Bem vindo!

Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




terça-feira, 5 de abril de 2016

Breve História da Criação do Quicumbi, o Cemitério Municipal de São João del-Rei

Nos tempos coloniais o costume era que os enterramentos se dessem no interior das igrejas. Os velhos templos do século XVIII das cidades históricas ainda conservam algumas vezes tábuas de assoalho muito antigas e largas, numeradas em baixo relevo. Guardam as campas, onde outrora eram sepultados os cadáveres.

Obviamente que o crescimento da população e as razões da higiene pública inviabilizaram semelhante prática.

Foi então, que as preocupações de ordem sanitária começaram lentamente a ganhar corpo na centúria seguinte. VALE (1985) esclarece que:

 “uma Carta Régia de 14 de janeiro de 1801 proibiu enterramentos nas Igrejas. Parece, porém, que à vista de muitas representações que se levantaram de todas as partes do Reino, tanto em Portugal como no Brasil, essa disposição não foi levada em conta.”

 Já no regime imperial, uma lei datada de 01/10/1828, do Imperador Dom Pedro I proibiu os sepultamentos no interior das igrejas obrigando a construção de cemitérios. Não foi sem resistência, representações e protestos que esta lei vingou. A ordem não foi bem vista. Sepultar na igreja fazia parte de um sistema religioso bastante arraigado e de parte de uma ideia de redenção: o corpo no interior da casa santa, a Casa de Deus, era como se já estivesse mais próximo da salvação por estar em território sagrado. Da impopularidade desta mudança por toda parte em geral, o caso mais proeminente ocorreu na Bahia, gerando uma revolta popular com apoio do clero e das irmandades, que ficou conhecida por “cemiterada”, quando o povo insatisfeito, protestando rua afora, invadiu o cemitério quebrando tudo. No caso de Salvador a situação foi agravada pela concessão do governo provincial dada a uma empresa para explorar os sepultamentos.

Em São João del-Rei, transcreveu o Professor GAIO SOBRINHO (2010) um ofício de 23/04/1829, do Secretário da Câmara às ordens terceiras e irmandades, reportando à lei imperial do ano anterior, para não se sepultar mais dentro das igrejas, a partir de 1º de janeiro do ano seguinte, elegendo-se uma elevação de terreno junto à Casa do Conselho como local para o cemitério geral onde se enterrariam membros de todas as confrarias.

A edificação dos cemitérios prosseguiu. A mudança veio para ficar. Além do cemitério geral, cada irmandade cuidou de criar o seu próprio, o que foi ratificado por uma ordem governamental da província em 1833, nos revela GAIO SOBRINHO (2010). Sem afastar-se muito dos templos, eram construídos nos adros, nos fundos, arredores. O campo de enterramentos ainda era santo... Mas, no geral, e em especial em cidades muito tradicionalistas como São João del-Rei, praticamente, para ser enterrado, era preciso pertencer a um determinado sodalício religioso. Isto porque cada irmandade, confraria e ordem terceira se esforçavam por construir seu próprio cemitério, por assim dizer, reservado ou restrito aos seus irmãos filiados. Assim correu no século XIX.

Uma exceção em São João del-Rei foi o a Irmandade da Misericórdia, ligada às atividades hospitalares da Santa Casa, que tinha um cemitério fronteiriço, onde hoje está o Colégio Nossa Senhora das Dores, ou mais exatamente nos seus fundos, junto à encosta do barranco. O pequeno Cemitério da Misericórdia acolhia os corpos de indigentes, loucos, leprosos... os proscritos da sociedade oitocentista. Esta irmandade mantinha também um leprosário, “lazareto”, como se dizia, conservando os pacientes com hanseníase numa unidade isolada, onde hoje está o Teatro Municipal.

Ocorre que em 1881 a dita Irmandade da Misericórdia acabou com o lazareto e ao que tudo indica já não havia onde reservar os pacientes de Hansen; não bastasse, no final do século XIX, em 1897, o cemitério desta irmandade estava lotado e o referido colégio em franco processo de construção, demandando a extinção do cemitério.

A questão gerava um severo problema de ordem pública e a administração municipal se viu às voltas com esta questão. Paralelamente, era o início do período republicano e a primeira constituição do novo regime previa a separação do governo e da religião, a chamada laicização do estado. Portanto, era mister a edificação de um cemitério público, desvinculado da Igreja.

