Percepções e considerações
São João del-Rei ficou conhecida como a "Terra onde os Sinos Falam". A construção de sua alma religiosa dobrou séculos, festa a festa, ano a ano, como a areia que cai de uma ampulheta. O tempo das tradições sacras ainda parece ser colonial... Elas foram conservadas na força de uma fé incomensurável, que dentre tantos costumes preservou uma linguagem singular através de dobrados e repiques dos sinos das igrejas do centro histórico, com tamanha especificidade, que o povo, ainda hoje, identifica pelo eco do bronze, se morreu um padre, se a procissão está saindo, se há um chamado de missa, etc.
Mas vez por outra e talvez, desde sempre, uma polêmica rodeia a mudança dos toques de sinos em São João del-Rei. É uma discussão antiga e em verdade inútil. Decerto, há oitenta anos atrás, os sineiros velhos diziam que os novos (daquela época) estavam mudando os toques e não deveriam...
Se o sino é uma linguagem, a mudança é inevitável. Toda linguagem é profundamente dinâmica conforme a faixa etária que a adota e as próprias influências culturais de cada época. Senão, vejamos: quando o escravizado da Ana Romeira, segundo a tradição oral, criou o Senhora é Morta foi uma mudança no ritual, e drástica, pois este toque não existia ainda! Vai que um desses meninos sineiros de agora, cria um novo toque que ninguém pensou até hoje ...
Agora, não quer dizer que se deva estimular as mudanças e experimentações. Criações novas são intuitivas. Deve haver a preservação sim. Todos os sineiros devem ser ensinados de como são os toques tradicionais e estimulados a conservá-los. Mas, mesmo assim, ainda que se vigie a meninada para não "bater errado", as mudanças virão, positivas e negativas.
Ou por acaso os repiques e dobrados obedecem a partituras musicais paradas no tempo, fixadas lá em cima na torre? Ou porventura tem um manual lá no alto, escrito numa cartolina, tipo: um repique no sino pequeno e dois no grande significa tal coisa... Não! Não é assim que funciona. Se aprende de oitiva. É uma tradição aprendida informalmente. Não é um aprendizado institucional. O mecanismo é pela transmissão oral, via mestre-aprendiz. Este é o maior pressuposto de uma tradição folclórica, embora que esta afirmação incomode há muitos... Como tal, está sujeita a mudanças ligadas ao poder de memória de cada executor e a sua coordenação motora. Então, tem mudanças que podem ser involuntárias, fruto de uma capacidade individual limitada em reproduzir com exatidão o que foi aprendido. Vê-se isto, por exemplo, todo dia nas congadas e folias... É assim que surgem variantes musicais, algumas muito ricas, que anos mais tarde se consolidam como se fossem um modelo.
No passado isto existiu também com os apitos de trem: os maquinistas tinham toques específicos de embarque, alerta, chegada, cumprimentar, etc. E cada um imprimia seu estilo próprio e sabia afinar o mecanismo de apito da maria-fumaça, a ponto do povo antes de ver a locomotiva, dizer-se: "óh, escuta... o seu Emídio Giarola tá chegando do sertão na 68..."
O boiadeiro com o berrante também tinha toque de ajuntar boiada, de rancho, de pouso, de retirada, de estouro do gado, de marcha. E a sua comitiva, os fazendeiros e agregados conheciam cada um destes sons e sabiam o que deviam fazer ao ouvi-los.
Nas alvoradas festivas além da saudação ao dia maior com fogos de artifício, em alguns lugares conservam caixeiros à rua batendo tambores em ritmos próprios e por vezes únicos. Na Festa do Divino de Pirenópolis/GO, existe a "banda de couro", um grupo de tamborzeiros com este intuito. Na Festa do Espírito Santo de São João del-Rei, Bairro Matosinhos, igualmente, os caixeiros que fazem alvorada ao Divino. No distrito de São Gonçalo do Amarante os caixeiros possuem um toque de ritmo exclusivo às 5 horas, na madrugadinha da Festa do Rosário, que tem o curioso nome de vamos'imbora, Vitalina! A propósito, os caixeiros mais velhos do lugar o batem de uma forma distinta do atualmente executado e mesmo entre os de hoje há variações individuais impressas como floreados por tocadores mais hábeis. Em todos porém a linha melódica geral é mantida. Estas alvoradas constituem também uma linguagem, pois trazem em si um anúncio: acordar cedo e ir para a missa que é dia de festa! A comunidade onde acontece compreende este sinal e o acata.
Em muitas procissões, mormente nas rurais, um fogueteiro caminha um pouco adiante e independente das baterias de foguetes armadas em ripas de madeira (girândolas), de tanto em tanto, nas passagens mais importantes, solta um rojão para sinalizar que a procissão está chegando.
Exemplos existem vários: o apito do capitães e mestres nos congados e folias e o batido do tamborim do capitão na frente do congado são claros sinais para iniciar ou encerrar uma cantoria ou determinar o ritmo a ser executado. É uma linguagem sonora perfeitamente compreendida e respeitada pelos participantes. O caçador usa a buzina, espécie de corneta, para reunir os cães esparsos pelo mato e tem uma forma de tocá-la, à qual os cachorros já foram adestrados, prestando pronta obediência ao chamado. Em São João del-Rei, as tecelagens e as oficinas da estação ferroviárias demarcavam a troca de turno de funcionários e horários de almoço, pelo longo toque de uma sirene, que ouvida ao longe além de representar parte da identidade do lugar, também guiava as pessoas que não eram trabalhadoras daquele setor em suas tarefas cotidianas, como um grande alarme coletivo.
Tudo isto faz parte de um diversificado patrimônio imaterial. É uma linguagem folclórica no sentido do sistema de aprendizado e transmissão do saber; do domínio prático da cultura popular, ainda que inserido em uma empresa ou instituição, viva e utilitária, acontecendo tanto numa torre de igreja quanto numa composição ferroviária.
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Caixeiros fazendo alvorada na Festa do Divino, nas ruas do Bairro Matosinhos, em São João del-Rei. Data: 2009. |
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Campanário. São Gonçalo do Amarante - antigo Caburu (São João del-Rei). Data: 2011. |
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Locomotiva a vapor, passando nas imediações do Sutil, em São João del-Rei. Data: 2000. |
Créditos
- Texto e fotografias (trem e caixeiros): Ulisses Passarelli.
- Fotografia do campanário: Iago C.S. Passarelli.
Notas
- Revisão: 14/10/2025.
- Aos poucos, toda essa forma de comunicação, inserida na paisagem, urbana ou rural, chama à atenção os pesquisadores sob a ótica do conceito de "Paisagem Sonora", alvo de teorizações escritas e palestras. Também pode de alguma forma ser considerado sob o viés da Folk-comunicação.
Muito boa esta sua visão em relação aos toques dos sinos.
ResponderExcluirMiranda.
As manifestações sonoras são elementares. São como PAISAGENS SONORAS, cheias de história, de memórias, de tradições.
ResponderExcluirEste texto deveria ser trabalhado na REDE MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DE SÃO JOÃO DEL-REI. Parabéns, fiquei orgulhoso e feliz ao ler este texto.
As manifestações sonoras são elementares. São como PAISAGENS SONORAS, cheias de história, de memórias, de tradições.
ResponderExcluirEste texto deveria ser trabalhado na REDE MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DE SÃO JOÃO DEL-REI. Parabéns, fiquei orgulhoso e feliz ao ler este texto.