a devoção como fulcro e fator decisivo para o desfecho da estória, que, em suma, tem um objetivo catequético e educador, quando analisada no contexto familiar e comunitário em que ocorrem estes tipos de narrativas. 

* * *

Havia uma mulher devota, dotada de espírito de bondade, direita, corretíssima, piedosa, benevolente, de fé inabalável, que vivia muito bem com seu marido, na paz do matrimônio consagrado, mas este, secretamente, desconfiava que a esposa o traía. 

Certa vez o homem disse que ia viajar e despediu-se da mulher; mas era mentira. Tinha uma plano para provar a si mesmo que a esposa era infiel. Escondeu-se no quintal e ficou observando se algum homem entrava em sua casa. 

E ficou o dia todo oculto e nada viu. A noite decidiu entrar em casa. Seu coração maldoso o impulsionava... sua mente doentia imaginou um amante em sua cama. Quem sabe, talvez, algum homem teria entrado na casa pelo lado oposto e estava deitado com ela? 

Pegou uma faca, entrou pé ante pé, em absoluto silêncio, levantou rápido o lençol e fincou a arma no coração da mulher. Mas ela estava sozinha na cama... Não havia mais ninguém e o peso de seu crime hediondo sacrificou-lhe imensamente a consciência. Aturdido, saiu desesperado a chorar, sem rumo, para longe dali. 

No dia seguinte voltou cabisbaixo. Qual não foi sua surpresa quando viu a esposa viva, normal, sem qualquer marca do golpe que dera e o fato milagroso e inexplicável o deixou ainda mais apalermado quando viu a faca do crime cravada na imagem do Sagrado Coração de Jesus que estava sobre a cômoda do quarto, bem em seu peito, do qual escorria sangue vivo... 

Detalhe da bandeira da Folia do Sagrado Coração de Jesus.
Colônia José Teodoro (São João del-Rei/MG), junho/2012. 

Notas e Créditos

* Informante: Elvira Andrade de Salles, Santa Cruz de Minas, 1996
** Texto, fotografia e acervo: Ulisses Passarelli


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