Ofereço como homenagem e
gratidão à memória dos foliões Geraldo Teixeira e Vico, e ao casal amigo José Marcos e Maria José,
mestres do saber.
Bruma é neblina, serração, névoa.
Brumado é o lugar que tem brumas, nevoeiro. Estas palavras revestem-se de uma
poesia natural e revelam um ponto do distrito de São Gonçalo do Amarante, em
São João del-Rei, com um bucolismo bem condizente com sua paisagem neblinada no
inverno.
A própria vila de São Gonçalo do
Amarante chamou-se em sua origem São Gonçalo do Brumado. Perdido o topônimo original
permaneceu contudo o termo em epígrafe em uso noutros pontos distritais, a
saber:
-
Brumadinho: pesqueiro na foz do Ribeirão do Brumado com o Rio das Mortes, acerca
do km 122 da antiga Ferrovia Oeste de Minas, “Linha do Sertão”. Tem duas ou
três fazendas próximas;
-
Brumado: povoação próxima à vila de São Gonçalo, com dois agrupamentos de
residências, um num vale bem definido por morros altos (“Brumado de Cima”) e
outro junto ao baixio que serve de leito ao ribeiro supracitado (“Brumado de
Baixo”).
No passado oitocentista o coração
desse lugar estava na Fazenda do Brumado, uma antiga construção rural ainda de
pé, se bem que com aspecto hoje modificado, que reunia escravaria para trabalhos
de plantação, cria e lavra. Vestígios da senzala são visíveis em alicerces de
pedra e ainda um represamento de um dos afluentes do Ribeirão do Brumado,
destinado a trabalhos de mineração.
A passagem de sucessivas gerações e
donos imprimiu mudanças arquitetônicas na construção e divisões territoriais
que fizeram surgir sítios e chácaras em derredor, portanto, o núcleo
embrionário desse povoado.
O meio de vida pouco difere de
outras localidades são-joanenses e porque não dizer regionais, com uma pequena
produção agrícola e pecuária de subsistência, alcançada por métodos
tradicionais de produção, o que diante do quadro econômico imperativo do século
XX não abriu perspectivas para seus moradores. Alguns lidam com o artesanato, para
inteirar a renda da família.
O
êxodo rural era inevitável e suas sequelas são bem conhecidas na roça e na
cidade. De cerca de quinze casas no Brumado de Cima, apenas três tem moradores fixos.
As demais são ocupadas em alguns dias da semana ou só nos fins de semana. A
situação do Brumado de Baixo é a mesma: de uma dezena de casas só três tem
ocupação permanente, segundo observação pessoal em julho de 2009.
Para
quem ficou no Brumado, além do trabalho de subsistência no cultivo e criatório
como já dito, o caminho também é prestar serviço para sítios e fazendas da
região em trabalhos de capinar plantações, roçar pastos, manutenção de
benfeitorias (moinhos, currais, cercas, silos, valos d’água, muros de pedra),
paga a diária do trabalhador por cerca de 40 a 50% do valor do trabalhador
autônomo na cidade. Não resta dúvida que tal situação serve de absoluto
desestímulo à permanência do homem no campo.
Outros
fatores pesam a favor do êxodo. A escola local fechou as portas e hoje jaz
abandonada em meio do mato e de poços de água. As crianças tem agora de se
deslocar à vila de São Gonçalo do Amarante ou ao arraial da Trindade, ambos a
uma légua de distância. Ainda assim só se pode contar com o ensino fundamental,
sendo depois obrigadas a recorrer à cidade para continuidade do estudo.
As
estradas são via de regra ruins.
A
luz elétrica chegou por volta de 2004 segundo dizem os moradores.
Não
há linha fixa de transporte coletivo. É necessário pegar o ônibus da Trindade
ou o de São Gonçalo, com pontos de parada distantes.
Uma
tradição local que se encontra desaparecida é a das folias, grupos folclóricos
ali rastreáveis apenas por notícias orais. Foi afamada na década de 1960 a
folia de Geraldo Marcelino Vieira, popularmente conhecido por “Geraldo
Teixeira” que no Brumado de Cima foi folião afamado. Seu grupo andava
normalmente como é comum na região para os Santos Reis e São Sebastião, mas
também para o Divino e ainda para o santo violeiro, São Gonçalo do Amarante.
Esta é uma das raríssimas Folias de São Gonçalo do Amarante de que se tem notícias.
