Dia desses, não sei porque, me veio à lembrança o sabor dos pirulitos que eram vendidos em plena rua, aqui em São João del-Rei, por um sujeito numa bicicleta antiga. Chamavam-no de "Rato". Seu nome, não sei. Os pirulitos eram pendurados no guidão, ensacados, revestidos de açúcar de confeiteiro (finíssimo e alvo...) e tinham várias cores: azuis, verdes, amarelos, vermelhos... laranja, posto que corados. Sabor inigualável e inesquecível dos anos setenta, que o arquivo de químicas de odores do cérebro acusou ainda existir em minha memória.
Esta mera lembrança, em si isenta de significado maior foi, porém, o pretexto para esta crônica. É que os pirulitos do Rato, ambicionados pelos moleques de meu tempo, tinham formato exato de um galo. Isto era seu charme. Não era qualquer pirulito. Era um galinho. Por isto a petizada o queria.
Fazer alimentos com um formato que remeta à arte popular é o que chamamos em folclorística de sitoplástica.
ARAÚJO (1985), em notável trabalho, elucidou: "sitoplástica é termo proposto por Cecília Meireles em seu estudo sobre arte popular brasileira, para configurar a arte comestível das doceiras e quituteiras" e completou _ "o principal representante dessa arte marginalizada é o alfenin", que, segundo o autor, "ainda persistem na tradição culinária brasileira, notadamente, no Nordeste." Alfenins lembram nossas balas quendi (*) só que em vez de ter sua forma cúbica ou de paralelogramo, são puxados a formar bonecas, animais, cachimbos e outros objetos (**).
Havia também pequenos pirulitos muito semelhantes àqueles em forma de galo, só que o formato era de chupeta. Felizmente, contudo, ainda temos a venda dos deliciosos pirulitos de cone, esses guarda-chuvas de comer. São sabores de outras épocas adoçando a amargura de hoje.
E o que dizer das tradicionais Balas Mazzoni? Eram deliciosas bolinhas de cor (brancas, verdes e vermelhas - cores da bandeira italiana), que grudavam entre si e grudaram em nossa saudade teimando em não partir. Ainda recordo de comprá-las pesadas na hora, a granel.
Estas formas alimentares nostálgicas trazem em si o atrativo do sabor aliado à aparência de um bicho, de um boneco, um objeto. Minha mãe fazia sequilhos nas férias estudantis e nos servia na hora do filme da tarde, com um achocolatado ou café, enquanto assistíamos a arte do stop motion nos filmes de aventura do marinheiro Simbad. Esses sequilhos eram biscoitos cuja massa era cortada em forma de aves, estrelas, corações. Se os fizesse como simples biscoitos não eram tão bons quanto biscoitos em forma de estrela, embora a massa fosse a mesma. É a mágica da sitoplástica.
Naquele tempo, Lagoa Dourada vendia nas padarias afamadas, além do célebre e incomparável rocambole, uma grande rosca de massa branca, macia e casca morena sequinha, em formato exato de um jacaré. Não poderia ter outro nome: pão-jacaré.
Em contrapartida, São João del-Rei vendia o pão-tatu, doce, no estilo da massa do pão-jacaré, de sabor extraordinário, ainda mais se recheado por uma fatia de queijo mineiro fresco. A casca deste pão tinha um formato tal, que, fazendo duas pontas, tinha no intermédio como que cintas transversais, à guisa de uma carapaça de tatu, daí seu nome.
Outro desta estirpe é o pão-combate, um pão doce sovado muito tradicional, cuja massa é montada em duas metades que encontram ao centro como duas luvas de boxe se tocando como numa luta.
Por vezes a indústria se inspira na arte popular e assimila suas tradições dando forma a alimentos específicos, mas em essência, ou strictu sensu, a sitoplástica se refere ao trabalho manual sobre o alimento, formatando-o em aparências específicas. Assim, uma doceira confecciona com imenso trabalho um doce dentro de duas metades de uma noz, e lá vem a noz fingida; uma salgadeira faz massa folheada abrindo-a como o casco de uma canoa e a recheia de maionese e temos uma barquete; outra faz a massa para fritar, como um charuto, longo, cheio de queijo e presunto e tem-se uma cigarrete (do francês, cigarette, cigarro); ainda mais, uma massinha em anel ao redor de uma rodela de salsicha lembra um globo ocular e pálpebras e ganha o nome de olho de perdiz; um pão doce largamente recheado de creme amarelo, aparente, amplo como o sorriso de uma miss, é a marta rocha; mas se trocam seu creme por doce de leite, vira bomba; nas festas de aniversários, noivados, batizados e outras, fazia-se espetinhos de azeitona (sem caroço), palmito e queijo ou presunto - em pequenos pedaços - trespassados por um palito de dentes. Depois de muitos deles prontos, se revestia uma melancia de papel aluminizado e nela se espetava em derredor os tais espetinhos. A montagem, espinhenta, cheia de pontas, ganhava o pitoresco nome de capeta.
Roscas, tranças, casadinhos, louro-moreno (doce que alterna em espiral massa clara e escura), bichinhos comestíveis... quantas formas realçando o sabor pela sugestão psicológica. Provocação artística para estimular o apetite. Extravasamento da arte interior para a massa exterior. A arte do comer. A arte de comer. Eis a sitoplástica. Cada recanto terá o seu exemplo, sua tradição, todas dignas de serem preservadas.
Hoje, quando passo na Praça Raul Soares, ali perto da banca de revistas, sinto saudades de quando pedia minha mãe para comprar os pirulitos do Rato. Nessa vida louca faltam coisas assim para se sobrepor à faina interminável.
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Alfenins. Natal/RN. 1998. |
Referências Bibliográficas
ARAÚJO, Iaperi. Elementos da Arte Popular. Natal: Universitária, 1985. 86p.il. p.64-65
Notas e Créditos
* Quendi: possivelmente esta palavra procede do inglês, candy, doce. O quendi é feito basicamente de açúcar molhado e raspa de casca de limão, preparado ao fogo até o ponto de enrolar, quando é rolado sobre pedra fria em bastões e cortado em figuras geométricas aproximadamente quadrangulares e depois levemente deprimido por um garfo, que lhe deixa ao consolidar sinais de linhas ou traços na parte de cima. É de costume enrolado em papel de seda colorido e de extremos picotados. Doce fino. Se é tirado do fogo antes do ponto de enrolar forma o tradicional "puxa-puxa", nome assim aplicado pela natureza elástica da massa, delícia em ocaso.
** No Maranhão, em Alcântara, pelas Festas do Divino, surgem os tradicionais "doces de espécie", de herança ibérica e forma própria, à base de coco.
*** Texto: Ulisses Passarelli
Passarelli, Uma viagem pelo sabores da Memória é algo que preciso aplaudir e curtir devidamente.
ResponderExcluirParabéns, este texto é uma preciosidade para a Memória do Sabor. Luiz Cruz
Muito obrigado, Luiz Cruz. Você que trabalha tão bem com a memória popular, certamente seria tocado pelo sabor desta saudade. Abraço fraterno.
ExcluirUlisses, meu caro amigo, viajei no tempo e no gosto. Fui professor do filho do "Rato" que, até pouco tempo, tinha as formas do pirulito. Você, Passarelli, nós encanta com suas crônicas e palestras, pelo falar fácil e cativante. Abraço! Artur.
ResponderExcluirEm Montes Claros até hoje algumas famílias fazem doce deleite com formato de porquinho e galinha. Duram semanas ...
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