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Bem vindo!Esta página foi criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas, tampouco acadêmicas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




segunda-feira, 18 de abril de 2016

Tamborim é que bate raia!

O comando de uma guarda de congado é exercido por um capitão ou capitã [1], assim chamado o (a) congadeiro (a) que exerce a liderança e o controle dos cantos, danças, toques e movimentações. É o solista. Possui dentre os demais elevada experiência e domínio do conhecimento de conteúdo mítico e místico, o que popularmente chamam de "fundamentos" - garantia de conexão com o sagrado intangível. 

Os capitães se distinguem por vezes em detalhes da vestimenta, habitualmente mais elaborada ou enriquecida; outras vezes, por trazer consigo algum objeto específico. Assim, se em algumas guardas de congado tocam um instrumento como, por exemplo, sanfona ou mesmo uma caixa, em muitos, ou mesmo na maioria, para melhor desenvoltura de seu comando e à guisa de distintivo, traz um bastão especial (bengala, manguara...), ou uma espada ou ainda um tamborim, alvo deste texto. 

O tamborim é um pequeno instrumento musical de percussão indireta, de construção artesanal, estrutura em madeira, revestido de couro cru, pregado por meio de pequenos pregos, cravos ou tachas. Através de uma pequena baqueta de pau se faz a percussão. 

Nos municípios da mesorregião Campo das Vertentes o tamborim é mais frequente nas guardas de catupé. Suas características regionais são as seguintes: o formato é via de regra quadrangular ou retangular; tamanho relativo de pequeno a médio, com couro de um lado só, sendo o outro aberto [2]. De ordinário tem uma alça curta, resistente para se segurar diretamente na mão, não sendo usado a tiracolo nem pendente nos ombros como os tambores. Em suma é isto, muito embora, eventualmente, vejamos algum capitão munido de um tamborim de confecção industrial, de estrutura metálica circular revestida de membrana de nylon, desses que se usa em bateria de escola de samba e blocos de carnaval, mas não é tão comum. A afinação do tamborim se faz pelo calor, bastando deixá-lo algum tempo exposto ao sol para retesar o couro, ou aproximá-lo do fogo.

No aspecto musical, o papel deste instrumento é marcar o ritmo, chamar os instrumentos à correção da cadência, pontuar momentos específicos da estrutura musical com seu toque cuja tonalidade se sobressai acima de todos. Também marca instantes de mudança rítmica. Por isto mesmo o tamborim não toca de maneira contínua. Boa parte do tempo o capitão apenas o carrega e só bate nas precisões, como dizem. 

"Êh, ti maia!  -   bis
Tamborim é que bate raia!"  -  bis [3]

Esteja claro que é um instrumento privativo do capitão. No desenrolar de uma apresentação cultural ou de uma participação em festa religiosa, somente circula entre os capitães da guarda, ou seja, do primeiro para o segundo capitão, ou para o capitão-meirinho, ou no máximo momentaneamente para a mão de um soldado de destaque, aprendiz de capitão. Não obstante aconteça de confeccionarem pequenos tamborins efetivamente de pequeno efeito musical e o darem para as crianças tocarem, como forma de incentivo à participação e ferramenta de aprendizado; ainda assim, é um instrumento de comando.

Importante notar que o jeito de bater o tamborim é algo muito subjetivo. Não é só percutir. Com ele em mão, dança-se além do ritmo próprio daquele congado, imprimindo com o instrumento, meneios e mesuras muito particulares, como se o objeto transmitisse ao seu portador uma energia específica que lhe incrementa os salamaleques. Ora bate-o no alto, acima da cabeça, ora baixo, rente ao chão; sucessivamente à direita é à esquerda demonstrando movimentos coreográficos que são prontamente entendidos e seguidos, como se fossem parte de um código ou linguagem corporal. Na empolgação, tem capitão que daqui e dali joga o tamborim para o ar e o ampara de novo, a que chamam "serenar o tamborim", algumas vezes girando o corpo com rapidez enquanto o instrumento sobe e desce; se acostam a um tocador novato que está errando os batidos de caixa e bem junto dele bate no tamborim o ritmo certo para que o caixeiro emende; percutem insistentemente na passagem das encruzilhadas e obstáculos (porteiras, valas, cavas, vias férreas, pontes), mesmo que em si a música esteja toda correta ("raiar o tamborim"). 

Deste último uso, se depreende com evidências numerosas, que o instrumento vai além da música aparente e serve de mecanismo de comunicação com o universo sagrado do congadeiro. O tamborim goza de muito respeito e por força do hábito, nem sequer é usual tocar-lhe as mãos, que não seja o capitão, e se o fizer, há de se pedir permissão ao capitão, bem como, licença. É óbvio que se trata de uma firmeza, um elemento preparado para a função em termos de preces e ritos, como cabalmente se afiguram pontos riscados em seu couro (por vezes no verso, longe das vistas dos curiosos), medalhas de santos pendentes, estrelinhas, figas, penduricalhos, fitas de cetim nas cores votivas que lhe amarram; cordões trançados de palha da costa por vezes com búzios, terços de contas de lágrimas presos a ele, cruzinhas de arruda e guiné e outros amuletos. Os pontos riscados nos tamborins habitualmente são abertos, ou seja, sem traçado de círculo ao redor, como geralmente se faz nos terreiros de umbanda. Se nos terreiros o circular o ponto é um procedimento habitual para não deixar a energia se esvair e assim invocar ou manter a entidade em terra, no caso do tamborim aparenta ser o contrário: o não circular esparge a energia por todo o grupo de dançantes.

