Nos tempos coloniais o costume
era que os enterramentos se dessem no interior das igrejas. Os velhos templos
do século XVIII das cidades históricas ainda conservam algumas vezes tábuas de
assoalho muito antigas e largas, numeradas em baixo relevo. Guardam as campas,
onde outrora eram sepultados os cadáveres.
Obviamente que o crescimento da
população e as razões da higiene pública inviabilizaram semelhante prática.
Foi então, que as preocupações de
ordem sanitária começaram lentamente a ganhar corpo na centúria seguinte. VALE (1985)
esclarece que:
“uma Carta Régia de 14 de
janeiro de 1801 proibiu enterramentos nas Igrejas. Parece, porém, que à vista
de muitas representações que se levantaram de todas as partes do Reino, tanto
em Portugal como no Brasil, essa disposição não foi levada em conta.”
Já no regime imperial, uma lei datada de 01/10/1828,
do Imperador Dom Pedro I proibiu os sepultamentos no interior das igrejas
obrigando a construção de cemitérios. Não foi sem resistência, representações e
protestos que esta lei vingou. A ordem não foi bem vista. Sepultar na igreja
fazia parte de um sistema religioso bastante arraigado e de parte de uma ideia
de redenção: o corpo no interior da casa santa, a Casa de Deus, era como se já
estivesse mais próximo da salvação por estar em território sagrado. Da
impopularidade desta mudança por toda parte em geral, o caso mais proeminente
ocorreu na Bahia, gerando uma revolta popular com apoio do clero e das
irmandades, que ficou conhecida por “cemiterada”, quando o povo insatisfeito,
protestando rua afora, invadiu o cemitério quebrando tudo. No caso de Salvador
a situação foi agravada pela concessão do governo provincial dada a uma empresa
para explorar os sepultamentos.
Em São João del-Rei, transcreveu
o Professor GAIO SOBRINHO (2010) um ofício de 23/04/1829, do Secretário da
Câmara às ordens terceiras e irmandades, reportando à lei imperial do ano
anterior, para não se sepultar mais dentro das igrejas, a partir de 1º de
janeiro do ano seguinte, elegendo-se uma elevação de terreno junto à Casa do
Conselho como local para o cemitério geral onde se enterrariam membros de todas
as confrarias.
A edificação dos cemitérios
prosseguiu. A mudança veio para ficar. Além do cemitério geral, cada irmandade
cuidou de criar o seu próprio, o que foi ratificado por uma ordem governamental
da província em 1833, nos revela GAIO SOBRINHO (2010). Sem afastar-se muito dos
templos, eram construídos nos adros, nos fundos, arredores. O campo de enterramentos
ainda era santo... Mas, no geral, e em especial em cidades muito
tradicionalistas como São João del-Rei, praticamente, para ser enterrado, era
preciso pertencer a um determinado sodalício religioso. Isto porque cada
irmandade, confraria e ordem terceira se esforçavam por construir seu próprio
cemitério, por assim dizer, reservado ou restrito aos seus irmãos filiados.
Assim correu no século XIX.
Uma exceção em São João del-Rei
foi o a Irmandade da Misericórdia, ligada às atividades hospitalares da Santa
Casa, que tinha um cemitério fronteiriço, onde hoje está o Colégio Nossa
Senhora das Dores, ou mais exatamente nos seus fundos, junto à encosta do
barranco. O pequeno Cemitério da Misericórdia acolhia os corpos de indigentes,
loucos, leprosos... os proscritos da sociedade oitocentista. Esta irmandade
mantinha também um leprosário, “lazareto”, como se dizia, conservando os
pacientes com hanseníase numa unidade isolada, onde hoje está o Teatro
Municipal.
Ocorre que em 1881 a dita
Irmandade da Misericórdia acabou com o lazareto e ao que tudo indica já não
havia onde reservar os pacientes de Hansen; não bastasse, no final do século
XIX, em 1897, o cemitério desta irmandade estava lotado e o referido colégio em
franco processo de construção, demandando a extinção do cemitério.
A questão gerava um severo
problema de ordem pública e a administração municipal se viu às voltas com esta
questão. Paralelamente, era o início do período republicano e a primeira
constituição do novo regime previa a separação do governo e da religião, a
chamada laicização do estado. Portanto, era mister a edificação de um cemitério
público, desvinculado da Igreja.
