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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Tradições acerca do gato

O gato na cultura popular é o símbolo da esperteza e da rapidez, mas também é entendido como uma criatura sonsa e traiçoeira, capaz de repentinamente mudar de gênio, de calmo para agressivo.

Acreditam alguns congadeiros nesta cidade, que o tamborim se revestido por couro de gato terá uma força muito maior que se fosse com o de boi, garantindo ao capitão que o usa, sagacidade no vencimento das demandas. O gato então é citado num ponto de catupé um tanto provocativo, coligido mesmo em São João del-Rei, nos anos noventa:

"Eu quero vê!
Eu quero vê!
O pulo do gato, 
caxinguele-lê!"

O sentido é o seguinte: quem canta propõe um desafio ao terno visitante que chega em terra alheia sem a devida humildade _ quem pula melhor, com maior desenvoltura no congado? O "gato" é o congadeiro da terra, de casa, anfitrião; o "caxinguelê" é o congadeiro de fora, do mato, que não é do lugar, que veio de fora. O caxinguelê ou serelepe é um roedor extremamente ágil em seus movimentos.

No campo da crendice é assaz conhecido que gato preto dá azar a quem o ver atravessando o caminho adiante do observador. Igualmente difundido que o gato teria sete vidas, ou seja a faculdade de resistir à morte extraordinariamente. O povo também acredita que o gato transmita bronquite ou mais acertadamente a asma. Por isto não recomendam o contato muito próximo com o animal. Deixar o gato dormir na cama junto com a pessoa facilitaria essa transmissão. No mais há quem coma gatos, reputado como um bom tira-gosto, mas segundo se diz, não se deve chupar seus ossos como se faz com a carne de galinha, por exemplo, posto que a pessoa ficaria com "chieira" igual ao gato, ou seja, com o peito cheio, congestionado, gerando um som semelhante ao ronronado.

A figura do gato como animal doméstico propiciou o surgimento da crença que ele é um animal que teria uma ligação com o mal, o capeta. Talvez esta ideia tenha surgido de sua astúcia, dissimulação, tocaias, enfim, técnicas de sua própria natureza que objetivam sucesso na caça de suas presas naturais. Mas fato é que o povo interpreta estes atributos como sinais negativos (*). 

No causo abaixo, de fundo anedótico, esta fama aflora e serve de motivo para o desenrolar da narrativa. Mais uma tradição popular corrente em São João del-Rei. Desta mesma cidade segue ainda uma versão da fábula assaz conhecida "O Pulo do Gato", que também reflete a esperteza do animal. 


O padre ludibriado pelo sacristão

Conta-se que um certo padre criava muitos gatos e o sacristão era encarregado de alimentá-los, mas o fazia muito a contragosto, pois odiava o serviço e mais ainda aqueles animais. Não via a hora de se livrar deles, que lotavam a casa paroquial. 

Fazia de tudo para convencer o sacerdote a acabar com os bichanos mas sem êxito. Assim sendo, adotou nova estratégia e passou a afirmar que o gato não era bicho de bem, não era de Deus, mas do demônio. Mas o padre não acreditava e mantinha sua criação. 

Certa ocasião o padre precisou fazer uma longa e demorada viagem e deixou a gataiada (**) a cargo do sacristão como de costume. Era exatamente o que ele esperava...

Todo dia o sacristão aproveitando a ausência do vigário juntava os gatos num cômodo pequeno, todo fechado e começava a gritar forte: "cruz, credo!", "cruz, credo!", "cruz-credo!" E enquanto gritava, batia violentamente com um chicote nos bichos que ficavam apavoradíssimos. Assim fez por vários dias. 

O padre então voltou da viagem e veio logo saber de seus queridos gatos. O sacristão de imediato falou que tinha avisado que os gatos eram do diabo. O vigário desacreditando, supondo uma bobagem, ouviu do sacristão que era só eles ouvirem a expressão "cruz, credo" (***) que fugiam apavorados... O padre quis tirar a prova e o juntou os gatos; o sacristão logo gritou: "cruz, credo!" Os gatos já condicionados pelo mal trato, se desesperaram e fugiram apavorados por todos os lados, escondendo, pulando, miando em tom de desespero. 

E o padre, crente que o sacristão tinha razão, livrou-se dos gatos para alegria de seu ajudante.

O pulo do gato

A onça admirava muito o gato por sua grande habilidade em dar saltos. Foi conversar com ele sobre isto e pediu que ele ensinasse a pular de todo jeito, pois precisava dessa habilidade para as suas caçadas. O gato, gentilmente, ensinou.

Passaram dias de aulas até que a lição chegou ao fim. A onça, muito astuta, resolveu armar um bote para pegar e devorar o gato, achando que já sabia de tudo e usando um dos saltos aprendidos com ele. Esperou de tocaia e pulou sobre o gato, com um habilidoso salto mortal. O gato, com extrema agilidade deu uma pirueta espetacular para trás e a onça perdendo o golpe que dera, ficou boquiaberta. Sem ter o que fazer, disse:

_ Ôh, compadre gato, que salto maravilhoso! Esse você não me ensinou...
_ Se eu te ensinasse esse pulo, você me comia!

Assim o gato se foi, deixando a lição que nem tudo agente ensina.



Grafite inspirado em gatos, pintado sobre parede externa de residência à
Rua Alexina Pinto, na Bela Vista, em São João del-Rei. 03/07/2016. 

Notas e Créditos

* Estas características despertaram também sua aproximação nos terreiros de quimbanda aos atributos dos exus. Assim posto, o gato é seu animal votivo. A vinte e poucos anos tivemos oportunidade de ver uma caveira de gato no interior de uma casa de força de um desses terreiros, como firmeza da linha esquerda. Um ponto cantado alude a esta aproximação:

"Exu ganhou um gato, 
mas não quis comer sozinho, 
dividiu com os camaradas,
pedacinho por pedacinho!
Aí chegou, seu Lucifer,
e a Pomba Gira,
era homem, era mulher..."

**Gataiada: muitos gatos. O sufixo "ada" na formação de um vocabulário popular é sempre de efeito superlativo: "chuvarada" (muita chuva), "dinheirada" (muito dinheiro), "peixaiada" (muitos peixes), etc. 
*** Cruz, credo!: expressão popular de natureza exorcisória, esconjuro, fórmula verbal de catarse.
****Texto: Ulisses Passarelli
***** Informantes: José Camilo da Silva, Bairro São Dimas, São João del-Rei, 1992 (caso do padre; ponto do gato com caxinguelê), Luís Santana, Bairro São Dimas, São João del-Rei, 1995 (fábula do pulo do gato). 
****** Leia neste blog outros contos tematizados na suposta negatividade do gato, clicando nos links abaixo:

O GATO MALDITO: UM CONTO DO DEMÔNIO LOGRADO

UM CONTO POPULAR DE FIM TRÁGICO



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