O gato na cultura popular é o símbolo da esperteza e da rapidez, mas também é entendido como uma criatura sonsa e traiçoeira, capaz de repentinamente mudar de gênio, de calmo para agressivo.
Acreditam alguns congadeiros nesta cidade, que o tamborim se revestido por couro de gato terá uma força muito maior que se fosse com o de boi, garantindo ao capitão que o usa, sagacidade no vencimento das demandas. O gato então é citado num ponto de
catupé um tanto provocativo, coligido mesmo em São João del-Rei, nos anos noventa:
"Eu quero vê!
Eu quero vê!
O pulo do gato,
caxinguele-lê!"
O sentido é o seguinte: quem canta propõe um desafio ao terno visitante que chega em terra alheia sem a devida humildade _ quem pula melhor, com maior desenvoltura no congado? O "gato" é o congadeiro da terra, de casa, anfitrião; o "caxinguelê" é o congadeiro de fora, do mato, que não é do lugar, que veio de fora. O caxinguelê ou serelepe é um roedor extremamente ágil em seus movimentos.
No campo da crendice é assaz conhecido que gato preto dá azar a quem o ver atravessando o caminho adiante do observador. Igualmente difundido que o gato teria sete vidas, ou seja a faculdade de resistir à morte extraordinariamente. O povo também acredita que o gato transmita bronquite ou mais acertadamente a asma. Por isto não recomendam o contato muito próximo com o animal. Deixar o gato dormir na cama junto com a pessoa facilitaria essa transmissão. No mais há quem coma gatos, reputado como um bom tira-gosto, mas segundo se diz, não se deve chupar seus ossos como se faz com a carne de galinha, por exemplo, posto que a pessoa ficaria com "
chieira" igual ao gato, ou seja, com o peito cheio, congestionado, gerando um som semelhante ao ronronado.
A figura do gato como animal doméstico propiciou o surgimento da crença que ele é um animal que teria uma ligação com o mal, o capeta. Talvez esta ideia tenha surgido de sua astúcia, dissimulação, tocaias, enfim, técnicas de sua própria natureza que objetivam sucesso na caça de suas presas naturais. Mas fato é que o povo interpreta estes atributos como sinais negativos (*).
No causo abaixo, de fundo anedótico, esta fama aflora e serve de motivo para o desenrolar da narrativa. Mais uma tradição popular corrente em São João del-Rei. Desta mesma cidade segue ainda uma versão da fábula assaz conhecida "O Pulo do Gato", que também reflete a esperteza do animal.
O padre ludibriado pelo sacristão
Conta-se que um certo padre criava muitos gatos e o sacristão era encarregado de alimentá-los, mas o fazia muito a contragosto, pois odiava o serviço e mais ainda aqueles animais. Não via a hora de se livrar deles, que lotavam a casa paroquial.
Fazia de tudo para convencer o sacerdote a acabar com os bichanos mas sem êxito. Assim sendo, adotou nova estratégia e passou a afirmar que o gato não era bicho de bem, não era de Deus, mas do demônio. Mas o padre não acreditava e mantinha sua criação.
Certa ocasião o padre precisou fazer uma longa e demorada viagem e deixou a gataiada (**) a cargo do sacristão como de costume. Era exatamente o que ele esperava...
Todo dia o sacristão aproveitando a ausência do vigário juntava os gatos num cômodo pequeno, todo fechado e começava a gritar forte: "cruz, credo!", "cruz, credo!", "cruz-credo!" E enquanto gritava, batia violentamente com um chicote nos bichos que ficavam apavoradíssimos. Assim fez por vários dias.
O padre então voltou da viagem e veio logo saber de seus queridos gatos. O sacristão de imediato falou que tinha avisado que os gatos eram do diabo. O vigário desacreditando, supondo uma bobagem, ouviu do sacristão que era só eles ouvirem a expressão "cruz, credo" (***) que fugiam apavorados... O padre quis tirar a prova e o juntou os gatos; o sacristão logo gritou: "cruz, credo!" Os gatos já condicionados pelo mal trato, se desesperaram e fugiram apavorados por todos os lados, escondendo, pulando, miando em tom de desespero.
E o padre, crente que o sacristão tinha razão, livrou-se dos gatos para alegria de seu ajudante.
O pulo do gato
A onça admirava muito o gato por sua grande habilidade em dar saltos. Foi conversar com ele sobre isto e pediu que ele ensinasse a pular de todo jeito, pois precisava dessa habilidade para as suas caçadas. O gato, gentilmente, ensinou.
Passaram dias de aulas até que a lição chegou ao fim. A onça, muito astuta, resolveu armar um bote para pegar e devorar o gato, achando que já sabia de tudo e usando um dos saltos aprendidos com ele. Esperou de tocaia e pulou sobre o gato, com um habilidoso salto mortal. O gato, com extrema agilidade deu uma pirueta espetacular para trás e a onça perdendo o golpe que dera, ficou boquiaberta. Sem ter o que fazer, disse:
_
Ôh, compadre gato, que salto maravilhoso! Esse você não me ensinou...
_
Se eu te ensinasse esse pulo, você me comia!
Assim o gato se foi, deixando a lição que nem tudo agente ensina.
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Grafite inspirado em gatos, pintado sobre parede externa de residência à Rua Alexina Pinto, na Bela Vista, em São João del-Rei. 03/07/2016. |
Notas e Créditos
* Estas características despertaram também sua aproximação nos terreiros de quimbanda aos atributos dos exus. Assim posto, o gato é seu animal votivo. A vinte e poucos anos tivemos oportunidade de ver uma caveira de gato no interior de uma casa de força de um desses terreiros, como firmeza da linha esquerda. Um ponto cantado alude a esta aproximação:
"Exu ganhou um gato,
mas não quis comer sozinho,
dividiu com os camaradas,
pedacinho por pedacinho!
Aí chegou, seu Lucifer,
e a Pomba Gira,
era homem, era mulher..."
**Gataiada: muitos gatos. O sufixo "ada" na formação de um vocabulário popular é sempre de efeito superlativo: "chuvarada" (muita chuva), "dinheirada" (muito dinheiro), "peixaiada" (muitos peixes), etc.
*** Cruz, credo!: expressão popular de natureza exorcisória, esconjuro, fórmula verbal de catarse.
****Texto: Ulisses Passarelli
***** Informantes: José Camilo da Silva, Bairro São Dimas, São João del-Rei, 1992 (caso do padre; ponto do gato com caxinguelê), Luís Santana, Bairro São Dimas, São João del-Rei, 1995 (fábula do pulo do gato).
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