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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




domingo, 15 de março de 2015

Encruzilhada: o cruzamento da sorte

“Encruza”. Cruzamento de duas vias. Ponto onde duas ruas, estradas, caminhos ou trilhas se encontram esboçando uma cruz. No sul mineiro o entrocamento de variante do Caminho Geral do Sertão (leia-se atualmente “Estrada Real”) valeu o nome ao município de Cruzília. No Nordeste, pelo interior do Rio Grande do Norte, a nomenclatura é outra: "Quatro Bocas" é uma  povoação recôndita no município de Pedro Velho, indicando a entrada de quatro caminhos, a "boca" de uma estrada. 

O Dicionário de Cascudo, cita que na Roma antiga já corria a crença de que esse é um lugar de espectros. Na Bíblia, o Livro de Ezequiel contém citações aos cruzamentos de caminhos – 16: 24, 31; e 21: 26, neste citando especificamente a consulta à sorte na encruzilhada pelo rei babilônio. 

Na visão popular calcada em antiquíssimas tradições, a encruzilhada é o lugar típico da aparição das assombrações em todo o tempo, mormente na quaresma. É a morada ideal dos seres do imaginário, dos monstros mitológicos aparecerem, dos espíritos malfazejos praticarem seus atos perversos. É o lugar da decisão: para onde seguir? ... podendo levar a um lugar certo, do bem, ou errado, do pecado; rumo da sorte ou do azar. 

Indefinição, incerteza, é o que a encruzilhada proporciona. Quando alguém se vê numa circunstância da vida que tem que tomar uma decisão que exclui totalmente outra, usamos dizer: "está numa encruzilhada..." ou ao fato da decisão em si dizemos de forma figurada que pertence "às encruzilhadas da vida..."

Como tal exige protocolo. Encruza se atravessa o mais rápido possível e se vai em frente. Parar sobre elas é só o mínimo de tempo possível. Não é lugar adequado para conversar, bater-papo, contar segredos, expectativas ou planos, o que poderá botá-los à perdição. Se a pessoa vem rezando pela rua, ao atravessar um cruzamento deve ao menos em pensamento pedir licença: "_ dá licença!", e assim não sofrerá perturbações. 

Referenciada também num canto de congado:


"Quando eu vim da Bahia, 
a estrada eu não via... BIS 
cada encruza qu’eu passava, 
uma vela eu acendia!” BIS 
(Catupé, Santa Cruz de Minas, Cap. Luís Pereira dos Santos, 2005). 

É comum os congadeiros aos passarem em forma pelas encruzilhadas, sob o comando do capitão, fazerem uma coreografia na entrada da mesma, chamada "meia-lua", que consiste num movimento semi-circular da fila de dançantes da direita passando para a esquerda e a da esquerda passando para a direita. O comando em geral se faz com o cruzamento do braço do capitão, com as palmas das mãos voltadas para cima, tocando-se a nível dos pulsos. O descruzamento será na repetição do movimento coreográfico após a encruzilhada ou na próxima. Uma segunda coreografia, um pouco mais complexa, inclui quatro meias luas, uma em cada boca da encruzilhada. Seja como for, é uma medida preventiva, pois acreditam que seu descuido poderá prejudicar o congado, tal como desafiná-lo, provocar desentendimentos, mal estar físico nalgum congadeiro mais despreparado. 

Na concepção religiosa afro-brasileira Ogum é o senhor dos caminhos e regente maior do centro da encruzilhada, enquanto seus cantos pertencem aos exus. Daí pedir-se licença a ambos e destinar as entregas (despachos e oferendas) no lugar certo conforme a entidade de destino, sob pena de não obter o resultado desejado. Neste sentido e com mais detalhes distingue-se a “encruza fechada”: em forma de letra T, domínio das pomba-giras, lugar de trabalho de amarração; "encruza em Y": domínio principalmente dos cangaceiros (casta de exus); "encruzas complexas": entroncamento de várias vias: toda categoria de entidades da linha esquerda. Estas são consideradas perigosas posto que frequentadas inclusive e principalmente pelos espíritos sem luz (trevosos), atrasados. 

Encruzilhada tem dono. É a passagem temerosa, é a travessia do medo, da incerteza, da instabilidade momentânea. É a morada da assombração, do maligno. Esta é a concepção que impregnou a alma da cultura popular. 


Uma encruzilhada em Y. 

Referências Bibliográficas


CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d]. 930p.
BÍBLIA SAGRADA. 6.ed. São Paulo: Ave Maria, 1965.


Notas e Créditos

* Texto: Ulisses Passarelli
** Foto: Iago C.S. Passarelli

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