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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




sexta-feira, 3 de junho de 2016

Jaguara... que nome é este?

O arraial da Jaguara é uma comunidade quilombola, distrito de Nazareno/MG. Situa-se no limite extremo daquele município, delimitado imediatamente pelo Córrego da Cachoeira ou Córrego da Jaguara, cuja margem oposta já é São João del-Rei. Na verdade, Jaguara pertencia a este município até dezembro de 1953, ano que Nazareno se emancipou.

Jaguara situa-se imediatamente ao sul da Rodovia BR-265, a apenas 4 km de distância. Está a 19km de Nazareno, 40km de São João del-Rei e a 7km do Caquende, nas margens da Represa de Camargos (que barrou o Rio Grande).

Hoje cercada por grandes plantações no passado foi uma zona de matas cerradas, da qual existem alguns capões vestigiais. A comunidade em si consiste de pequenas propriedades rurais e um aglomerado de casas numa encosta de terras férteis. Bem ao centro há uma pedreira e a Igreja de Nossa Senhora do Carmo, padroeira local. Há também um pequeno cemitério, no alto do morro sobranceiro. Na parte baixa se destaca o campo de futebol, na várzea do córrego citado. Junto dele, uma pequena bica de água potável, sempre procurada para dessedentar os viandantes.

Possuiu uma forte tradição de carreiros e tropeiros, que as mudanças sócio-econômicas esfacelaram e hoje se encontra desaparecida. A região intermediava comércio de produtos agropecuários com outras comunidades no lombo dos burros cargueiros no gemido do carro de bois.

A festa da padroeira é um destaque local, em julho, e ainda a Festa da Consciência Negra, em novembro, que congrega a convite grupos culturais vindos de outras paragens, tais como congados, capoeiras e o grupo Pilão de Nhá (este do Caquende).

O local fica nas imediações do Caminho Velho da Estrada Real (Caminho Geral do Sertão), que atravessava o Rio Grande entre a Capela do Saco (Carrancas) e Caquende (São João del-Rei). Ora, o roteiro para as minas traçado na obra de Francisco Tavares de Brito, datado de 1732, conforme citação de LIMA JÚNIOR (1995), revela que após Carrancas se chegava ao Rio Grande e depois o ponto seguinte era Tijuca e depois Rio das Mortes Pequeno e São João del-Rei. Por estas informações se deduz que o tal caminho ao transpor o Rio Grande seguia para a região da atual São Sebastião da Vitória (distrito são-joanense), ao lado da qual existe o povoado do Tijuco, certamente o mesmo citado neste roteiro.

A palavra Jaguara é de origem indígena. SAMPAIO (1987) ensinou sobre a palavra jaguar: "corr. ya-guara, aquele que devora ou dilacera, o devorador. Forma primitiva no tupi: yauara. No guarani, yauá. Alt. Jaguá, Jaguara." Como se sabe, jaguar é onça. Já a forma "jaguará" explicou da seguinte forma: "corr. Yaguá-rá, tirado da onça, a ficção de onça. É o nome de um folguedo, que se fazia, entre os catecúmenos, com o disfarce de uma onça, envolta de palhas e folhas secas. Pode ser também de Jaguar-ã, a onça erguida, ou de pé. Bahia." (p.265). Além do sentido de onça, jaguar e suas variantes podem também significar "cão" (p.167, nota de rodapé 238). No folguedo do bumba-meu-boi e em vários reisados, um dos personagens mais populares é o "jaraguá" ou "jaguará", um estafermo que representa um ser fantástico, de silhueta alta, esguia, revestida de pano, terminando por uma caveira de equino ou muar, presa a um mecanismo que faz seus dentes bater estrepitosamente movida por um indivíduo metido debaixo desta fantasia. O jaraguá dança aos corrupios, batendo queixada, avançando na molecada de forma bravia. A partir da palavra jaguar existem muitas derivações, todas de alguma forma aludindo à imagem da onça ou do cachorro.  

