Sanfona é no sentido mais amplo da palavra uma família de instrumentos musicais, que comporta pelo menos quatro modelos básicos: as sanfonas (propriamente ditas), os acordeons, as concertinas e os bandoneons. Sanfonas e acordeons se tocam junto ao peito, presos aos ombros por alças de couro; bandoneon e concertinas não tem essas alças, a não ser curta para as mãos e toca livremente junto ao tronco ou apoiando-se sobre a perna. Todos são aerofones de palhetas livres. O ar não se desloca pela força do sopro, mas sim movido por um fole preso a uma estrutura de caixa dupla, que contém todos os mecanismos. A forma da caixa varia com o instrumento. As notas musicais são executadas apertando-se botões e teclas.
A origem remota é considerada no cheng chinês, instrumento datado de 2700 a.C. O conhecimento de seu mecanismo adentrou a Europa via Rússia no século XVIII e nos dizeres de HINDLEY (1981) "encorajou as experiências feitas com palhetas livres no início do século XIX". Na primeira metade dos oitocentos, inventores aplicaram o mecanismo a instrumentos como o harmônio (inventado pelo francês parisiense Alexandre François Debain, em 1840, diz o mesmo autor), à guisa de um órgão portátil, de sala, e a harmônica ou concertina, aperfeiçoada em 1830 por Sir Charles Wheatstone; tanto mais, o acordeão, invenção alemã de 1820, ainda segundo HINDLEY. Nos primeiros tempos tiveram um uso mais doméstico. A família das sanfonas foi popularíssima entre vários povos, notadamente alemães. Teve sua entrada no Brasil sobretudo pelas mãos de migrantes europeus a partir do século XIX. Mantidas em âmbito familiar, passando de pai para filho o aprendizado de oitiva, logo se expandiu e gozou de imensa popularidade, mais tarde favorecida pelo crescimento da malha ferroviária no país. A família das sanfonas deu impulso à música popular nacional, prestando-se de base a um sem número de manifestações folclóricas e à música popular, notadamente todas as vertentes do forró e algumas do sertanejo. Polcas, mazurcas, xaxados, quadrilhas, chamamés, rancheiras, baiões, calangos, rasta-pés, fandangos, bailes... em tudo a sanfona entrometeu, invadiu, impulsionou. Orquestrou-se com os instrumentos de corda e de marcação e assim mesclada deixou fortemente sua marca nas folias e congadas. Em várias partes do país, exímios músicos fazem as alegrias do povo com seu virtuosismo e não é à toa que daqui e dali há de costume festivais de sanfoneiros e orquestras de acordeon, sinais inequívocos da citada popularidade. Alguns artistas celebrizaram-se com este instrumento ao peito: Luiz Gonzaga, Sivuca, Dominguinhos, Mário Zan, Caçulinha e tantos outros renomados.
A sanfona (*) propriamente dita no Brasil tem botões dos dois lados da caixa, tendo 2, 4, 8 ou 12 baixos. É diatônica (produz um tom quando se abre o fole e outro diferente quando se fecha, apertando-se o mesmo botão). É a principal razão de sua dificuldade de execução. O músico que executa este instrumento é o sanfoneiro.
O acordeon ou acordeão em geral possui teclas no local de botões, do lado onde se toca a melodia, por ser harmônico (produz o mesmo tom quando se abre o fecha o fole) e por possuir um total de 24 baixos para cima (24, 32, 36, 40, 48, 80, 120). Os botões estão apenas na função dos baixos ("baixaria"). O acordeon faz acompanhamento, harmonia e ritmo. O músico que executa este instrumento é o acordeonista.
A caixa que sustenta o fole e o mecanismo do instrumento é retangular, tanto na sanfona quanto no acordeon. De ordinário é embelezada por pintura e acabamento, como por exemplo frisos prateados, quinas arredondadas, pequenos desenhos.
A concertina é um instrumento musical da família da sanfona, de pequeno porte, conhecida Brasil afora ainda no século XIX e começo do seguinte, com uso nas atividades folclóricas mais diversas. O verbete correspondente do Caldas Aulete diz que tem “uma série de buracos que se tampam com os dedos e por onde saem os sons que se formam no interior da caixa pelo movimento de um fole e de palhetas correspondentes aos buracos” A melodia é imposta por botões como a sanfona. Mais tarde surgiram concertinas com botões dos dois lados, em substituição às aberturas. Sua característica mais marcante é a caixa poligonal de seis ou oito lados. A escala é diatônica. A concertina nunca teve a popularidade nacional das sanfonas e acordeons e por elas foi olvidada. Nos dias atuais não tem uso nos meios populares brasileiros, salvo, talvez, alguma eventual exceção regional.