O tamborim bate saudando o mastro desde o pé até apontar ao alto e dando-se três voltas em seu perímetro. Quando o mastro é arrancado, enquanto alguém se apressa para buscar terra e tampar o buraco onde estava fincado, o capitão o cobre com o tamborim para que ninguém jogue nada de ruim lá dentro _ objeto ou pedido escrito. É o instrumento que pede licença às entidades espirituais para se alcançar forças para seguir em frente. O batido do tamborim afugenta o mal. O toque seco de seu couro estirado tira as forças contrárias do inimigo invisível. Se um objeto suspeito de conter um feitiço está no chão no caminho do congado, o capitão o cobre com o tamborim enquanto canta o contrafeitiço e os dançantes executam uma coreografia de meia-lua. Se bater o tamborim três vezes às três da tarde (15 horas), da Sexta-feira da Paixão, pensando no inimigo renitente, pode tira-lhe a vitalidade. Tamborim caindo ao chão com frequência indica mal augúrio. Parece que tem vida própria, anímica, misteriosa: 

"Eu passei na ponte, 
a ponte tremeu, 
debaixo da ponte,
oi, tamborim gemeu..."

O couro em si goza também de seus cuidados próprios. De bezerro é o mais usado. O de cabrito goza de fama elevada porque acredita-se que confere ao capitão uma força extraordinária contra a qual não se pode trabalhar. Célebre é o tamborim de couro de gato, tanto mais de gato preto, dizem que dá ao capitão agilidade, destreza, esperteza, que não há quem alcance. Para tratar o couro em momentos que o capitão julga adequados, passa sobre ele cachaça (com ou ervas misturadas) ou azeite de dendê, sebo bovino e defumações. Preparar um tamborim no dia treze de maio (data da libertação dos escravizados) rende-lhe de imediato uma benção inextinguível. O mesmo no dia de São Benedito, que estimam como o maior dos capitães:

"Benedito Santo, 
filho de Nossa Senhora:
êh... Capitão Benedito, 
esta é nossa hora!"

"Benedito Santo,
filho da Virgem Maria:
olha lá, Capitão Benedito,
hoje é o nosso dia!"

Assim é o congado, cheio de detalhes em seu universo cultural. Um instrumento rude na aparência mas que conserva em si uma riqueza cultural que extrapola as mais otimistas previsões. Não é apenas um conjunto de homens dançando e cantando coisas ininteligíveis; é um exercício de louvação ao rosário, com todo um harmônico e bem elaborado conjunto de valores e símbolos do mais elevado significado religioso, cultural e social, digno de conhecimento e preservação:


"Se a morte não me matar, tamborim!
Se a terra não comer, tamborim!
Ai, ai, ai, tamborim!
Eu volto aqui pra você ver, tamborim!"

"Se a terra não me comer, tamborim!
Se a morte não me matar, tamborim!
Ai, ai, ai, tamborim!
Eu aqui torno voltar, tamborim!"

Capitão Zé Carreiro, de Coronel Xavier Chaves, maneja o tamborim
junto a um mastro, com toda experiência de décadas de dedicação. 1995. 

Catupé de Piracema em coreografia dos tocadores de ganzá,
sob o comando do capitão com o tamborim, em movimentos de lateralidade. 01/11/1998. 

Capitão Sebastião Ezequiel na dianteira do congado da
Restinga de Baixo (Ritápolis), batendo o tamborim inseparável. 04/06/2006.
   

Capitão Ernane Luís da Silva com o tamborim
à frente do congado da Restinga de Baixo (Ritápolis). 2000.
 
Tamborins: Coronel Xavier Chaves (esquerda) e Restinga de Baixo (direita). 24/09/2000.
Tamborim: desenho de Ulisses Passarelli a partir do original, observado em janeiro/1996.
Restinga de Baixo (Ritápolis/MG). 

Créditos


- Texto, fotografias e desenho: Ulisses Passarelli.  

Cantos: congados de São João del-Rei, década de 1990, muito embora sejam cantos bastante difundidos e de uso ainda hoje em vários congados regionais, admitindo variações nos versos. 

Notas 

[1] Capitã: entre congadeiros também corre o sinônimo Capitua, o qual muitos consideram como a forma correta. 

[2] Em alguns congados do centro-oeste mineiro aparecem tamborins retangulares relativamente grandes, às vezes, com couro nas duas faces. Também usam tamborins de forma sextavada. 

[3] Variante do cancioneiro popular: "Maia, Lourenço, maia! / Lourenço, que bate raia!" Informante: Elvira Andrade de Salles, Santa Cruz de Minas. Maia: corruptela de malha, 2ª pessoa do presente do verbo malhar (bater com o malho; martelar; em sentido figurativo, percutir, bater). Raiar o tamborim é batê-lo de forma rápida e persistente, chamando a atenção para o ritmo e evocando a força espiritual de que se acredita estar revestido.  

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