Troca da dentição
A substituição dos dentes decíduos (dentes de leite) pelos permanentes é uma fase natural do desenvolvimento da dentição humana, que merece muita atenção da população. Tenho visto mães que pegam os dentes de leite de seus filhos e encastoam em metal para confecção de pingentes, presos por correntinhas ao pescoço à guisa de amuleto ou mera lembrança da infância. Outras tratam a troca de dentição com um ritual de arremesso.
Consiste em pegar o dente decíduo extraído ou naturalmente esfoliado e jogá-lo sobre o telhado da casa, com o cuidado fundamental de atirá-lo por sobre o ombro, sem olhar para trás, para não ver onde cairá.
No ato do arremesso enuncia-se em voz alta uma fórmula versificada, que em folclorística classifica-se como um ensalmo. Um dos mais difundidos no Brasil é o seguinte:
"Mourão, mourão:
toma teu dente podre,
dê cá o meu são."
Há muitas variações destes versos. Na visão popular o ritual garante a erupção de um dente permanente sadio. Câmara Cascudo diz que "a tradição nos veio de Portugal, onde existe, com muitas variantes na fórmula, mas imutável no sentido." Forneceu a bibliografia portuguesa sobre o assunto. Eduardo Campos transcreveu exemplos portugueses deste ensalmo:
"Telhado, telhadão:
toma lá meu dente podre
e dê cá o meu são."
(Alentejo)
"Palheirinha, palheirão:
tome lá este dente podre
e dê cá um são."
(Vale-do-Lobo e Idanha-a-Nova)
"Cinza, cinzão:
toma lá este dente podre
dá cá um são."
(Castelo Branco)
Em Pouso Alegre, no sul de Minas Gerais anotei esta versão (1988):
"Andorinha, andorinhão:
toma lá este dente podre
e me dá um dente são."
Em Santa Cruz de Minas, no centro-sul do estado a versão que conheci é a seguinte (1994):
"Telhado, telhado:
toma meu dente podre,
me dá um dente são."
Em São João del-Rei igualmente, ou sob a forma variante, "Telhadinho, telhadão".
Há notícias de tal costume no Brasil já no século XIX (*).
Outra forma ritual anotei-a em Santa Cruz de Minas e se distingue das demais no detalhe de o dente de leite arrancado ser metido num pedaço de pão ou de angu e assim jogado a um cachorro, que o devora sob o recitativo da seguinte fórmula:
"Cão, cão:
toma este dente podre,
me dá um dente são."
Analisando a tradição, Câmara Cascudo esclareceu que o cuidado de não olhar para trás é um vestígio cerimonial das iniciações gregas. Mostrou sua difusão e completou que neste processo de transferência de moléstia ao dente de leite, não se deve olhar onde o mesmo caiu, sob pena de nascer outro defeituoso, pois há crença de que a desobediência a este preceito "reconduz os poderes maléficos quem pretendera abandonar".
Lembrou ainda sobre a citação ao mourão numa das fórmulas: "Mourão é a pedra que divide do lume a pilheira, onde estão as cinzas. Prende-se ao culto larário e à sugestão de objetos sólidos, compactos, inabaláveis."
Dentro desta linha de pensamento, por analogias e associações, quem carrega consigo uma semente de mucunã ou olho de boi (
Mucuna urens), terá boa dentição, porque a semente é rija. Um dente de jacaré, a pinça de um pitu, o ferrão de uma aranha-caranguejeira ou um dente de cachorro levados dentro de saquinhos pendurados ao pescoço ou presos a cordões, colares de caroços de azeitona, possibilitam a quem os carrega ter dentes fortes, duros, bem brancos e assim dão para as crianças levarem, para os novos dentes saírem sadios. Em São João del-Rei a receita prevista é carregar uma
fava de Santo Inácio (
Schizolobium parahyba).
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Dentes no cocar de um congadeiro da guarda de caboclos "Divino Espírito Santo", do Bairro Nova Cintra, Belo Horizonte/MG. |
Referências Bibliográficas
CAMPOS, Eduardo. Folclore do Nordeste. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1960. 183.p.
CASCUDO, Luís da Câmara. Meleagro: pesquisa do catimbó e notas de magia branca no Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Agir, 1978. 208p.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d]. 930p.
PAIVA, Melquíades Pinto, CAMPOS, Eduardo. Fauna do Nordeste do Brasil: conhecimento científico e popular. Fortaleza: Banco do Nordeste, 1995. 274p.
STUDART, Guilherme. Usos e superstições. In: SERAINE, Florival. Antologia do Folclore Cearense. 2.ed. Fortaleza: UFC, 1983. 356p.
Notas e Créditos
* Anotado no Pará em 1889. Conferir em: NERY, Frederico José de Sant'Anna. Folclore Brasileiro. 2.ed. Recife: FUNDAJ/Massangana, 1992. 235p.il. p.72.
** Texto: Ulisses Passarelli
*** Fotografia: Iago C.S. Passarelli, 27/04/2014.
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