Outro
grupo local do Brumado de Cima foi a folia do sr. Flávio Francisco Alves,
carinhosamente conhecido por “Vico”, que teve uma Folia de São José cuja
arrecadação e anúncio se voltavam para a Igreja de São José Operário, no bairro
Tijuco, na sede municipal.
Uma
tradição ainda forte nessa região é a da medicina popular. O uso da fitoterapia
é o remédio de todas as horas. Com a senhora Maria José da Silva Oliveira, a
conhecida e dedicada rainha de congado “Maria da Pinta”, moradora local, colhi
relevante receituário popular em 25/07/2009:
Infusões alcoólicas: (esfrega-se na área afetada)
1-
Cravo-defunto com
arruda: sinusite
2-
Melão de São
Caetano: picada de insetos
3-
Caldo de
mandioca: creme dermatológico
4-
Carobinha: sarna
5-
Camboatá com
capim-gordura: mialgia, reumatismo, coluna, joelho, juntas
6-
Folha de mandioca
com cuité do campo: coluna
7-
Caroço de abacate
ralado: coluna, reumatismo
Fortificante:
-
1 talha (fatia
larga) de marmelada
-
1 frasco de Biotônico
Fontoura
-
2 ovos de pata /
codorna
-
1 lata de leite
condensado
-
3 colheres de mel
Bate tudo no liquidificador
e acondiciona em vidro esterilizado na geladeira. Tomar 1 colher por dia.
Bronquite:
1- Mamão
grande, verde. Cortar uma tampa e deixar a semente. Põe dentro 1 cebola média
ralada, 3 colheres de mel, ½ copo de açúcar mascavo, 4 ramos de hortelã, um
punhado de flor de mamão de corda (macho), um punhado de flor de laranjeira e
de limão, ½ dúzia de flor de fruta do lobo, uma mão cheia de folhas de elevante
e poejo. Tampar com a tampa do próprio mamão, prendendo-a com palito. Por numa
forma de bolo levar em forno quente até escorrer caldo. Coar e por em vidro
esterilizado.
2- Pegar um
ovo de galinha preta e na Sexta-feira da Paixão abrir um tampo e cuspir dentro
dele. Colocá-lo dentro de uma meia preta e pendurar em cima do fogão à lenha,
onde pega fumaça.
3- Cuspir na
boca de um peixe vivo e soltá-lo no rio para levar embora.
4- Trocar dinheiro
do bolso por uma esmola de equivalente valor, que tenha sido coletada pelos
meninos que, na Semana Santa, batem matraca na porta das igrejas e pedem
ofertas para a para a cera do Santo Sepulcro. Na hora de trocar tem que pedir
ao menino da igreja que o faça “pelo amor de Deus”. Com esse dinheiro comprar
algo comestível para a criança com bronquite e deixá-la comer à vontade. O que
sobrar jogar no Córrego do Lenheiro de cima da Ponte do Rosário na hora da
passagem da Procissão do Enterro e dali acompanhar até o fim aquele piedoso cortejo.
Maria
disse-me ainda que era costume no passado os pais darem banho de sangue de tatu
nas crianças para lhes fortalecer e retirar o risco de contrair lepra. E por
falar em banhos, para o descarrego ensinou-me o de folhas da congonha conhecida
por ticongô, ou ainda da planta chamada solidônia, capazes de, se fervidas e
convertidas depois de mornas em banhos, retirar todo mal olhado, forças
negativas, maré de azar.
Seu
esposo, José Marcos de Oliveira é um artista no manuseio da madeira, fazendo bons
trabalhos artesanais de peças importantes na lida rural.
O
casal forma ainda uma boa dupla de cantadores de calango e modas.
A
vida simples no Brumado reserva muito saber além da tranquilidade. Esquecido
por sucessivas administrações, pelejando por melhorias vê a cada dia seus
moradores buscarem melhores possibilidades na cidade.
Mas
o conhecimento popular ainda persevera na memória coletiva, resistindo ao
desaparecimento. Falta-nos ainda valorizá-lo devidamente e quiçá não possa ser
uma fonte de recursos para os moradores.
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Brumado de Cima e ao fundo a Serra do Lenheiro, São João del-Rei/MG, 24/07/2009. |
Notas e Créditos
* Texto e fotografia: Ulisses Passarelli
Ulisses, parabéns pelo seu excelente trabalho. Que texto primoroso!!! Grande talento literário.
ResponderExcluirGratidão! Continue acompanhando este blog.
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