"O tempo mudou muito...", alertam os mais velhos. Nesta frase enigmática que traz em si um suspense, revelam as mudanças de comportamento frente ao que é esperado para cada época, cada tempo, cada circunstância. Assim, nesta quadra do ano, espera-se a penitência e a credulidade à "flor da pele", ou seja, a fé evidente, a crença como prioritário.
Mas não tem sido. A sociedade é outra. Movida pelo materialismo crescente e o impacto de uma era tecnológica, o homem do interior dia a dia se distancia de suas raízes culturais e é engolido pela avalanche globalizadora. Daqui e dali ecoam como estórias de um passado sempre curioso de se ouvir e imaginar, fragmentos de nossa mitologia mais típica como a que aflora todos os anos na quaresma, por ventura teimando em desaparecer da memória dos mais velhos e de algum lugar mais recôndito.
A região Campos das Vertentes, tradicionalista como é, ainda propicia ouvir causos da quaresma assombrosa (*), sobretudo na zona rural (**).
A mula-sem-cabeça (***) segundo se diz, galopa acelerada soltando labaredas. Tarde da noite corre pelas ruas desertas e seu tropel pode ser ouvido. Mas apesar de encantada, se entrar numa via que tem uma igreja, ela nunca ultrapassa esta. Daquele ponto retorna. Se ela entrar numa rua que tem duas igrejas, entre cada extremo que estão, fica presa sem ultrapassá-las, chega numa igreja volta para a outra, até o dia clarear, quando então desencanta e volta a ser mulher, que aparece caída numa beira de calçada, meio tonta ou desmaiada. Assim contam em São João del-Rei e Tiradentes.
Quaresma também é tempo propicio para efetuar o trato com o pemba. Nesse tempo o demônio anda à solta, então aquele indivíduo que ambiciona algo aproveita para a horas mortas, nas encruzilhadas, chamar o diabo e fazer seu pedido, que obterá ao preço de sua alma, que não mais se salvará. Assim, quem quer aprender a tocar um instrumento e não tem o dom, faz um trato musical na Sexta-feira da Paixão, meia-noite. Leva o instrumento para a encruza e logo vem uma galinha com os leitões; depois que se vai aparece um cabrito e, por fim, o próprio capeta aparece sob a forma de homem, vestido de capa preta, e, tomando o instrumento nas mãos, toca-o de forma exímia. A seguir o devolve a seu dono que de imediato já consegue tocá-lo e tal instrumento nunca desafina. Tornou-se um músico virtuoso pelo trato com o maligno. Assim é corrente na memória da cultura popular são-joanense.
Ainda em São João del-Rei é difundida a narrativa de um certo baile acontecido na quaresma. Por ser desrespeitoso, numa época de recolhimento, teve um fato extraordinário. Surgiu um forasteiro muito bem vestido, elegante, charmoso. O estranho era irresistível para as moças. Exímio dançarino, bailou com todas. Foi então, lá pelas tantas, já em horas avançadas, sem ninguém nada cismar e sequer cuidar que era o
"tempo roxo", que alguém olhou para os pés do tal dançarino e escandalizado, gritou em alta voz que eram pés de pato. O desespero e a debandada foi geral pois só assim reconheceram que o estranho era o próprio tinhoso.
Caso idêntico já ouvimos em outras oportunidades, variando apenas que os pés do dançarino eram de bode, ou, noutra versão, de boi.
Em Santa Cruz de Minas ainda nos anos noventa corria a narrativa acontecida numa certa chácara daquele município, que no lusco-fusco vespertino, de repente, vários porcos roncavam e batiam dentes no terreiro da casa e logo os moradores assustados com o forte barulho, imaginaram que os porcos tinham fugido do chiqueiro e foram verificar. Qual nada! Logo o som misterioso desapareceu, pois de fato os porcos verdadeiros do chiqueiro estavam presos e em silêncio. O ruído era do além, assombração.
Notas e Créditos
*** Virar mula-sem-cabeça é como receber um castigo perpétuo. O povo acredita que a mulher que se envolve amorosamente com um padre passa a se transformar neste assombro. Outra possibilidade é quando um casal tem uma sequência de sete filhas. A sétima virará mula-sem-cabeça irremediavelmente a não ser que seja batizada pelo nome de "Maria", que então neutralizará a sina.
**** Texto: Ulisses Passarelli
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