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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




quarta-feira, 6 de julho de 2016

Notas sobre o uso das arnicas na cultura popular

O nome arnica refere-se a algumas espécies vegetais da família asteraceae e "significa pele de cordeiro, aludindo ao tato de suas folhas, suaves e peludas" (*). Mas como as asteráceas são muitas, a arnica em questão é outra: no hemisfério setentrional (América do Norte, Europa e Ásia) existe o gênero Arnica, com flores semelhantes à margarida, a que se refere literalmente este nome. São plantas de áreas muito frias e altas ("gênero circumboreal e montanhoso", informa a mesma fonte). Para o hemisfério sul tivemos o nome emprestado para outras asteráceas, em verdade bem diferentes daquelas, especificamente as do gênero Lychnophora, que ultrapassam a três dezenas de espécies. 

Seu aspecto morfológico é muito diverso, o uso curativo ou em tratamento fitoterápico pode talvez dar a pista do motivo do aproveitamento do nome. Possivelmente o paralelo de usos veio via colonização portuguesa. 

Na Mesorregião Campos das Vertentes as arnicas são usadas sob a forma de solução alcoólica. Os ramos colhidos são partidos em pequenos pedaços, frescos ou desidratados, e inseridos em um frasco contendo álcool etílico líquido. É deixado a "curtir", ou seja, em descanso para extrair a química desejada. 

As espécies usadas podem variar com o costume da região e a disponibilidade. Na Serra de São José ALVES & KOLBEK (2009) apontaram a existência das seguintes espécies: Lychnophora blanchetii, Lychnophora columnaris, Lychnophora passerina e Lychnophora uniflora. Na prática observa-se que em São João del-Rei e cidades vizinhas a arnica mais usada é a passerina. 

O uso é externo: o líquido é habitualmente esfregado sobre áreas que sofreram contusão e torção; em locais com dores internas supostamente ligadas às articulações; sobre cortes e feridas - apesar da ardência que gera momentaneamente - com o intuito de assepsia; em locais que sofreram picadas e sapecados de insetos (marimbondo, abelha, taturana, mosquitos, carrapatos); arranhado ou mordida de animais; ferimento por espinhos e estacas; após extrair farpas, cacos de vidro ou bichos de pé; para diminuir coceira (prurido). A regra é esfregar a arnica com as palmas das mãos, massageando firme até sentir um aquecimento pela fricção, repetindo-se algumas vezes a operação com novas porções de arnica. Acreditam que o calor citado faz a arnica entrar na pele e não exatamente secar. Isto garantiria sua eficácia. Por vezes, quando o dolorimento é grande, usa o povo o estratagema de fazer uma compressa com arnica sobre a área afetada. 

O uso interno até o povo desaconselha por considerar a arnica "muito quente", isto é, tóxica, produzindo efeitos colaterais indesejáveis e prejudiciais. Contudo existem exceções muito parcimoniosas de que a cultura popular se vale: quando de um tombo forte, que se bateu o peito no chão, deixando persistente dor nas costelas, usam pingar três gotas de arnica num miolo de pão e ingerir, ou numa colher cheia de açúcar, molhando-o. Isto se mantém por alguns dias até o alívio. 

Mais que um simples uso homeopático nos meios populares, a arnica tem um caráter de erva sagrada ou votiva. É costume na região colher a arnica na Semana Santa, ocasião de prepará-la para servir ao ano todo, só substituída por outro preparo nas endoenças do ano subsequente. Já por isto, sobem as pessoas às encostas serranas e junto às altas pedreiras a colhem em ramos para uso próprio ou para venda. Diante das igrejas históricas vemos os vendedores de arnica nessa ocasião, expondo-as em balaios, carriolas, sacos estendidos e bancas, enfeixadas em pequenos molhos. De ordinário, além da arnica, surgem então à venda outras plantas específicas como congonhas, alecrins, manjericão. 

Até mesmo os altares são ornados com arnica; e, não bastasse, os andores do Senhor Bom Jesus dos Passos e de Nossa Senhora das Dores. Após as cerimônias, o povo acorre a pegar um raminho desses, tido como bento, sagrado, curativo poderoso. 

