Existem vários contos populares que apresentam São Pedro por personagem
principal, sempre figurando-o com certa verve como um santo turrão, mas
ao mesmo tempo querido, através do qual o Cristo transmite lições que
servem aos demais apóstolos. Em algumas narrativas aparece também a mãe de São Pedro, verdadeira megera, invejosa dos poderes de Cristo.
Através destes contos o povo também
reinterpreta os ensinamentos cristãos com muita liberdade, facilitando o entendimento. A citação
específica à figueira estabelece uma analogia com o episódio bíblico da maldição da figueira (Mt 21, 18-22; Mc 11, 12-14, 20-26), uma alegoria da esterilidade daqueles que não frutificavam o ensinamento de Jesus.
Paralelamente, o povo tem seus tabus com a figueira; não exatamente a produtora de figos com os quais se fazem doces na quadra natalina anual, mas a figueira-brava ou gameleira branca, árvore ligada às entidades espirituais da linha esquerda, árvore da magia e também ao inquice Kitembo.
Outro curioso paralelo ou quiçá mera coincidência é o caso da orelha [1], que se verá a seguir, é uma plausível aproximação do santo com o episódio da orelha decepada quando da prisão de Jesus: "Um dos circunstantes tirou da espada, feriu o servo do sumo sacerdote e decepou-lhe a orelha" (Mc 14, 47). "Embainha tua espada, porque todos aqueles que usarem da espada, pela espada morrerão." (Mt 26, 52). Outro versículo diz que foi a orelha direita e que Jesus disse: "Deixai, basta. E tocando na orelha daquele homem, curou-o" (Lc 22, 51). Por fim, é o Evangelho de São João que detalha a cena: "Simão Pedro, que tinha uma espada, puxou dela e feriu o servo do sumo sacerdote, decepando-lhe a orelha direita. (O servo chamava-se Malco). Mas Jesus disse a Pedro: Enfia a tua espada na bainha! Não hei de beber eu o cálice que meu Pai me deu?" (Jo 18, 10-11).
Pois bem. Em minha infância em São João del-Rei, meu avô materno (Aluísio dos Santos, 1923-2004) contava-me em livre interpretação esta mesma passagem, dizendo que São Pedro cortara a orelha do guarda com uma dentada. Foi repreendido por Cristo, que a colou de volta com saliva [2]. Nessa colcha de retalhos se destaca então a animosidade atribuída a São Pedro e os complexos culturais desenvolvidos em torno de temas bíblicos.
* * *
Dizem que um dia, no tempo que Jesus Cristo andava pelo mundo com seus apóstolos, que o Divino Mestre passando por uma figueira, pegou um de seus frutos para comer. Porém, notou que estava podre e então o Messias amaldiçoou a árvore, que imediatamente secou e morreu. São Pedro, indignado, o repreendeu:
_ "Mas Mestre... por causa de um só figo estragado o Senhor condenou todos os outros bons?!"
_ "Pedro _ disse Jesus _ já não ouviste dizer que os justos pagam pelos pecadores?"
O apóstolo não aceitou o ensinamento, mas também não retrucou mais. Calou-se e foram embora pelo caminho afora.
Adiante, junto a uma árvore, um marimbondo picou São Pedro bem na orelha, que ficou inchada, vermelha, doendo muito. Repleto de raiva, ele pegou uma vara comprida e prendeu em sua ponta uns panos velhos, providenciando desta forma uma tocha. Com ela, meteu fogo no vespeiro e assim matou todos os marimbondos da colônia. Jesus, vendo aquilo, disse:
_ "Uma só vespa te ferroou e mataste a todas! Não te disse, Pedro, que os justos pagam pelos pecadores..."
E assim , partindo em jornada, São Pedro aprendeu mais uma lição.
Créditos
- Texto: Ulisses Passarelli.
- Informante do conto: Joaquim Maia Filho, São João del-Rei/MG, 20/04/2000.
Notas
- Revisão: 07/09/2025.
[1] A orelha na cultura popular indica simbolicamente longevidade. Ter orelhas grandes é sinal de vida longa. Se na noite de São João, ao se contemplar o reflexo de si mesmo nas águas de alguma fonte ou rio, se avistar apenas uma orelha, é sinal de vida curta ou de morte de alguém muito próximo, até da família mesmo. Orelha mole, com arcabouço cartilaginoso flácido é indicativo de preguiça no entendimento do povo. Já no campo do pejorativo, orelha grande é alegoricamente imagem da burrice, lentidão de raciocínio. Assim é corrente em São João del-Rei, mas certamente são tradições conhecidas em muitas outras terras.
[2] Saliva é o elemento mágico por excelência, tido como de alto poder curativo nas crenças populares, a qual seria capaz até mesmo de gerar curas, conforme a maneira como é aplicada. A saliva contém parte da energia do hálito criador. Assim também, uma magia inferior feita contra alguém utilizando-se de gotas de sua saliva, gera profundos transtornos na vítima. Para isto utiliza-se de talheres e copos que a pessoa usou, antes de serem lavados, pois ainda contém resíduos de sua saliva no ponto onde colocou a boca.
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