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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




quarta-feira, 1 de março de 2017

Sanfonas & sanfoneiros

Sanfona é no sentido mais amplo da palavra uma família de instrumentos musicais, que comporta pelo menos quatro modelos básicos: as sanfonas (propriamente ditas), os acordeons, as concertinas e os bandoneons. Sanfonas e acordeons se tocam junto ao peito, presos aos ombros por alças de couro; bandoneon e concertinas não tem essas alças, a não ser curta para as mãos e toca livremente junto ao tronco ou apoiando-se sobre a perna. Todos são aerofones de palhetas livres. O ar não se desloca pela força do sopro, mas sim movido por um fole preso a uma estrutura de caixa dupla, que contém todos os mecanismos. A forma da caixa varia com o instrumento. As notas musicais são executadas apertando-se botões e teclas. 

A origem remota é considerada no cheng chinês, instrumento datado de 2700 a.C. O conhecimento de seu mecanismo adentrou a Europa via Rússia no século XVIII e nos dizeres de HINDLEY (1981) "encorajou as experiências feitas com palhetas livres no início do século XIX". Na primeira metade dos oitocentos, inventores aplicaram o mecanismo a instrumentos como o harmônio (inventado pelo francês parisiense Alexandre François Debain, em 1840, diz o mesmo autor), à guisa de um órgão portátil, de sala, e a harmônica ou concertina, aperfeiçoada em 1830 por Sir Charles Wheatstone; tanto mais, o acordeão, invenção alemã de 1820, ainda segundo HINDLEY. Nos primeiros tempos tiveram um uso mais doméstico. A família das sanfonas foi popularíssima entre vários povos, notadamente alemães. Teve sua entrada no Brasil sobretudo pelas mãos de migrantes europeus a partir do século XIX. Mantidas em âmbito familiar, passando de pai para filho o aprendizado de oitiva, logo se expandiu e gozou de imensa popularidade, mais tarde favorecida pelo crescimento da malha ferroviária no país. A família das sanfonas deu impulso à música popular nacional, prestando-se de base a um sem número de manifestações folclóricas e à música popular, notadamente todas as vertentes do forró e algumas do sertanejo. Polcas, mazurcas, xaxados, quadrilhas, chamamés, rancheiras, baiões, calangos, rasta-pés, fandangos, bailes... em tudo a sanfona entrometeu, invadiu, impulsionou. Orquestrou-se com os instrumentos de corda e de marcação e assim mesclada deixou fortemente sua marca nas folias e congadas. Em várias partes do país, exímios músicos fazem as alegrias do povo com seu virtuosismo e não é à toa que daqui e dali há de costume festivais de sanfoneiros e orquestras de acordeon, sinais inequívocos da citada popularidade. Alguns artistas celebrizaram-se com este instrumento ao peito: Luiz Gonzaga, Sivuca, Dominguinhos, Mário Zan, Caçulinha e tantos outros renomados. 
A sanfona (*) propriamente dita no Brasil tem botões dos dois lados da caixa, tendo 2, 4, 8 ou 12 baixos. É diatônica (produz um tom quando se abre o fole e outro diferente quando se fecha, apertando-se o mesmo botão). É a principal razão de sua dificuldade de execução. O músico que executa este instrumento é o sanfoneiro. 

O acordeon ou acordeão em geral possui teclas no local de botões, do lado onde se toca a melodia, por ser harmônico (produz o mesmo tom quando se abre o fecha o fole) e por possuir um total de 24 baixos para cima (24, 32, 36, 40, 48, 80, 120). Os botões estão apenas na função dos baixos ("baixaria"). O acordeon faz acompanhamento, harmonia e ritmo. O músico que executa este instrumento é o acordeonista. 

A caixa que sustenta o fole e o mecanismo do instrumento é retangular, tanto na sanfona quanto no acordeon. De ordinário é embelezada por pintura e acabamento, como por exemplo frisos prateados, quinas arredondadas, pequenos desenhos. 

A concertina é um instrumento musical da família da sanfona, de pequeno porte, conhecida Brasil afora ainda no século XIX e começo do seguinte, com uso nas atividades folclóricas mais diversas. O verbete correspondente do Caldas Aulete diz que tem “uma série de buracos que se tampam com os dedos e por onde saem os sons que se formam no interior da caixa pelo movimento de um fole e de palhetas correspondentes aos buracos” A melodia é imposta por botões como a sanfona. Mais tarde surgiram concertinas com botões dos dois lados, em substituição às aberturas. Sua característica mais marcante é a caixa poligonal de seis ou oito lados. A escala é diatônica. A concertina nunca teve a popularidade nacional das sanfonas e acordeons e por elas foi olvidada. Nos dias atuais não tem uso nos meios populares brasileiros, salvo, talvez, alguma eventual exceção regional. 