Neste aspecto, indica-nos os estudos do professor GAIO SOBRINHO (2001), que um texto publicado no jornal local A Pátria Mineira, datado de 30/01/1890, indicava a necessidade iminente de construção de um cemitério em local apropriado baseado nas razões da higiene:

“Os cemitérios devem ser construídos fora do recinto da cidade, numa distância de 1000 a 1500 metros, em terreno seco e colocado de tal forma que os ventos dominantes não levem os eflúvios para a cidade; fartamente arborizados e mesmo separados da cidade por uma zona arborizada” Etc.

Ainda o mesmo autor cita mais um texto a propósito do mesmo jornal e ano, datado de 11 de setembro, que frisava:

“que a cidade dos mortos seja separada da dos vivos por uma fila de árvores que impeçam aos ventos levar em suas correntes as emanações e os micróbios que infeccionam o ar.”

Havia um medo de que gases, vapores, eflúvios, emanações, micróbios advindos das sepulturas esparramassem epidemias pela cidade. Era ainda a crença no mal ar.

É muito útil neste momento transcrever mais um trecho do Professor Gaio Sobrinho, que elucida sobre a escolha do local, em tudo coerente com aquilo que A Pátria Mineira reclamara anos antes:

“Em São João del-Rei, em março de 1897, uma comissão de médicos composta pelos doutores Cornélio E. das Neves Milward, José Teles de Morais Barbosa, Juvenal das Neves e Galdino E. das Neves Sobrinho, indicava a região do Quicumby como apropriada para a construção do cemitério público por ‘situar-se no norte/nordeste da cidade, distante dois quilômetros, separada da povoação por colinas e florestas que impedem o vento e ser um terreno úmido e permeável que facilita a decomposição cadavérica.’ Em 30 de novembro de 1898, a Câmara desapropriava a chácara do Quicumbi para nela se estabelecer um lazareto (*) e o cemitério municipal, que, no ano seguinte, seria dividido em 4 partes, reservando-se uma para os não católicos. É curioso, porém, que num livro de óbitos da Ordem Terceira de São Francisco, antes desse ano, já existem referências a enterramentos no Quicumbi.” (p.100).

Por este texto observamos que o local servia aos requisitos que segundo a visão da época eram propícios. O mais interessante era a indicação da existência das matas entre a região escolhida e o centro da cidade, o que se deduz fossem de cobertura florestal a encosta do Bairro das Fábricas, Dom Bosco, Lava-pés (atual Bairro São Dimas), Bela Vista, Barro _ áreas hoje completamente urbanizadas.

Foi então que o poder público resolveu adquirir a Chácara do Quicumbi. Informa-nos CINTRA (1982), que em 09/02/1898 uma lei municipal declara esta chácara como de utilidade pública para efeito da criação do cemitério local. O proprietário da Chácara do Quicumbi era o Major Joaquim de Castro e Sousa, que falecera dez anos antes, em 05/01/1888. Era casado com Elmira Maximiana Batista, da família Batista Machado.

A Resolução nº 147 da Câmara Municipal são-joanense, de 22/04/1899 autorizou sua construção, com portão de ferro. Foi orçado em sete contos de réis, informa o jornal S.João d’El-Rey.

O cemitério passou por uma reforma, ou apenas, reparos em 1923, cuja extensão não o sabemos. A notícia muito lacônica é dada pelo jornal A Tribuna.

A palavra quicumbi é um tanto enigmática e não está claro seu significado exato. Uma interpretação oral diz que significa “barro mole”, referência ao terreno argiloso desta região, que teria um grau de umidade adequado à dissolução dos cadáveres.

Particularmente não colocamos crédito nesta interpretação. A palavra é claramente de origem africana: “cumbi significa sol, em idioma quimbundo. Por sua vez se prestou à formação de várias palavras de sentido semelhante, variando apenas os sufixos, referindo-se a um grupo folclórico de dança, folguedo, espécie de congado.

O que se sabe ao certo por registros da cultura popular do início do século XIX é que havia uma cerimônia com danças e cantorias usada para as ocasiões fúnebres de sepultamento de membros da realeza africana que no Brasil estavam subjugados como escravos. No féretro, os escravos então dançavam o quicumbi ou cucumbi. Esta mesma dança era usada nos rituais da puberdade, referência a ritos de passagem, comemorativo da mudança da infância para a adolescência.

