Cangalha (*) é um utensílio arqueado, feito em duas peças interligadas, com dois ganchos de cada lado, todo em madeira, que se adapta ao lombo de um animal cargueiro (burro, besta, jumento, cavalo ou égua, quase sempre um muar), sobre uma proteção ou forro para não ferir o animal. Sobre ela se prende um determinado carregamento: pode-se empilhar lenha, cana ou bambus para o transporte. Noutro tipo, não há ganchos mas um detalhe em madeira propício para se prender o jacá (**) ou a bruaca (***).
É um objeto de fatura artesanal, rudimentar. Quando algo está atrapalhado, mal enjambrado, desajeitado, diz a voz popular que está "escangalhado".
Um provérbio popular diz: “bater na cangalha pro burro entender”. O sentido é o seguinte: às vezes é necessário uma certa rispidez para que o outro compreenda o que se quer instruir; ou, por vezes é necessário agir por meio indireto para se chegar ao resultado; sugerir; indicar, sem deixar às claras, deixando que o raciocínio e a intuição do próximo descubram o restante.
Nos congados (catupés) de São João del-Rei aparecem dois pontos cantados falando deste objeto:
"Ai, o Rei com a Rainha BIS
tava muntado na cangaia...”
(Capitão Luís Santana, 1993. Cangalha no caso é figura de linguagem irônica para indicar uma padiola ou tablado que suspende as figuras reais em destaque, como um dispositivo instalado na praça para ressaltar o reinado.)
“Meu burro morreu,
e a cangaia ficô;
num sei pra quem fica
num sei pra quem dô!”
(Capitão José Camilo, 1994. Sentido: cangalha sem o burro é imprestável. A sugestão é deixar para o desafeto...)
"Cangalheiro" é o animal treinado a trabalhar com cangalha, ou, o artesão fabricante de cangalhas.
No passado, a figura dos burros encangalhados era muito comum, graças aos tropeiros. Estes trabalhadores conduziam pelo interior conjuntos de animais cargueiros levando e trazendo produtos entre sertão e cidades, Brasil afora, inclusive nesta região. Foram comuns por exemplo e marcaram época e cultura em Prados e Tiradentes (****).
Em São João del-Rei, ficou na memória dos idosos que vislumbraram o período anterior ao da comodidade do botijão de gás nas cozinhas, quando a grande maioria, senão todas as casas, tinham fogão à lenha ("fogão de lenha", dizem). Então, naquele tempo, pela rua afora, tropas de burros passavam com as cangalhas carregadas de lenha, trazendo-as já encomendadas ou tentando a sorte. Até cada porta vinha o condutor da tropa de lenha e perguntava ao morador se estava precisando. Em caso afirmativo dava o preço de um cargueiro, ou de meio, correspondente à carga de uma cangalha completa e ou apenas um de seus lados, respectivamente. Em caso afirmativo, desembarcava-se a lenha para o freguês, no ponto que ele queria, recebia-se o pagamento e ia-se à procura de outro comprador do restante do carregamento (*****).
Essa lenha vinha sobretudo de nossa histórica Serra do Lenheiro, que não tem este nome à toa, fonte que era de fornecimento de lenha para o arraial, vila e depois cidade de São João del-Rei. Cerrados, carrascais, restingas, saivás, capoeiras... foram abatidos e conduzidos em fileiras serpenteantes de muares morro abaixo e morro acima, ardendo nos fornos e fogões, garantindo o pão de cada dia.
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Artesanato em madeira da cidade de Prados, figurando burros cargueiros com jacás e lenha na cangalha. Década de 1990. Acervo do autor. |
Notas e Créditos
* No estado Tocantins, próximo à divisa com o Maranhão existe a "Serra da Cangalha", uma cratera de impacto, e nas imediações do Vale do Rio Paraíba, em São Paulo, a "Serra do Quebra-cangalha", contraforte da Serra do Mar. Por aqui também temos o topônimo "Quebra-cangalhas": a resolução nº330 da Câmara Municipal de São João del-Rei, de 26/08/1905, aprovava as contas e ação executiva de reconstrução de duas pontes no distrito do Rio das Mortes e ainda, os reparos na estrada que vai desse lugar ao Quebra-cangalhas" (jornal O Repórter, n.34, 10/09/1905, São João del-Rei, acervo digital da Biblioteca Municipal Baptista Caetano d'Almeida).
**Jacá: grande balaio de abertura circular, trançado artesanalmente em taquara, usado para carregar espigas de milho, capim picado para tratar do gado, etc.
*** Bruaca: mala de couro cru, usada pelos tropeiros no lombo dos burros para carregamento.
**** Vide a respeito desta última cidade o excelente registro contido no livro "Memória Tropeira", organizado por Luiz Antonio da Cruz e Maria José Boaventura. Publicação do IHGT, 2015, 70 p.il.
***** Informante: Aluísio dos Santos, São João del-Rei, Centro, 1995.
****** Texto: Ulisses Passarelli
******* Foto: Iago C.S. Passarelli
******** Leia também neste blog a postagem
LENHEIRAS.
Muito boa matéria.
ResponderExcluirUm registro para informar às novas gerações, uma das formas como era feito o transporte de mercadorias no passado