A família comporta ainda o bandoneon ou bandônio, este de caixa quadrangular, confundido no Brasil com a concertina e às vezes até chamado de concertina. Assim como ela, nunca alcançou no país o prestígio da sanfona, exceto em terras meridionais e capixabas. As dificuldades de execução devem ter contribuído para isto. Sua afinação é difícil e vários detalhes técnicos o diferenciam do acordeon. Ainda é usado, como por exemplo, entre grupos folclóricos de imigrantes europeus no Espírito Santo ou nos estados do sul, ou nos meios populares dessas regiões, onde chegou a estar presentes em ternos de Reis. O bandoneon difundiu-se no Uruguai e ficou célebre na Argentina, indispensável para o tango. 

Para a festividades folclóricas a sanfona de oito baixos é a mais conhecida ou pelo menos foi a que mais se afamou. No Rio Grande do Sul a chamam “gaita de foles” ou “gaita de ponto”. No Campo das Vertentes de Minas Gerais, sua alcunha é “cabeça de égua” ou no diminutivo, "cabecinha de égua"; no Nordeste do país, é a popular “pé de bode”. Era a preferida para as atividades folclóricas em geral. Sua imensa popularidade e renome se esparramou sobre toda a família de instrumentos e por extensão e genericamente, os acordeons são também chamados de sanfonas. Por conseguinte, nos meios populares habitualmente não se diz acordeonista; indistintamente os chamam "sanfoneiro" e neste texto esta palavra é usada em sentido amplo e popular. 

O acordeon assumiu nos meios populares as mesmas funções outrora exclusivas das sanfonas. Conquistou o espaço com rapidez por sua maior facilidade de execução e amplitude de recursos musicais. Uma expressão usual é chamar os acordeons de "sanfona pianada", referência popular à existência de teclas como as de um piano no lugar de botões para a harmonia. 

"Tocadô dessa sanfona,
toca certo na toada;
acompanho a vorta toda,
da sanfona pianada."
(Calango, Barbacena/MG, fevereiro/1996) 

Volta da sanfona ("vorta") é o interlúdio, trecho de execução solista do sanfoneiro entre as unidades do canto (refrão/estrofe ou solo/coro).

O sanfoneiro é uma figura indispensável nas folias de Reis, nas de São Sebastião, nas do Divino Espírito Santo, nos bailes de roça, quadrilhas juninas, nos calangos, nos congos e em muitos catupés. Por vezes até nos moçambiques aparecem, dando suporte melódico à execução das jombas. Sua formação, como já dito, é a do aprendizado informal. Normalmente o sanfoneiro popular não teve ensino regular de música. Viu o pai tocando, aprendeu umas posições com o avô, um acompanhamento com o tio, observou um colega tocando e imitou. Em casa, vez por outra pega a sanfona e senta no quintal, debaixo de uma árvore; no alpendre, nas horas de folga junto ao fogão à lenha. Assim vai treinando. Se familiariza com o instrumento. Aprende espontaneamente seus recursos. Em enquanto fazem assim, já um jovem curioso os observa e vai timidamente aprendendo também. Em estágio mais avançado começa a tocar em companhia de outros sanfoneiros e na prática aprimora e tem seus lapsos corrigidos. Em terceira fase ingressa nos folguedos populares e se torna de fato um "tocador". Aliás, este é o termo corriqueiro, consagrado:

"Tocador dessa sanfona
tem o dedo de papel;
quando ele pega a tocar
parece um favo de mel!"
(Calango, Barbacena/MG, fevereiro/1996)

O sanfoneiro goza de um status significativo nesse meio. Mais que tocar, geralmente também domina o canto. É então o "cantador". O toque da sanfona gera uma música prestigiada na tradição brasileira ("parece um favo de mel..."). É respeitado e valorizado por festeiros, capitães de congado, mestres de folias. Sabem que precisam deles e disputa-se o bom sanfoneiro. São indivíduos muito importantes na manutenção da tradição, pois a conservam de memória _ o que é extraordinário _  e na prática sabem uma vasta gama de toadas, ritmos, melodias tradicionais, que são a base das danças e folguedos. Em especial nas folias é algo quase essencial, pois a sanfona é o instrumento por assim dizer regente, que conduz a essência melódica.

É preocupante aqui nas Vertentes a diminuição dos sanfoneiros. Já vemos folia saindo sem sanfoneiro, porque não há disponível; catupé sem sanfoneiro por que não tem quem possa ocupar a função. Poucos, muito poucos jovens surgem em alvorada neste cenário. Praticamente só se pode contar com os veteranos. Muito bem e que Deus lhes dê vida longa e saúde. Seu saber é notório. Seu papel, primordial. Mas e quando se forem? Aparecerão novos músicos para fechar a lacuna? Os tempos são outros...

