Aspectos Folclóricos do Carnaval São-joanense [1]
Dentro da cultura popular, especificamente no chamado "folclore cíclico" é conhecido o CICLO CARNAVALESCO, com uma série de manifestações, costumes e aspectos que só são vistos nos dias de folia momesca (e nos que lhe antecedem imediatamente), inseridos num contexto bem mais amplo, popular não-folclórico. Ou seja: o carnaval é uma grande festa popular, com aspectos folclóricos e muitos não folclóricos.
Este artigo trata apenas do folclore carnavalesco com respeito a São João del-Rei, numa abordagem meramente descritiva: entrudo, zé pereira, índios, blocos de sujos, nêga maluca, boi, bonecas e caveiras.
1-Entrudo
Foi a expressão antiga do carnaval
conhecida nesta cidade. Do latim, introito,
entrada. Em 1879 “incumbiu-se de festejar
este ano ao deus Momo (carnaval) a
Sociedade Juvenil. A Rua Direita converteu-se em bosque e aí ao som da música,
postada em palanque, se divertiram mascarados, distribuindo graças e flores”.
Registro de Sebastião Cintra, com base no jornal “Arauto de Minas”, de
fevereiro.
A
expressão maior era a saudável batalha de água, perfumes, farinha e polvilho.
Os foliões jogavam estes materiais entre si e nos transeuntes, com seringas de
jogar água ou qualquer vasilhame, limões de cera contendo água perfumada e
matéria feculosa, lambrecando os brincantes. A escola de samba carioca
“Imperatriz Leopoldinense” lembrou-se do entrudo com versos assim:
“Oi, joga água,
amor! Limão de cera!
Ôh, vale tudo
nessa brincadeira!”
Herança
portuguesa foi registrada no Brasil em começo do século XIX por Henry Koster em
Pernambuco e Jean Baptiste Debret no Rio de Janeiro, mostrando ambos o trabalho
dos servos carregando o material para servir aos senhores na sua lúdica, “nas senzalas e casas-grandes, nivelando
amos e servos na alegria igualitária do entrudo”, segundo Câmara Cascudo,
que opinou relembrar o carnaval as clássicas saturnálias, februálias, florais,
festas orgiásticas assírias, medo-persas, babilônicas, dizendo que “nenhuma crônica grega superava essa
explosão de vida dionísica, arrebatada, furiosa e brutal em sua
espontaneidade.”
Debret descreveu
a confecção do limão de cera ou de cheiro:
(...)
simulação de laranja, frágil invólucro de
cera de um quarto de linha de espessura e cuja transparência permite ver o
volume de água que contém. A cor varia do branco ao vermelho e do amarelo ao
verde. (...) A fabricação consiste
simplesmente em pegar uma laranja verde de tamanho meio, cujo caule é
substituído por um pedacinho de madeira de quatro a cinco polegadas que serve
de cabo, e mergulhá-la na cera derretida. (...) mergulha-se na água fria, (...) Parte-se
em seguida esse molde, ainda elástico, a fim de retirar a laranja e,
aproximando-se as partes cortadas, solda-se o molde de novo com cera quente,
tendo-se o cuidado de deixar a abertura formada pelo pedaço de madeira para a
introdução da água perfumada com que deve ser enchido o limão de cheiro.”
O entrudo como era passou. Aqui e
acolá, onde as mudanças sociais chegam mais vagarosamente alguns de seus
elementos sobrevivem esmaecidos.
2-Zé pereira
Conjunto formado por uma bateria
baseada em percussão grave à custa de surdos, zabumbas, bombos treme-terra. Zé
pereira seria o nome dado aos tambores do folguedo e por extensão ao grupo,
processo conhecido no folclore coreográfico. O grupo inclui folgazões
fantasiados e mascarados, de toda espécie.
Desfila pelas ruas com seus batidos
firmes somados aos gritos compassados dos foliões de momo: “Pereira!” E a percussão ataca: “bum!
Bum-bum-bum!”, “Zé Pereira! Bum! Bum –bum-bum! Pereira!”... etc.,
alternando repiques. Pode haver algum canto como este, tradicionalíssimo e
divulgado:
“Viva o zé pereira! (3 vezes)
Que a ninguém faz mal!
Viva o zé pereira! (3 vezes)
Que hoje é carnaval!”
De costumeiro sai antes do carnaval,
anunciando-o em ocasião de alegria, batucada, ensaio de marchinhas e sambas,
como Dario Vale observou em Prados/MG: “(...) o tal de “Zé Pereira” que nada mais era que o ensaio de cantos,
músicas, danças e folias, feito porém à vista de todos que estivessem pelas
ruas e sem o aparato do carnaval propriamente dito.”
Sua origem é
portuguesa. Espalhou-se no Brasil, notadamente no centro-sul. Parece ter sido
introduzido no Rio de Janeiro, donde teria se espalhado. Luiz Edmundo dá como
ano de sua introdução 1852, assim o descrevendo: “sete ou oito maganos vigorosos, tendo por sobre os ventres empinados
satânicos tambores, caixas de rufos ou bombos, por entre alucinantes brados,
passam pelas ruas, batendo, surrando, martelando, com estrondo e fúria, a
retesada pele daqueles roucos e atroadores instrumentos.”
Consta que foi o
sapateiro português José de Azevedo Paredes, natural do Porto e com loja na Rua
São José, no Rio de Janeiro, o introdutor do folguedo. A novidade pegou e logo
surgiram muitos outros. O autor supracitado informa que no Rio o zé pereira “acaba aí por 1906, 7 ou 8, como todas as
coisas acabam, mas com esplendor e glória”.