Não seria improvável que o nome do arraial fosse uma referência primitiva à existência local de onças (jaguares). Região de matas, rica em água... é possível. Sabe-se que a região teve onças, inclusive a toponímia deixou uma pérola, "Ribeirão do Onça", que corta o distrito são-joanense de Emboabas, antigo São Francisco do Onça. 

Mas é preciso considerar também que houve nos primeiros tempos da mineração um facínora que apavorou a região, cognominado "Jauguara". O nome do povoado seria talvez uma alusão ao apelido deste malfeitor? Um epônimo? No livro organizado por DANGELO (2012), encontramos o fundamental relato do Sargento-mor José Álvares de Oliveira, figura histórica de grande importância, que lutou na Guerra dos Emboabas e a testemunhou em seu manuscrito "História do distrito do Rio das Mortes, sua descrição, descobrimento das suas minas, casos nele acontecidos entre paulistas e emboabas e criação das suas vilas". Em tal obra encontramos o registrou da personalidade do bandido Jauguara.

Na véspera da Guerra dos Emboabas, os paulistas aterrorizavam o pequeno Arraial Novo de Nossa Senhora do Pilar, hoje São João del-Rei, armados até os dentes e esbravejando valentia pela ganância do ouro e do poder. Dentre eles houve um que se destacou na barbárie _ nos dizeres da testemunha da época, o Sargento-mor José Álvares de Oliveira _ "e não só com estas tumultuosas amotinações mas com as bravezas de um taubateano cognominado Jauguara que pela língua da terra é o mesmo que cachorro bravo o qual, quando se embriagava, tomava por empresa em fazer-se por a cavalo e armado com os seus escravos encaminhava-se por distância de mais de uma légua para esse arraial e entrava por ele dando mostras de sua bebacidade pelas bocas de suas espingardas semeando as ruas de chumbo e, pela mesma sua boca, com tais latidos que o mesmo era jauguara neste arraial que o cerbero no inferno e em tudo o mesmo porque se o cerbero no inferno era faminto das almas o Jauguara nas minas o era das vidas em que cevava a sua fonte e a de alguns amigos que se queriam valer da sua boa vontade."

Cérbero era um cachorro monstruoso, infernal, mitológico, dotado de três cabeças, que os gregos da antiguidade acreditavam tomar conta dos portões do mundo dos mortos. Curiosa comparação a do sargento-mor, que bem permite imaginar o quão execrável foi este tal de Jauguara. Também se nota que ele não morava em São João del-Rei, posto que para ali chegar "encaminhava-se por distância de mais de uma légua", escreveu José Álvares de Oliveira.

Outra fonte de informação é ORTIZ (1996, p. 308), que ensinou:

"Um dos primeiros descobridores de ouro na região do rio das Mortes, no final da última década seiscentista, foi Gaspar Vaz da Cunha, apelidado Jaguaretê ou o Jaguara, também morador em Taubaté, onde foi juiz ordinário. Aqueles anos acampou ele com a bandeira no citado território aurífero, onde os índios lhe mostraram o metal precioso no capim, sob a forma de folhetas e grãos. Aí instalou ele suas lavras."(grifo do próprio autor)

O sufixo "etê" no tupi significa verdadeiro, legítimo, autêntico. Jaguaretê é portanto o jaguar verdadeiro, a onça legítima.

Comenta o autor que o dito Jaguara depois voltou para Taubaté, onde, no ano de 1700 ganhou uma sesmaria em Piracuama, próximo a uma das gargantas da Mantiqueira que dava passagem ao território de Minas. Teria então aberto uma via para facilitar acesso à área do ouro: "Em 1703 fez abrir um caminho, provavelmente cortando essa sesmaria, unindo o bairro de Pindamonhangaba ao Sapucaí e varando o sertão até as campinas de Capivari." A seguir voltou ao Rio das Mortes, onde estabeleceu moradia no começo dos setecentos, "dedicando-se às atividades mineiras e revelando-se intransigente inimigo dos emboabas."