Neste aspecto, indica-nos os
estudos do professor GAIO SOBRINHO (2001), que um texto publicado no jornal
local A Pátria Mineira, datado de
30/01/1890, indicava a necessidade iminente de construção de um cemitério em
local apropriado baseado nas razões da higiene:
“Os cemitérios devem ser construídos fora do recinto da cidade, numa
distância de 1000 a 1500 metros, em terreno seco e colocado de tal forma que os
ventos dominantes não levem os eflúvios para a cidade; fartamente arborizados e
mesmo separados da cidade por uma zona arborizada” Etc.
Ainda o mesmo autor cita mais um
texto a propósito do mesmo jornal e ano, datado de 11 de setembro, que frisava:
“que a cidade dos mortos seja separada da dos vivos por uma fila de
árvores que impeçam aos ventos levar em suas correntes as emanações e os
micróbios que infeccionam o ar.”
Havia um medo de que gases, vapores,
eflúvios, emanações, micróbios advindos das sepulturas esparramassem epidemias
pela cidade. Era ainda a crença no
mal
ar.
É muito útil neste momento
transcrever mais um trecho do Professor Gaio Sobrinho, que elucida sobre a
escolha do local, em tudo coerente com aquilo que A Pátria Mineira reclamara anos antes:
“Em São João del-Rei, em março de 1897, uma comissão de médicos
composta pelos doutores Cornélio E. das Neves Milward, José Teles de Morais
Barbosa, Juvenal das Neves e Galdino E. das Neves Sobrinho, indicava a região
do Quicumby como apropriada para a construção do cemitério público por
‘situar-se no norte/nordeste da cidade, distante dois quilômetros, separada da
povoação por colinas e florestas que impedem o vento e ser um terreno úmido e permeável
que facilita a decomposição cadavérica.’ Em 30 de novembro de 1898, a Câmara
desapropriava a chácara do Quicumbi para nela se estabelecer um lazareto (*)
e o cemitério municipal, que, no ano
seguinte, seria dividido em 4 partes, reservando-se uma para os não católicos.
É curioso, porém, que num livro de óbitos da Ordem Terceira de São Francisco,
antes desse ano, já existem referências a enterramentos no Quicumbi.”
(p.100).
Por este texto observamos que o
local servia aos requisitos que segundo a visão da época eram propícios. O mais
interessante era a indicação da existência das matas entre a região escolhida e
o centro da cidade, o que se deduz fossem de cobertura florestal a encosta do
Bairro das Fábricas, Dom Bosco, Lava-pés (atual Bairro São Dimas), Bela Vista,
Barro _ áreas hoje completamente urbanizadas.
Foi então que o poder público
resolveu adquirir a Chácara do Quicumbi. Informa-nos CINTRA (1982), que em
09/02/1898 uma lei municipal declara esta chácara como de utilidade pública
para efeito da criação do cemitério local. O proprietário da Chácara do
Quicumbi era o Major Joaquim de Castro e Sousa, que falecera dez anos antes, em
05/01/1888. Era casado com Elmira Maximiana Batista, da família Batista
Machado.
A Resolução nº 147 da Câmara Municipal
são-joanense, de 22/04/1899 autorizou sua construção, com portão de ferro. Foi
orçado em sete contos de réis, informa o jornal S.João d’El-Rey.
O cemitério passou por uma
reforma, ou apenas, reparos em 1923, cuja extensão não o sabemos. A notícia muito
lacônica é dada pelo jornal A Tribuna.
A palavra quicumbi é um tanto
enigmática e não está claro seu significado exato. Uma interpretação oral diz
que significa “barro mole”, referência ao terreno argiloso desta região, que
teria um grau de umidade adequado à dissolução dos cadáveres.
Particularmente não colocamos
crédito nesta interpretação. A palavra é claramente de origem africana: “
cumbi”
significa sol, em idioma quimbundo. Por sua vez se prestou à formação de várias
palavras de sentido semelhante, variando apenas os sufixos, referindo-se a um
grupo folclórico de dança, folguedo, espécie de congado.
O que se sabe ao certo por
registros da cultura popular do início do século XIX é que havia uma cerimônia
com danças e cantorias usada para as ocasiões fúnebres de sepultamento de membros
da realeza africana que no Brasil estavam subjugados como escravos. No féretro,
os escravos então dançavam o quicumbi ou cucumbi. Esta mesma dança era usada
nos rituais da puberdade, referência a ritos de passagem, comemorativo da mudança
da infância para a adolescência.