"O verso que eu tô cantando,
tô tornando a repetir: 

Valha-me Nossa Senhora,
 Santo Antônio Livradô, 
fico triste, apaixonada
quando morre um cantadô..."
(Calango, Barbacena/MG, fevereiro/1996) 

Não é possível considerar a música popular brasileira no seu todo sem as sanfonas, pois esta família de instrumentos deixou um legado imensurável para a mesma. A cultura caipira também a absorveu e aclimatou ao seu universo extraordinário. Já por isto, muitas vezes, ao ouvir o toque de um fole, sua música nos remete a um sentimento a bem da verdade provinciano; nos conduz à saudade do campo, traz o desejo de dançar um baile num terreiro poeirento, de ouvir uma folia em distantes rincões. O ciclo das festas juninas, outrora só de junho, hoje expandido para julho e até meados de agosto, não se desliga das sanfonas. Estão presentes ao vivo ou no som mecânico; típicas... identificadoras. Em muitas regiões do país a sanfona ou que outro nome tenha, com teclas ou botões, com poucos ou muitos baixos, diatônica ou cromática... não importa _ chega a ser elemento identitário.

As fotografias a seguir, tomadas de forma aleatória do acervo, ilustram alguns destes músicos extraordinários, mas, simbolicamente, fica prestada a homenagem a todos os sanfoneiros da região que com grande dedicação e capacidade contribuem para a conservação de nossas tradições populares, parte desse gigantesco patrimônio imaterial edificado e mantido por nossa gente. 

1- Sanfoneiro tocando uma oitenta baixos no congo,
 São Gonçalo do Amarante (São João del-Rei/MG),
durante a Festa de Nossa Senhora do Rosário naquela comunidade.13/10/2013.   

2- Sanfoneiro tocando uma oito baixos no congo,
São Gonçalo do Amarante (São João del-Rei/MG),
durante a Festa de Nossa Senhora do Rosário naquela comunidade. 13/10/2013. 

3- Sanfoneiro com o acordeon no congo,
São Gonçalo do Amarante (São João del-Rei/MG), 
durante a Festa do Divino no Bairro Matosinhos,
na sede municipal. 19/05/2013.

4- Sanfoneiro com o acordeon no congo,
São Gonçalo do Amarante (São João del-Rei/MG), 
durante a Festa do Divino no Bairro Matosinhos,
na sede municipal. 19/05/2013.   

5- Sanfoneiros do congo de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno
(São João del-Rei/MG). 15/10/2014.  

6- Sanfoneiros à frente do catupé de Coronel Xavier Chaves/MG. 15/05/2016.
7- Sanfoneira no comando da Folia do Divino do Jardim São José,
Bairro Tijuco, São João del-Rei/MG, durante a Festa do Espírito Santo nesta cidade.
23/05/2015.  

8- Sanfoneiro e folião da Folia do Divino da Rua São João,
Bairro Tijuco, São João del-Rei, durante a Festa do Espírito Santo nesta cidade.
23/05/2015
9- Sanfoneiro e folião da folia de Reis do Elvas,
Tiradentes/MG, durante visita a uma residência, enquanto cantava diante do presépio. 
30/12/2016. 
10- Detalhe dos elementos artísticos da sanfona mostrada na fotografia  2.
Referências bibliográficas

AULETE, Caldas. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. 3.ed. Rio de Janeiro: Delta, 1978.

FILGUEIRAS, Otto. Sanfona: fole de fôlego. Globo Rural, n.94, ag. / 1993.

HINDLEY, Geoffrey. Instrumentos Musicais. Melhoramentos: São Paulo, 1981. 155p.il. p.148-150. Coleção Prisma. 

Referências na Internet
(acesso em 01/03/2017, 10:20h)

Acordeão. In: Wikipedia. https://pt.wikipedia.org/wiki/Acorde%C3%A3o 
Concertina. In: Wikipedia. https://pt.wikipedia.org/wiki/Concertina
Bandoneón. In Wikipedia. https://pt.wikipedia.org/wiki/Bandone%C3%B3n
Gaita-ponto. In Wikipedia. https://pt.wikipedia.org/wiki/Gaita-ponto
Sanfona. In: Wikipedia. https://pt.wikipedia.org/wiki/Sanfona


Notas e Créditos

* Sanfona é o nome aplicado também a outro instrumento musical, porém cordofone, a viola de roda, como seu sinônimo o que pode gerar confusão. Sua popularidade está na Europa e não tem tradição no Brasil. 
**Texto: Ulisses Passarelli
*** Fotografias: 5 - Ulisses Passarelli; demais fotografias - Iago C.S. Passarelli

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