Esclarece ainda ORTIZ (1996, pp. 221-222) que Gaspar Vaz da Cunha foi capitão e que em 1678 foi juiz ordinário e de órfãos. Sua esposa chamava-se Vitória de Siqueira, "de quem deixou geração"

Uma informação histórica interessante foi levantada foi GAIO SOBRINHO (2013). Apontou que um acórdão da Câmara de São João del-Rei, de 10 de outubro de 1777, tomava medidas de contenção das atividades do quilombo da Jaguara: "acordaram em, por ser muito preciso no Distrito da Jaguara, subúrbios da Alagoa Verde, por nesse Distrito constar haver negros quilombolas fazendo distúrbios revoltados, nomear para capitão-do-mato a Manoel José de Morais, por nele concorrer os requisitos nesta ocupação e que o escrivão lhe passe a carta patente."

Seria muito bem vindo um criterioso e duradouro projeto na Jaguara. Algo que levantasse sua memória por meio dos moradores mais idosos, identificasse suas potencialidades e alternativas econômicas para fixar seus moradores na terra de seus antepassados. Aliado a isto, algo que lhes garantisse o bem estar e direitos, e é claro, a valorização de sua cultura quilombola, paralelamente à da comunidade vizinha do Palmital, também reconhecida como remanescente de quilombo. 

Segue uma seleção de fotografias que flagram imagens do povoado em festa, por ocasião das comemorações da Consciência Negra de 2015. 

Chegada dos moçambiqueiros. 


Cruzeiro, ponto de devoções populares. 

Exemplar típico da arquitetura rural. 

Refrigério dos dançantes à sombra das árvores locais

Detalhe de um rosário de tentos. 

A Igreja de Nossa Senhora do Carmo recebe os moçambiqueiros. 

Capitão "Borracha" mata a sede na bica d'água junto ao campo de futebol. 

Antiga residência de tropeiro. 

Velha árvore junto à pedreira. 

Aspecto do casario. 

Besouro preto: um grande escaravelho.

Crianças da comunidade em alvoroço, se preparam para a participação nas comemorações quilombolas. 

Uma moradora da comunidade durante a festa. 

A água secou...
Velha bica de servidão pública, onde se colhia água e lavava roupa. 

Pequeno roçado à beira da rua. 

Aspecto de uma rua na Jaguara. 

Em vigorosa marcha de rua, o moçambique de São João del-Rei, Bairro São Geraldo,
marca sua presença na Festa da Consciência Negra, batendo os toques (ritmos)
de jomba e carijó.  

Córrego da Cachoeira ou Córrego da Jaguara, tributário da margem direita do Rio Grande,
que hoje deságua diretamente na Represa de Camargos. Vista tomada de cima da ponte que interliga a comunidade ao Caminho Velho. 

No intervalo da função, Sá Rainha aprecia a festa olhando de um alpendre.

Componentes do grupo Pilão de Nhá, vindos do Caquende. 


Referências Bibliográficas

DANGELO, André G.D. (Org.). Origens Históricas de São João del-Rei. Belo Horizonte; BDMG Cultural, 2006. 127p.il. p.103-104. 
GAIO SOBRINHO, Antônio. Fontes Históricas de São João del-Rei. São João del-Rei: UFSJ, 2013. 154p. p.109-110.
LIMA JÚNIOR, Augusto de. Caminhos Antigos de Minas Gerais. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, v.8, 1995. 132p. p.119-128.
ORTIZ, José Bernardo. São Francisco das Chagas de Taubaté. 2.ed. Taubaté: Prefeitura Municipal, 1996. Coleção Taubateana, n.10. 858p. v.2: Taubaté Colonial. 
SAMPAIO, Teodoro. O Tupi na Geografia Nacional. Introdução e notas de Frederico G.Edelweiss. 5.ed. São Paulo: Nacional; Brasília: INL, 1987. Coleção Brasiliana, v.380. 359p.

Notas e Créditos

* Texto: Ulisses Passarelli
** Fotografias: Iago C.S. Passarelli, 29/11/2015.
*** Para saber mais sobre esta comunidade quilombola leia também:

COMUNIDADES DA JAGUARA E PALMITAL SÃO CERTIFICADAS ...
20 DE NOVEMBRO - DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA
JAGUARA - FEDERAÇÃO DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO ESTADO DE MINAS GERAIS

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