Entre os médiuns dos terreiros a arnica é considerada uma erva de Oxalá. O roxo de suas flores se evidencia sobretudo na época da Semana Santa e esta é a cor da quaresma, da penitência, do Senhor dos Passos e da Senhora das Dores. Assim as religiões de matriz africana se somaram na contribuição de elementos culturais em torno da arnica. Por conseguinte, o banho com arnica é recomendado para descarrego e firmeza na linha de Oxalá (**). 

E tudo isto é algo muito arraigado ao costume popular. Passa de geração em geração como sabedoria do povo. Pois, desde pequena, a criança é levada pelos pais à igreja para as cerimônias tradicionais e na volta tem seu contato com esta cultura; aprende a usar; ensina, transmite. O pescador leva no embornal uma garrafinha com arnica porque pode precisar no mato; as senhoras a tem num canto do armário, sempre de prontidão para acudir a necessidade de um filho traquina ou de um neto serelepe. O umbandista se sintoniza com o sagrado ao banhar-se com uma infusão aquosa de arnica, ou tendo-a seca, a põe sob brasas gerando um incenso significativo. O humilde raizeiro ganha seu trocado extra graças a esta cultura. 

A arnica por seu valor etnográfico merece uma atenção especial, tanto em termos de proteção enquanto espécie, quanto em termos de estudo das propriedades medicinais. E quando citamos proteção não é mera força de expressão. A lista da flora mineira ameaçada inclui várias espécies de Lychnophora, dentre as quais a nossa arnica, Lychnophora passerina, que por ter área de ocorrência restrita e habitat degradado é considerada espécie vulnerável, segundo critério de classificação da IUCN (União Internacional para Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais). Pelas razões expostas, os habitats regionais merecem toda atenção, seja na Serra de São José seja na do Lenheiro, considerados todos os seus contrafortes. No Lenheiro pode ser encontrada na área oficial de seu Parque Municipal e mesmo fora dele, sugerindo ampliação de sua área para garantir proteção a esta espécie.

Por fim, como sempre este blog assim procede, é o valor folclórico da medicina popular que interessa a esta página eletrônica. Não recomendamos qualquer forma de uso pelos eventuais riscos à saúde que pode gerar. 

1- Arnica: flor roxa típica na mão comparada a uma rara, de flor branca.
Serra de São José (Tiradentes/MG).  08/03/2016. 

2- Arnica, Lychnophora passerina.
Serra de São José (Tiradentes/MG).  18/03/2015. 

3- Arnica de outra espécie na Serra do Lenheiro.
(São João del-Rei/MG). 01/08/2015. 

4- Arnica de uma terceira espécie.
Serra de São José (Tiradentes/MG). 18/03/2015. 
5- Lychnophora uniflora.
Areão, Serra do Lenheiro (São João del-Rei/MG). 09/07/2013. 

Notas e Créditos

* Segundo a Wikipedia. 
** Também são consideradas nesta região como ervas de Oxalá: boldo comum, boldo do Chile ("tapete de Oxalá"), rosmaninho, alecrim de horta, quaresmeira. Todos tem flores roxas. Leia neste blog: ROXO, A COR DA PENITÊNCIA.
*** Texto e fotografias: Ulisses Passarelli
**** Agradecimentos ao companheiro de jornada nas serras, Luís Antônio Sacramento Miranda, a quem ofereço esta postagem. 

Referências na Internet

Arnica. In Wikipedia (https://pt.wikipedia.org/wiki/Arnica) - acesso em 06/07/2016, 07:56h
Lychnophora. In: Wikipedia (https://en.wikipedia.org/wiki/Lychnophora) - acesso em 06/07/2016, 07:56 h
ALVES, Ruy José Válka, KOLBEK, Jirí. Summit vascular flora of Serra de São José, Minas Gerais, Brazil. 2009. In: Check List: Journal of species lists and distribuition (http://www.checklist.org.br/getpdf?SL112-08) - acesso em 06/07/2016, 08:01 h
Lista das Espécies Ameaçadas de Extinção da Flora do Estado de Minas Gerais. Deliberação COPAM 085/97. (http://www.biodiversitas.org.br/florabr/mg-especies-ameacadas.pdf) - acesso em 07/07/2016, 08:12h
Listas Vermelhas das Espécies da Flora e da Fauna Ameaçadas de Extinção em Minas Gerais (2008). Fundação Biodiversitas (http://www.biodiversitas.org.br/publicacoes/) - acesso em 07/07/2016, 08:22h 

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