Os Campos das Vertentes compõe uma região cultural do centro-sul mineiro, que, talvez pela antiguidade e multiplicidade de povos que aqui convergiram na prática inicial da mineração aurífera e depois de outras atividades econômicas, conservou uma série de práticas devocionais amplamente impregnadas pelos saberes da cultura popular. Dentre elas, um destaque muito tradicional é a fidelidade do povo aos festejos e preces ao redor das cruzes públicas, os cruzeiros de praças e largos.
É fato porém que as mudanças sociais e aquelas advindas da própria força do elemento romanizador do catolicismo nas primeiras décadas do século XX, contribuíram em muito para enfraquecer esses costumes das festas de Santa Cruz.
Foram famosos esses festejos nas Águas Santas (Tiradentes). A Tribuna de 1923 dá uma notícia de missa campal rezada e presença da banda militar. Consta que “os trens especiaes trafegaram com bastante concurrencia”. Outra referência do mesmo jornal em 1929 diz que houve missa na capela, celebrada pelo Padre José Bernardino de Siqueira, leilão, Procissão do Santo Lenho, banda de música e sermão. A mesma fonte dá conta de outra festa no mesmo molde na Parada do Briguentti.
No Senhor dos Montes a Festa de Santa Cruz foi animada e concorrida em 1902, garante o jornal O Combate. Saíram em procissão os andores da Virgem e do Crucificado e o vigário, Padre Gustavo Ernesto Coelho, comandou as celebrações, que além de terço cantado teve um Te-Deum laudamus. Houve romarias, fogos de artifício, música pela banda e orquestra Lira Sanjoanense, sob a regência de Luiz Baptista Lopes e ainda, "bonita e deslumbrante illuminação na frente da capella".
Era costume antigo a existência de um pequeno cofre nos cruzeiros onde o povo concorria com moedas para as almas, na intenção de lhes render celebrações em sufrágio ou compras de velas. Mesmo outrora já havia os ladrões que alvejavam estes depositários da boa fé alheia, como noticiou O Combate em 1901, em São João del-Rei:
“Sacrilegio. Na semana passada foram arrombados os cofres do cruzeiro do Largo da Camara, o do Barro e o do Cruzeiro do Largo da Cruz. Os gatunos sacrilegos tentaram forçar o do cruzeiro da matriz. Chamamos a atenção da policia para esses factos.”
Durante as festa de Santa Cruz os cruzeiros dos povoados eram enfeitados, bem como adornavam-se as casas, janelas, portais, cruzes domésticas, no dia 3 de maio (lembrando o costume das maias ibéricas). Diante dos cruzeiros reuniam-se para rezar terços e cantar benditos. Nos tempos de seca vinham os pedidos de clemência, para que caísse a chuva. Na zona rural de Bias Fortes, três meninos (inocentes) seguravam imagens de santos enquanto os fiéis de joelho imploravam (*):
"Chega, chega, pecadores,
chega com grande amore
vem beijá a Santa Cruz
nos pés de Nosso Sinhôre"
A mesma fonte de informação relata o costume de se fazer cruzes com talos de arruda ou de guiné na Sexta-feira da Paixão e distribuir a conhecidos e familiares como objeto de proteção.
Existe também o hábito de fincar cruzes nas beiras de caminhos, marcando lugares a se sacralizar porque antes eram assombrados; pontos de reunião da comunidade rural para preces, locais de parada das estações de via-sacra ou ainda, assinalando uma morte ali acontecida. Quase sempre humildes, são todavia objetos sagrados para o povo e motivação para terços, cantorias e congregação de devotos.
Sobre o arraigado costume de se fixar pequenas cruzes enfeitadas nas fachadas das casas e portas, colhi nas Águas Férreas, Bairro Tijuco, em São João del-Rei, um depoimento segundo o qual, quando Jesus morreu, o mundo ficou na escuridão. Nossa Senhora disse que quem colocasse uma cruz diante da casa teria a mesma abençoada. Na noite de Santa Cruz (03 de maio), Nossa Senhora passa pelas ruas vendo qual casa tem cruz na fachada e então abençoa aquele lar. Por isto no dia de Santa Cruz troca-se seus enfeites do ano anterior (**)
“Chiquinho da Florinda”, referindo-se à cidade de Tiradentes, disse que há muitos anos passados, durante uma epidemia de varíola, onde muita gente morria, um padre orientou a população a por uma cruz diante da porta, pois assim lhe orientara um anjo em visão. O povo obedeceu e ficou curado. Daí por diante o costume prosseguiu, crendo-se que afaste doenças e todos os males, inclusive o demônio. Narra ainda que a versão mais comum explica que as pessoas que tiverem a cruz enfeitada na dianteira a 3 de maio, receberão a visita de Nossa Senhora, que à procura de seu Filho, entra nas casas onde há o sinal cristão e aí deixa sua bênção. Esta última versão ouvi-a também em São João del-Rei diversas vezes (zona urbana e rural) e é possível que seja mais difundida.
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Cruz de Fachada, 20/04/2014. São Gonçalo do Amarante, São João del-Rei/MG. |
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Cruz de via sacra, 03/08/2014. Estrada entre São Gonçalo do Amarante e Mestre Ventura, São João del-Rei/MG. |
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Cruz de beira de estrada, fevereiro/1997. Estrada entre Boa Vista e Mama Rosa, Conceição da Barra de Minas/MG. |
Referências Hemerográficas
A Tribuna, n.471, 06/05/1923
A Tribuna, n.9771, 12/05/1929
O Combate, n.94, 29/08/1901
O Combate, n.199, 18/09/1902
FLORINDA, Chiquinho da. A Cruz nossa de cada dia. In: Outras Palavras. Tiradentes, n.5, abr. / 2001
* Informante: Elvira Andrade de Salles, 18/09/1996
** Informante: Antônio Geraldo dos Reis, 1993
***Texto e fotos: Ulisses Passarelli
**** fonte de pesquisa jornalística: site da Biblioteca Municipal Baptista Caetano d'Almeida, São João del-Rei/MG
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