O comando de uma guarda de congado é
exercido por um capitão ou capitã [1], assim chamado o (a) congadeiro (a) que exerce a liderança e o
controle dos cantos, danças, toques e movimentações. É o solista. Possui dentre
os demais elevada experiência e domínio do conhecimento de conteúdo mítico e místico, o que
popularmente chamam de "fundamentos" - garantia de conexão com o sagrado intangível.
Os capitães se distinguem por vezes em
detalhes da vestimenta, habitualmente mais elaborada ou enriquecida; outras
vezes, por trazer consigo algum objeto específico. Assim, se em algumas guardas
de congado tocam um instrumento como, por exemplo, sanfona ou mesmo uma caixa,
em muitos, ou mesmo na maioria, para melhor desenvoltura de seu comando e à guisa de distintivo, traz um bastão especial (bengala, manguara...), ou uma
espada ou ainda um tamborim, alvo deste texto.
O tamborim é um pequeno instrumento musical de
percussão indireta, de construção artesanal, estrutura em madeira, revestido de
couro cru, pregado por meio de pequenos pregos, cravos ou tachas. Através de uma pequena
baqueta de pau se faz a percussão.
Nos municípios da mesorregião Campo das Vertentes o tamborim é mais frequente nas guardas de catupé. Suas características regionais são as seguintes: o formato é via de regra quadrangular ou retangular; tamanho relativo de pequeno a médio,
com couro de um lado só, sendo o outro aberto [2]. De ordinário tem uma alça curta, resistente para se segurar diretamente na mão, não sendo usado
a tiracolo nem pendente nos ombros como os tambores. Em suma é isto, muito
embora, eventualmente, vejamos algum capitão munido de um tamborim de confecção
industrial, de estrutura metálica circular revestida de membrana de nylon,
desses que se usa em bateria de escola de samba e blocos de carnaval, mas não é
tão comum. A afinação do tamborim se faz pelo calor, bastando deixá-lo algum tempo exposto ao sol para retesar o couro, ou aproximá-lo do fogo.
No aspecto musical, o papel deste instrumento é marcar o
ritmo, chamar os instrumentos à correção da cadência, pontuar momentos
específicos da estrutura musical com seu toque cuja tonalidade se sobressai
acima de todos. Também marca instantes de mudança rítmica. Por isto mesmo o tamborim não toca de maneira contínua. Boa parte do
tempo o capitão apenas o carrega e só bate nas precisões, como dizem.
"Êh, ti maia! - bis
Tamborim é que bate raia!" - bis [3]
Esteja claro que é um instrumento
privativo do capitão. No desenrolar de uma apresentação cultural ou de uma
participação em festa religiosa, somente circula entre os capitães da guarda,
ou seja, do primeiro para o segundo capitão, ou para o capitão-meirinho, ou no
máximo momentaneamente para a mão de um soldado de destaque, aprendiz de
capitão. Não obstante aconteça de confeccionarem pequenos tamborins
efetivamente de pequeno efeito musical e o darem para as crianças tocarem, como
forma de incentivo à participação e ferramenta de aprendizado; ainda assim, é um instrumento de comando.
Importante notar que o jeito de bater o
tamborim é algo muito subjetivo. Não é só percutir. Com ele em mão, dança-se
além do ritmo próprio daquele congado, imprimindo com o instrumento, meneios e
mesuras muito particulares, como se o objeto transmitisse ao seu portador uma
energia específica que lhe incrementa os salamaleques. Ora bate-o no alto,
acima da cabeça, ora baixo, rente ao chão; sucessivamente à direita é à
esquerda demonstrando movimentos coreográficos que são prontamente entendidos e
seguidos, como se fossem parte de um código ou linguagem corporal. Na empolgação, tem capitão
que daqui e dali joga o tamborim para o ar e o ampara de novo, a que chamam "serenar o tamborim",
algumas vezes girando o corpo com rapidez enquanto o instrumento sobe e desce;
se acostam a um tocador novato que está errando os batidos de caixa e bem junto
dele bate no tamborim o ritmo certo para que o caixeiro emende; percutem
insistentemente na passagem das encruzilhadas e obstáculos (porteiras, valas,
cavas, vias férreas, pontes), mesmo que em si a música esteja toda
correta ("raiar o tamborim").
Deste último uso, se depreende com
evidências numerosas, que o instrumento vai além da música aparente e serve de
mecanismo de comunicação com o universo sagrado do congadeiro. O tamborim goza
de muito respeito e por força do hábito, nem sequer é usual tocar-lhe as mãos, que não seja o capitão, e se o fizer, há de se pedir permissão ao capitão, bem como, licença. É óbvio que se trata de uma firmeza, um elemento preparado para a
função em termos de preces e ritos, como cabalmente se afiguram pontos riscados
em seu couro (por vezes no verso, longe das vistas dos curiosos), medalhas de
santos pendentes, estrelinhas, figas, penduricalhos, fitas de cetim nas cores
votivas que lhe amarram; cordões trançados de palha da costa por vezes com
búzios, terços de contas de lágrimas presos a ele, cruzinhas de arruda e guiné e outros amuletos. Os pontos riscados nos tamborins habitualmente são abertos, ou seja, sem traçado de círculo ao redor, como geralmente se faz nos terreiros de umbanda. Se nos terreiros o circular o ponto é um procedimento habitual para não deixar a energia se esvair e assim invocar ou manter a entidade em terra, no caso do tamborim aparenta ser o contrário: o não circular esparge a energia por todo o grupo de dançantes.