Quicumbi era, portanto um tipo de
congado, um auto popular, dança folclórica, folguedo. Brasil afora ele assumiu
diversos formatos, afastando-se ao longo dos anos de seu objetivo central e se
integrando em alguns lugares ao ciclo festivo do Rosário e em outros ao do
carnaval, sob diferentes nomes: quicumbi, cucumbi, cacumbi, ticumbi, catumbi.
O registro exato da dança do
quicumbi em São João del-Rei nunca o localizamos. O nome da chácara parece,
contudo, e pela lógica, ser uma referência à dança, principalmente por se
tratar de uma região antigamente isolada, distante da cidade, escondida por
matas no interior das quais os escravos e forros nos tempos do maldito cativeiro poderiam fazer
seus rituais longe dos olhos discriminadores da sociedade escravocrata.
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Túmulo da Jovem Desconhecida, local de devoção popular no Quicumbi. São João del-Rei/MG. Setembro/1998. |
Referências Bibliográficas
ALVARENGA, Luís de Melo. História da Santa Casa da Misericórdia de
São João del-Rei (1783-1983). Belo Horizonte: Formato, 2009. 444p.il. p.48-49.
GAIO SOBRINHO, Antônio. Visita à Colonial Cidade de São João
del-Rei. São João del-Rei: [s.n], 2001. 128p. p.81-100.
GAIO SOBRINHO, Antônio. São João del-Rei através de documentos.
São João del-Rei: UFSJ, 2010. 260p. p.159 e 203.
CINTRA, Sebastião de Oliveira. Efemérides de São João del-Rei. 2.ed. Belo Horizonte: Imprensa Oficial: 1982. 2v.
SENA, Consuelo Pondé de. A
Cemiterada: curioso motim baiano. In:
MAN, Rio de Janeiro, Arquivo
Nacional, 1981. n.10, ano 12. p.3-6.
VALE, Dario Cardoso. Memória Histórica de Prados. Belo
Horizonte: [s.n], 1985. 344p. + anexos. Os Cemitérios, p.105-106.
Referências Hemerográficas
S.João d’El-Rey, n.17, 13/05/1899. São João del-Rei.
A Tribuna, n.468, 15/04/1923. São João del-Rei.
Notas e Créditos
* Para saber mais sobre a história
dos leprosos em São João del-Rei, leia também neste blog o texto:
OS
LÁZAROS
** As tensões sociais entre a administração municipal e os setores religiosos ao fim do século XIX, por conta do cemitério público, podem ter sido relevantes. Na vizinha cidade de Prados, por exemplo, no mesmo ano do nosso Quicumbi, registrou VALE (1985), que a partir de 22/03/1898 a administração sobre o cemitério foi tirada da Igreja, "muito a contragosto do Revº Vigário da época _ Padre Antônio Cardoso Damasceno _ representando a Irmandade do Santíssimo Sacramento _ , que protestou e procurou até embargar outra que não fosse a sua administração". (p.106). Por fim, um decreto de trinta de abril daquele ano regulamentou as atividades do Cemitério de Prados.
*** Texto e fotografia: Ulisses
Passarelli
Caro Pesquisador Ulisses,
ResponderExcluirSeu trabalho sobre o "Quicumbi" é fabuloso. O resgate da memória é fundamental para que possamos compreender o presente. Lendo seu texto, fiz uma verdadeira viagem pelo tempo em São João del-Rei. Sou gratíssimo a você por isso, pelo prazer da leitura e o aprendizado. Parabéns e meu abraço amigo. Luiz Cruz
Caro amigo e pesquisador Ulisses Passarelli, admiro muito seus textos porque se debruça sobre cada assunto e traz ao conhecimento dos leitores detalhes de várias manifestações populares, sustentadas na documentação, na história, nos depoimentos, um trabalho que a ciência recomenda e vc contempla. Por isso, seus textos são indicados para leitura pela nossa Comissão de Folclore em Mato Grosso do Sul. Um grande abraço amigo.
ResponderExcluirLuiz Cruz e Marlei Sigrist: palavras como as que vocês elogiaram meu trabalho só me dão a certeza que devo continuar. Vocês me fortalecem. Obrigado, muito obrigado. Grande abraço. Ulisses Passarelli.
ResponderExcluirGrande Ulisses, amigo e folclorista dos "bão", sua colaboração na elaboração dos inventários dos bens culturais de São João del-Rei é de extrema importância. Sua generosidade é um certamente um "auxílio luxuoso". Abç
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