A família comporta ainda o bandoneon ou bandônio, este de caixa quadrangular, confundido no Brasil com a concertina e às vezes até chamado de concertina. Assim como ela, nunca alcançou no país o prestígio da sanfona, exceto em terras meridionais e capixabas. As dificuldades de execução devem ter contribuído para isto. Sua afinação é difícil e vários detalhes técnicos o diferenciam do acordeon. Ainda é usado, como por exemplo, entre grupos folclóricos de imigrantes europeus no Espírito Santo ou nos estados do sul, ou nos meios populares dessas regiões, onde chegou a estar presentes em ternos de Reis. O bandoneon difundiu-se no Uruguai e ficou célebre na Argentina, indispensável para o tango.
Para a festividades folclóricas a sanfona de oito baixos é a mais conhecida ou pelo menos foi a que mais se afamou. No Rio Grande do Sul a chamam “gaita de foles” ou “gaita de ponto”. No Campo das Vertentes de Minas Gerais, sua alcunha é “cabeça de égua” ou no diminutivo, "cabecinha de égua"; no Nordeste do país, é a popular “pé de bode”. Era a preferida para as atividades folclóricas em geral. Sua imensa popularidade e renome se esparramou sobre toda a família de instrumentos e por extensão e genericamente, os acordeons são também chamados de sanfonas. Por conseguinte, nos meios populares habitualmente não se diz acordeonista; indistintamente os chamam "sanfoneiro" e neste texto esta palavra é usada em sentido amplo e popular.
O acordeon assumiu nos meios populares as mesmas funções outrora exclusivas das sanfonas. Conquistou o espaço com rapidez por sua maior facilidade de execução e amplitude de recursos musicais. Uma expressão usual é chamar os acordeons de "sanfona pianada", referência popular à existência de teclas como as de um piano no lugar de botões para a harmonia.
"Tocadô dessa sanfona,
toca certo na toada;
acompanho a vorta toda,
da sanfona pianada."
(Calango, Barbacena/MG, fevereiro/1996)
Volta da sanfona ("vorta") é o interlúdio, trecho de execução solista do sanfoneiro entre as unidades do canto (refrão/estrofe ou solo/coro).
O sanfoneiro é uma figura indispensável nas folias de Reis, nas de São Sebastião, nas do Divino Espírito Santo, nos bailes de roça, quadrilhas juninas, nos calangos, nos congos e em muitos catupés. Por vezes até nos moçambiques aparecem, dando suporte melódico à execução das jombas. Sua formação, como já dito, é a do aprendizado informal. Normalmente o sanfoneiro popular não teve ensino regular de música. Viu o pai tocando, aprendeu umas posições com o avô, um acompanhamento com o tio, observou um colega tocando e imitou. Em casa, vez por outra pega a sanfona e senta no quintal, debaixo de uma árvore; no alpendre, nas horas de folga junto ao fogão à lenha. Assim vai treinando. Se familiariza com o instrumento. Aprende espontaneamente seus recursos. Em enquanto fazem assim, já um jovem curioso os observa e vai timidamente aprendendo também. Em estágio mais avançado começa a tocar em companhia de outros sanfoneiros e na prática aprimora e tem seus lapsos corrigidos. Em terceira fase ingressa nos folguedos populares e se torna de fato um "tocador". Aliás, este é o termo corriqueiro, consagrado:
"Tocador dessa sanfona
tem o dedo de papel;
quando ele pega a tocar
parece um favo de mel!"
(Calango, Barbacena/MG, fevereiro/1996)
O sanfoneiro goza de um
status significativo nesse meio. Mais que tocar, geralmente também domina o canto. É então o "cantador". O toque da sanfona gera uma música prestigiada na tradição brasileira (
"parece um favo de mel..."). É respeitado e valorizado por festeiros, capitães de congado, mestres de folias. Sabem que precisam deles e disputa-se o bom sanfoneiro. São indivíduos muito importantes na manutenção da tradição, pois a conservam de memória _ o que é extraordinário _ e na prática sabem uma vasta gama de toadas, ritmos, melodias tradicionais, que são a base das danças e folguedos. Em especial nas folias é algo quase essencial, pois a sanfona é o instrumento por assim dizer regente, que conduz a essência melódica.
É preocupante aqui nas Vertentes a diminuição dos sanfoneiros. Já vemos folia saindo sem sanfoneiro, porque não há disponível; catupé sem sanfoneiro por que não tem quem possa ocupar a função. Poucos, muito poucos jovens surgem em alvorada neste cenário. Praticamente só se pode contar com os veteranos. Muito bem e que Deus lhes dê vida longa e saúde. Seu saber é notório. Seu papel, primordial. Mas e quando se forem? Aparecerão novos músicos para fechar a lacuna? Os tempos são outros...
