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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




quarta-feira, 15 de abril de 2015

O demônio logrado por São Benedito

Nesta postagem o popularíssimo São Benedito volta à cena, agora no contexto da literatura popular oral. Exemplo de homem cristão, querido pelos escravos no passado, padroeiro dos congadeiros de ontem e de hoje, de origem humilde e descendência africana, é extensamente presente em diversas manifestações folclóricas em todo o Brasil.

Os dois contos aqui expostos trazem em seu bojo uma série de elementos tradicionais e típicos do gênero do "demônio logrado", como por exemplo, a forma de desaparecimento do capeta, sob uma explosão, deixando um rastro fedorento de enxofre e fumaça. Ainda cita a tripa do Judas, outra simbologia significando a entranha do mal, o âmago do ruim.

Quantas vezes ouvimos em São João del-Rei a estória do Homem do Pé de Pato... Não é do mesmo gênero mas compartilha elementos. A moça que abusasse e na quaresma se atrevesse a ir num baile, seria abordada por um moço desconhecido, de grande beleza, muito bem vestido, com requinte e elegância, que a convidaria para dançar. No meio da dança, enlevada pela sedução do jovem, a moça cairia em si estupefata, em crise de desespero ou desmaio, porque ao olhar para os sapatos de seu par via para seu espanto que eram pés de pato... O moço era o demônio, que então sumia num repentino estouro de fumaça e fedor, ou apenas se esvaía como neblina. Noutra versão corrente na mesma cidade, com o mesmo desenvolvimento e mudança só no desfecho, o belo jovem comete a deselegância de dançar de chapéu à cabeça e só pelas tantas o tira, quando acontece o mesmo choque, posto que tem chifres.

Aqui também vemos o repisamento da tentação, o diabo laçando pela aparência física, o flerte, a sedução sobre a jovem incauta.

Típico dos contos do demônio logrado é a solução inesperada para o caso, uma situação que supera a sagacidade do mal: no conto A Velha do Chinelo, por exemplo, exposto neste blog, o demônio também se materializa como cavaleiro e a solução é pela armadilha do falso testemunho; nos dois casos abaixo a solução se dá por um atoleiro e ainda pelo mesmo artifício do jovem sedutor, bonito, charmoso, só que desta feita pelo lado do bem, impedindo a aproximação do mal.

A didática ou antes catequese destes contos é notória. Usando de uma linguagem ao agrado da cultura popular e de uma dramatização folclórica, contextualizada num ambiente que simula ou sugere o rural antigo, ambos os contos de alguma forma alinham pelo exemplo os elementos devoção-tentação x racismo-discriminação.

Tem de ser entendidos e lidos à luz do folclore, a cujo campo pertencem. O ensinamento transmitido é que o racismo e a discriminação não são de Deus. São obras do mal, demoníacas. A beleza e o caráter do homem negro superou o do homem branco e cativou a moça devota. Sua devoção era tamanha que o santo pressentindo seu perigo veio em socorro sem precisar que ela pedisse. A lealdade dela ao grande taumaturgo garantiu que saísse ilesa.

Em momento algum os contos transmitem mau exemplo, nem pelo linguajar. Pelo contrário, combatem o racismo e a discriminação. Provam que a virtude sob a forma de um homem negro foi muito mais forte que a artimanha do contrário. Com seu enredo atraente passam o recado da necessidade de forte devoção, do valor e beleza do negro, do poder do santo, da retidão de conduta do fiel e da malícia que o diabo tem e usa.

Diante do exposto, segue-se dois contos desse gênero, coligidos a década e meia em Santa Cruz de Minas. 

São Benedito. Pintura popular numa bandeira de congado (catupé),
de São Sebastião da Estrela (Santo Antônio do Amparo/MG), 30/06/2013. 

1) Uma moça muito bonita ia se casar e o diabo quis atrapalhar. Tomou a forma humana e montou num cavalo muito bem arriado, prateando os metais. Vinha como um rapaz bastante elegante na vestimenta, belo, charmoso. 

A noiva era muito devota de São Benedito e pediu a benção dele para seu casamento. O santo ouviu a súplica e vendo-a em perigo pela armação de satanás, tratou de impedi-lo. Fez o cavalo dele tomar outro rumo e atolar num brejo de forma que não pudesse sair. Não podia descer para não sujar a roupa de barro. Pelejou para desatolar e não conseguiu. 

Enquanto isto, o casório aconteceu. Terminado o casamento, voltando os convidados, ao passarem pela estrada, o demônio disfarçado de jovem perguntava: 

"_ Vocês viram o Benedito?" 
  _ Não ..."

 E o coisa ruim resmungava palavras ofensivas.

Quando os recém-casados estavam em segurança o santo finalmente apareceu ao tinhoso (*) e deu ordem de desatolar. O cavalo saiu do brejo na hora e o santo falou:

"_ Não vai atrapalhar ninguém! Vai-te estourar nas tripas do Judas e feder a enxofre nas profundas dos infernos!"

Então aconteceu um estouro fumacento, com cavalo e capeta, sumindo tudo para o inferno. 

Andor de São Benedito. Festa do Rosário, Ramos (Ritápolis/MG), 24/09/2000. 

2) Uma moça era bastante devota de São Benedito e gostava muito de baile. Era uma quadrilha e o diabo estava por perto, na espreita, espiando por umas gretas (**). 

Ela dançava de forma inocente e ele cismou de perverter a moça. São Benedito, pressentindo o perigo que a jovem corria e considerando sua grande devoção, apareceu no baile para protegê-la. Veio na forma de um rapaz negro e o demônio por sua vez como um rapaz branco. 

O jovem negro logo se aproximou da moça e a pediu para dançar, se não tivesse preconceito. Ela agradando muito dele, aceitou de imediato e assim bailaram a noite toda. O diabo nada pode fazer e o santo, através de seu poder, afastou dali o capeta, que logo foi embora do baile e assim a moça foi salva. 

Notas e créditos

* Tinhoso: o demônio. Talvez o ódio do povo contra ele, a vasta mítica desenvolvida pela cultura popular ao seu redor, geraram uma vasta sinonímia, acrescida por novos termos em cada região: bruto, encardido, capiroto, pemba, coisa ruim, "malino" (maligno), cramunhão,cariá, etc.
** A informante dizia que o diabo tem licença para atentar em três situações: no ato de uma jogatina (jogos de azar), numa dança de quadrilha e onde tem cisco parado. Nesta última situação se a pessoa ao varrer juntou o lixo num canto e não pôs na lixeira ou para fora numa pá, surgem inesperadamente, discussões, desentendimentos sem qualquer motivo. É o maligno atentando. 
*** Informante: Elvira Andrade de Salles, Bairro Córrego, Santa Cruz de Minas/MG, 27/08/2000.
**** Texto e fotos: Ulisses Passarelli
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