Ontem, São João del-Rei encerrou mais uma solenidade do trânsito e assunção de Nossa Senhora, que popularmente chamamos de Festa do Boa Morte. Os fiéis respondendo ao apelo da fé vieram em peso às cerimônias. Os cortejos procissionais revelaram elementos da própria catequese num momento comemorativo. A música da Banda Theodoro de Faria, mostrou alegria e afinação ao condensar a atmosfera festiva em claves e notas cadenciadas. A Lira Sanjoanense é a orquestra setecentista que desde a fundação toca nesta festa, mais uma vez de forma exímia.
Tal proporção esta comemoração atingiu que foi cognominada "Segunda Semana Santa" ou "Semana Santa dos Mulatos", alusão antiga aos afro-descendentes envolvidos nas corporações musicais.
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Os devotos se aglomeram no passeio da Rua Direita em frente à catedral esperando a saída da procissão. |
O tempo deste evento religioso revela cabalmente sua tradicionalidade: é comemorado nesta terra, de maneira ininterrupta, desde 1735, com a fundação da Venerável Confraria de Nossa Senhora da Boa Morte, responsável por esta comemoração católica, tendo inspirado muitos compositores sacros à produção de peças musicais ainda hoje executadas na Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar.
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Exaltata est Sancta Dei Genitrix ... o notável coro da bicentenária Orquestra Lira Sanjoanense entoa a rica melodia do Capitão Manoel Dias de Oliveira |
Depois de concorrida novena antecedida por missa a cada dia, ocasião de memoráveis e eloquentes pregações e belas músicas, no seu último dia, uma melodia em especial marca o anúncio da "morte" de Nossa Senhora: a ouverture, de Luiz Batista Lopes. Neste momento se inicia o famoso toque de sinos "Senhora é morta", a mais musical de nossas batidas sineiras. Seu ritmo singular parece mântrico e é muito envolvente, focando o fiel na cerimônia e climatizando o entorno à comemoração.
Dia 14 o toque é ouvido de hora em hora. Missas e a procissão noturna falam de maneira delicada que a morte da Virgem Maria foi especialíssima, uma dormição. A imagem de Nossa Senhora da Boa Morte a mostra deitada num esquife florido, as mãos postas, o olho fechado de forma incompleta, como se entrevendo por uma fresta. Ao seu redor o povo aglomera e reza muitas e muitas ave-marias, como num velório.
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Nossa Senhora da Boa Morte com seus olhos entreabertos: morta ou dormindo? ... Em trânsito entre o mundo terreno e a vida eterna! |
Na chegada de sua procissão a imagem é simbolicamente sepultada numa cripta em tocante cerimônia. Mas no outro dia as celebrações anunciam que a Virgem está viva, antecedendo de modo especial a ressurreição que nos é prometida. Maria transita entre a vida terrena, a morte e a vida celeste como se fosse uma única e simples noite de sono sereno ou um sonho de eternidade. Eis a boa morte, aquela alcançada pela sua santidade extremada, graça e luz.
Na sua procissão do dia 15 a simbologia barroca se revela dramática e didática em dois andores: na frente Nossa Senhora da Assunção em postura de subida ao infinito: os braços indicam leveza, a roupa flutua no etéreo, os pés desnudos pisam a lua numa evocação bíblica (Apoc.: 12, 1); seus sapatinhos femininos, de laços desatados, estão caídos ao léu sobre o pano de fundo. Não pisarão mais o solo do pecado. As nuvens macias de algodão alvo, deverão ser pisadas pelo pé descalço e delicado. Iluminada e florida, de cabelos humanos que alguma devota do passado doou, esta imagem belíssima revela a maternidade de um amplexo que nunca se completa, porque seus braços, sempre abertos, parece que esperam mais um filho para abraçar.
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A graciosa imagem de Nossa Senhora da Assunção curva os braços ao céu e pisa a lua. |
O segundo andor é ainda mais dramático: a Santíssima Trindade figurada em tronos, segura uma coroa prateada e sob ela Maria de joelhos, com um olhar complacente e resignado, mãos cruzadas em atitude penitente, é coroada pelo Pai Maior e por Jesus, tendo ao fundo da cena a pomba do Divino em raiada dourada de luz inefável. É Nossa Senhora da Glória, que completa a tríade de imagens que o barroquismo revela em sequência de atos rumo ao céu: morte, assunção, coroação junto ao trono divino.
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Andor da Santíssima Trindade desce as escadarias da Catedral.
As ruas são invadidas por duas longas filas de fiéis. Diante de cada igreja que se passa os sinos dobram festivamente comemorando a vida. Não estamos órfãos. Uma Mãe olha por nós. O ar se enfumaça com os fogos de artifício. O pipocar dos foguetes e seu clarão revela o carinho dos devotos jubilosos.
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Na descida do Largo da Cruz o clarão enfumaçado do Largo do Carmo denuncia uma cascata pirotécnica.
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De dentro das filas se vislumbra adiante cordões de lanternas com chamas bruxuleantes. Opas coloridas, balandraus, hábitos. Irmãos com varas de pratas andam atentos entre as filas coordenando a marcha dos andores. Lá atrás o som da banda para. É hora de se rezar mais um mistério do terço. Algumas senhoras das janelas se persignam pela passagem da procissão. Daqui e dali os andores se encostam próximo aos casarões, de cujas sacadas os moradores atiram uma chuva de pétalas e papel picado. O turiferário balança fumaça aromática de sagrado incenso para lá e para cá. Parece varrer o caminho para o santo passar.
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A Santa Mãe para na Ponte da Cadeia onde é saudada por fogos de artifício. |
As mães ainda trazem suas crianças vestidas de anjinhos. Costume muito enraizado, constitui uma nota de inocência em todo o cortejo sagrado e ao mesmo tempo, ultrapassando em muito ao pitoresco, é o caminho do aprendizado. A criança climatizada naquele ambiente festivo de hoje, poderá ser amanhã um festeiro, um juiz de confraria, um provedor de irmandade, dando continuidade à tradição.
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Os pitorescos e tradicionalíssimos anjinhos marcham inocentes sacralizando a velha rua de paralelepípedos de pedra. |
E assim a procissão segue solenemente serpenteando pelos velhos caminhos do ouro até voltar para as escadas da catedral, ponto de culminante entusiasmo onde confluem sons de sinos e banda, cheiro de incenso e pólvora dos artefatos pirotécnicos. Lá dentro o sacerdote completa a festa com a bênção do Santíssimo Sacramento, momento de concentração reflexiva. E por fim, a orquestra retoma: Te Deum Laudamus ...
A forma como as tradições religiosas marcaram a vida do são-joanense, preservando-as desde sempre e compondo com elas parte relevante de seu patrimônio cultural, faz nosso pensamento comungar com a assertiva abaixo lincada: São João del-Rei é a mais barroca cidade de Minas!
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O pálio segue solenemente guarnecido por lanternas pela tradicional Rua da Prata. |
* Texto: Ulisses Passarelli
** Fotografias: Iago C.S. Passarelli, 15/08/2014
*** Obs.: Rua Direita e Rua da Prata são respectivamente os nomes tradicionais das atuais ruas Getúlio Vargas e Padre José Maria Xavier, do centro da cidade.
**** Veja mais a respeito pelo seguinte link:
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