Quicumbi era, portanto um tipo de congado, um auto popular, dança folclórica, folguedo. Brasil afora ele assumiu diversos formatos, afastando-se ao longo dos anos de seu objetivo central e se integrando em alguns lugares ao ciclo festivo do Rosário e em outros ao do carnaval, sob diferentes nomes: quicumbi, cucumbi, cacumbi, ticumbi, catumbi.

O registro exato da dança do quicumbi em São João del-Rei nunca o localizamos. O nome da chácara parece, contudo, e pela lógica, ser uma referência à dança, principalmente por se tratar de uma região antigamente isolada, distante da cidade, escondida por matas no interior das quais os escravos e forros nos tempos do maldito cativeiro poderiam fazer seus rituais longe dos olhos discriminadores da sociedade escravocrata.

Túmulo da Jovem Desconhecida, local de devoção popular no Quicumbi.
São João del-Rei/MG. Setembro/1998.

Referências Bibliográficas

ALVARENGA, Luís de Melo. História da Santa Casa da Misericórdia de São João del-Rei (1783-1983). Belo Horizonte: Formato, 2009. 444p.il. p.48-49.

GAIO SOBRINHO, Antônio. Visita à Colonial Cidade de São João del-Rei. São João del-Rei: [s.n], 2001. 128p. p.81-100.

GAIO SOBRINHO, Antônio. São João del-Rei através de documentos. São João del-Rei: UFSJ, 2010. 260p. p.159 e 203.

CINTRA, Sebastião de Oliveira. Efemérides de São João del-Rei. 2.ed.  Belo Horizonte: Imprensa Oficial: 1982. 2v.

SENA, Consuelo Pondé de. A Cemiterada: curioso motim baiano. In: MAN, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1981. n.10, ano 12. p.3-6.

VALE, Dario Cardoso. Memória Histórica de Prados. Belo Horizonte: [s.n], 1985. 344p. + anexos. Os Cemitérios, p.105-106.

Referências Hemerográficas

S.João d’El-Rey, n.17, 13/05/1899. São João del-Rei.
A Tribuna, n.468, 15/04/1923. São João del-Rei.

Notas e Créditos

* Para saber mais sobre a história dos leprosos em São João del-Rei, leia também neste blog o texto: OS LÁZAROS
** As tensões sociais entre a administração municipal e os setores religiosos ao fim do século XIX, por conta do cemitério público, podem ter sido relevantes. Na vizinha cidade de Prados, por exemplo, no mesmo ano do nosso Quicumbi, registrou VALE (1985), que a partir de 22/03/1898 a administração sobre o cemitério foi tirada da Igreja, "muito a contragosto do Revº Vigário da época _ Padre Antônio Cardoso Damasceno _ representando a Irmandade do Santíssimo Sacramento _ , que protestou e procurou até embargar outra que não fosse a sua administração". (p.106). Por fim, um decreto de trinta de abril daquele ano regulamentou as atividades do Cemitério de Prados.
*** Texto e fotografia: Ulisses Passarelli


4 comentários:

  1. Caro Pesquisador Ulisses,
    Seu trabalho sobre o "Quicumbi" é fabuloso. O resgate da memória é fundamental para que possamos compreender o presente. Lendo seu texto, fiz uma verdadeira viagem pelo tempo em São João del-Rei. Sou gratíssimo a você por isso, pelo prazer da leitura e o aprendizado. Parabéns e meu abraço amigo. Luiz Cruz

    ResponderExcluir
  2. Caro amigo e pesquisador Ulisses Passarelli, admiro muito seus textos porque se debruça sobre cada assunto e traz ao conhecimento dos leitores detalhes de várias manifestações populares, sustentadas na documentação, na história, nos depoimentos, um trabalho que a ciência recomenda e vc contempla. Por isso, seus textos são indicados para leitura pela nossa Comissão de Folclore em Mato Grosso do Sul. Um grande abraço amigo.

    ResponderExcluir
  3. Luiz Cruz e Marlei Sigrist: palavras como as que vocês elogiaram meu trabalho só me dão a certeza que devo continuar. Vocês me fortalecem. Obrigado, muito obrigado. Grande abraço. Ulisses Passarelli.

    ResponderExcluir
  4. Grande Ulisses, amigo e folclorista dos "bão", sua colaboração na elaboração dos inventários dos bens culturais de São João del-Rei é de extrema importância. Sua generosidade é um certamente um "auxílio luxuoso". Abç

    ResponderExcluir