"O verso que eu tô cantando,
tô tornando a repetir:
Valha-me Nossa Senhora,
Santo Antônio Livradô,
fico triste, apaixonada
quando morre um cantadô..."
(Calango, Barbacena/MG, fevereiro/1996)
Não é possível considerar a música popular brasileira no seu todo sem as sanfonas, pois esta família de instrumentos deixou um legado imensurável para a mesma. A cultura caipira também a absorveu e aclimatou ao seu universo extraordinário. Já por isto, muitas vezes, ao ouvir o toque de um fole, sua música nos remete a um sentimento a bem da verdade provinciano; nos conduz à saudade do campo, traz o desejo de dançar um baile num terreiro poeirento, de ouvir uma folia em distantes rincões. O ciclo das festas juninas, outrora só de junho, hoje expandido para julho e até meados de agosto, não se desliga das sanfonas. Estão presentes ao vivo ou no som mecânico; típicas... identificadoras. Em muitas regiões do país a sanfona ou que outro nome tenha, com teclas ou botões, com poucos ou muitos baixos, diatônica ou cromática... não importa _ chega a ser elemento identitário.
As fotografias a seguir, tomadas de forma aleatória do acervo, ilustram alguns destes músicos extraordinários, mas, simbolicamente, fica prestada a homenagem a todos os sanfoneiros da região que com grande dedicação e capacidade contribuem para a conservação de nossas tradições populares, parte desse gigantesco patrimônio imaterial edificado e mantido por nossa gente.
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1- Sanfoneiro tocando uma oitenta baixos no congo, São Gonçalo do Amarante (São João del-Rei/MG), durante a Festa de Nossa Senhora do Rosário naquela comunidade.13/10/2013. |
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2- Sanfoneiro tocando uma oito baixos no congo, São Gonçalo do Amarante (São João del-Rei/MG),durante a Festa de Nossa Senhora do Rosário naquela comunidade. 13/10/2013. |
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3- Sanfoneiro com o acordeon no congo, São Gonçalo do Amarante (São João del-Rei/MG), durante a Festa do Divino no Bairro Matosinhos, na sede municipal. 19/05/2013. |
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4- Sanfoneiro com o acordeon no congo, São Gonçalo do Amarante (São João del-Rei/MG), durante a Festa do Divino no Bairro Matosinhos, na sede municipal. 19/05/2013. |
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5- Sanfoneiros do congo de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno (São João del-Rei/MG). 15/10/2014. |
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6- Sanfoneiros à frente do catupé de Coronel Xavier Chaves/MG. 15/05/2016. |
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7- Sanfoneira no comando da Folia do Divino do Jardim São José, Bairro Tijuco, São João del-Rei/MG, durante a Festa do Espírito Santo nesta cidade. 23/05/2015. |
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8- Sanfoneiro e folião da Folia do Divino da Rua São João, Bairro Tijuco, São João del-Rei, durante a Festa do Espírito Santo nesta cidade. 23/05/2015 |
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9- Sanfoneiro e folião da folia de Reis do Elvas, Tiradentes/MG, durante visita a uma residência, enquanto cantava diante do presépio. 30/12/2016. |
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10- Detalhe dos elementos artísticos da sanfona mostrada na fotografia 2. |
Referências bibliográficas
AULETE, Caldas. Dicionário
Contemporâneo da Língua Portuguesa. 3.ed. Rio de Janeiro: Delta, 1978.
FILGUEIRAS, Otto. Sanfona: fole de fôlego. Globo Rural, n.94, ag. / 1993.
HINDLEY, Geoffrey. Instrumentos Musicais. Melhoramentos: São Paulo, 1981. 155p.il. p.148-150. Coleção Prisma.
Referências na Internet
(acesso em 01/03/2017, 10:20h)
Acordeão. In: Wikipedia. https://pt.wikipedia.org/wiki/Acorde%C3%A3o
Concertina. In: Wikipedia. https://pt.wikipedia.org/wiki/Concertina
Bandoneón. In Wikipedia. https://pt.wikipedia.org/wiki/Bandone%C3%B3n
Gaita-ponto. In Wikipedia. https://pt.wikipedia.org/wiki/Gaita-ponto
Sanfona. In: Wikipedia. https://pt.wikipedia.org/wiki/Sanfona
Notas e Créditos
* Sanfona é o nome aplicado também a outro instrumento musical, porém cordofone, a viola de roda, como seu sinônimo o que pode gerar confusão. Sua popularidade está na Europa e não tem tradição no Brasil.
**Texto: Ulisses Passarelli
*** Fotografias: 5 - Ulisses Passarelli; demais fotografias - Iago C.S. Passarelli
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