O tamborim bate saudando o mastro desde o
pé até apontar ao alto e dando-se três voltas em seu perímetro. Quando o mastro
é arrancado, enquanto alguém se apressa para buscar terra e tampar o buraco
onde estava fincado, o capitão o cobre com o tamborim para que ninguém jogue
nada de ruim lá dentro _ objeto ou pedido escrito. É o instrumento que pede
licença às entidades espirituais para se alcançar forças para seguir em frente.
O batido do tamborim afugenta o mal. O toque seco de seu couro estirado tira as
forças contrárias do inimigo invisível. Se um objeto suspeito de conter um feitiço está no chão no caminho do congado, o capitão o cobre com o tamborim
enquanto canta o contrafeitiço e os dançantes executam uma coreografia de
meia-lua. Se bater o tamborim três vezes às três da tarde (15 horas), da Sexta-feira da Paixão, pensando no inimigo renitente, pode tira-lhe a vitalidade. Tamborim caindo ao chão com frequência indica mal augúrio. Parece que
tem vida própria, anímica, misteriosa:
"Eu passei na ponte,
a ponte tremeu,
debaixo da ponte,
oi, tamborim gemeu..."
O couro em si goza também de seus cuidados
próprios. De bezerro é o mais usado. O de cabrito goza de fama elevada porque acredita-se que confere ao capitão uma força extraordinária contra a qual não se pode
trabalhar. Célebre é o tamborim de couro de gato, tanto mais de gato preto, dizem que dá ao capitão agilidade, destreza,
esperteza, que não há quem alcance. Para tratar o couro em momentos que o
capitão julga adequados, passa sobre ele cachaça (com ou ervas misturadas) ou azeite de dendê, sebo bovino e defumações. Preparar um
tamborim no dia treze de maio (data da libertação dos escravizados) rende-lhe de
imediato uma benção inextinguível. O mesmo no dia de São Benedito, que estimam
como o maior dos capitães:
"Benedito Santo,
filho de Nossa Senhora:
êh... Capitão Benedito,
esta é nossa hora!"
"Benedito Santo,
filho da Virgem Maria:
olha lá, Capitão Benedito,
hoje é o nosso dia!"
Assim é o congado, cheio de detalhes em seu universo cultural. Um instrumento rude na aparência mas que conserva em si uma riqueza cultural que extrapola as mais
otimistas previsões. Não é apenas um conjunto de homens dançando e cantando
coisas ininteligíveis; é um exercício de louvação ao rosário, com todo um
harmônico e bem elaborado conjunto de valores e símbolos do mais elevado
significado religioso, cultural e social, digno de conhecimento e
preservação:
"Se a morte não me matar, tamborim!
Se a terra não comer, tamborim!
Ai, ai, ai, tamborim!
Eu volto aqui pra você ver, tamborim!"
"Se a terra não me comer, tamborim!
Se a morte não me matar, tamborim!
Ai, ai, ai, tamborim!
Eu aqui torno voltar, tamborim!"
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Capitão Zé Carreiro, de Coronel Xavier Chaves, maneja o tamborim junto a um mastro, com toda experiência de décadas de dedicação. 1995. |
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Catupé de Piracema em coreografia dos tocadores de ganzá, sob o comando do capitão com o tamborim, em movimentos de lateralidade. 01/11/1998. |
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Capitão Sebastião Ezequiel na dianteira do congado da Restinga de Baixo (Ritápolis), batendo o tamborim inseparável. 04/06/2006. |
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Capitão Ernane Luís da Silva com o tamborim à frente do congado da Restinga de Baixo (Ritápolis). 2000. |
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Tamborins: Coronel Xavier Chaves (esquerda) e Restinga de Baixo (direita). 24/09/2000. |
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Tamborim: desenho de Ulisses Passarelli a partir do original, observado em janeiro/1996. Restinga de Baixo (Ritápolis/MG). |
Créditos
- Texto, fotografias e desenho: Ulisses Passarelli.
- Cantos: congados de São João del-Rei, década de 1990, muito embora sejam cantos bastante difundidos e de uso ainda hoje em vários congados regionais, admitindo variações nos versos.
Notas
[1] Capitã: entre congadeiros também corre o sinônimo Capitua, o qual muitos consideram como a forma correta.
[2] Em alguns congados do centro-oeste mineiro aparecem tamborins retangulares relativamente grandes, às vezes, com couro nas duas faces. Também usam tamborins de forma sextavada.
[3] Variante do cancioneiro popular: "Maia, Lourenço, maia! / Lourenço, que bate raia!" Informante: Elvira Andrade de Salles, Santa Cruz de Minas. Maia: corruptela de malha, 2ª pessoa do presente do verbo malhar (bater com o malho; martelar; em sentido figurativo, percutir, bater). Raiar o tamborim é batê-lo de forma rápida e persistente, chamando a atenção para o ritmo e evocando a força espiritual de que se acredita estar revestido.
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