Cascudo baseado
em Armando Leça (Música Popular Portuguesa, 156, Porto, s.d.), dá como original
do norte português e beiras, onde “barulham
na arruada os gaiteiros e zé p’reiras”. Atesta-lhe J. Leite de Vasconcelos
(Boletim de Etnografia, n.5, 27, Lisboa, 1938): “O zé pereira figura com frequência nos arraiais festivos do norte e
beira”.
Professor Cintra registrou a
presença deles em São João del-Rei/MG em 1901:
“Iniciam-se os festejos carnavalescos,
promovendo a Sociedade Filarmônica S. Joanense baile à fantasia. O povo
postou-se de frente da sede da entidade, situada à antiga Rua municipal, no
local onde se construiu o edifício S. João del-Rei, para assistir à chegada dos
foliões, alguns exibindo fantasias de elevado preço. As 22 horas a Orquestra
Ribeiro Bastos executou a 1ª valsa. No dia anterior, sábado de carnaval,
percorreram a cidade os barulhentos zé pereiras. Todas as noites num coreto
armado à Rua Municipal, tocava uma banda
de música. No carnaval de 1901 não faltou o perigoso entrudo, com limões de
cheiro, jarros e bacias d’água.”
Havia vários destes conjuntos nesta
cidade, em bairros, ocorrendo como consta por tradição oral, rivalidade entre
eles. Não restou um só grupo nesta terra...
3-Índios
Era uma espécie de bloco formado por indivíduos
trajados à imitação de indígenas, de cocar, saiote de penas, ráfia desfiada ou
capim, tornozeleiras de penas, portando lanças ou flechas, pele com pinturas.
Tinham impressionante realismo, quer na aparência quer na gesticulação
ameaçadora, como se fora uma tribo em pé de guerra. Até meados do século XX e
com mais força na primeira metade, havia desses grupos, hordas carnavalescas
como nomes evocadores de velhas nações íncolas, até com rivalidades umas com as
outras.
Desapareceram. Vez por outra, até hoje, vemos indivíduos com tais
trajes, machadinha à mão, de fingimento, isolados, perdidos na multidão como
nossos índios de verdade, vivendo quase a esmo na terra que era (é) sua.
4-Blocos de Sujos (**)
Eram grupos caricatos de mascarados
diversos, com trajes variados, alguns bem simples, quase maltrapilhos na
fantasia, daí o nome. Valiam as posses e a criatividade, com a indispensável
animação e senso carnavalesco. Acompanhados de charanga ou de batucada,
percorriam animadamente as ruas, atirando confetes, serpentina, perfume de seus
lança-perfume e alegria contagiante. Somavam-se outros fantasiados primorosos e
sem outra regra senão a descontração: diabos, gatinhos, papangus, fantasmas,
bruxas, árabes, mendigos, ciganas, piratas, vikings, pierrôs, colombinas, palhaços,
dominós, polichinelos, arlequins e outros seres do passado, da criatividade e
do subconsciente, surgiam e se misturavam, usando panos, cordas, fios,
materiais brilhantes e outros, que serviam de matéria-prima. Alguns padrões
tornaram-se tradicionais.
5- Nêga Maluca
Brincadeira antiga centrada num
personagem que leva este nome, carregando aos braços uma boneca a guisa de
bebê, que, simulando não saber quem é o pai verdadeiro, oferece-o aos homens que
passam, dizendo a clássica frase: “toma,
que o filho é seu!”
O suposto pai oferta um dinheiro qualquer
e lá vai a nêga maluca, após as pilhérias de praxe, com o filho nos braços à
procura de outro pai, cuja espórtula garantirá a cachaça carnavalesca. Outros
ofertam bebidas e lanches. Uma charanga a acompanha.
Os trajes representam uma mulher
extravagante, com roupas de vivo estampado, cores berrantes, brincos e colares
enormes, peruca despenteada, batom borrado na boca, adereços esquisitos e
cacarecos pendurados. Seios
postiços enormes. Ancas proeminentes por causa de dois travesseiros que amarra
ao corpo sob o vestido, dando-lhe a aparência de uma mulher desajeitada, sem
atrativos. No geral é um homem travestido.
É hoje rara esta folgança,
aparecendo vez por outra, desgarrada no interior de uma farra qualquer, descaracterizada
de seus elementos originais, convertida apenas em mais uma fantasia, aliás,
bastante difundida.
6- Boi
Não temos o folguedo do bumba-meu-boi
em sua complexidade estrutural, mas seu personagem central aqui surge – já
bastante rarefeito – fazendo as alegrias do carnaval de rua, com o nome de boi,
boizinho e rancho do boi. Dança isolado, investindo com chifradas contra a
meninada que lhe atiça sem parar. Dança aos volteios, descrevendo círculos e
carreiras acompanhado por uma charanga ou batucada. Tocam ritmos do tempo, nada
específico. Outras vezes surge em algum bloco, ao qual se mistura. Não há
personagens senão o boi de fingimento, feito com uma armação coberta de pano,
cabeça e rabo postiços. Um dançante movimenta o estafermo, oculto sobre ele.
Ficou afamado o Rancho do Boi de “seu Fausto”
(Fausto de Almeida, falecido em 19/05/1953), no Bairro das Fábricas.
Das bandas do Tijuco – Alto das
Águas Férreas, Rua de Santa Clara e Vila São Bento – por vezes sai um boi. Meu
pai, David Passarelli, viu-o em Penedo, no município de Ritápolis/MG a trinta e
tantos anos (por volta de 1969). Ainda se mantém em Prados/MG, onde é tradicionalíssimo, com o nome
de boi mofado. Em Coronel Xavier Chaves/MG é chamado boi-de-caiado.
7- Bonecas
Nossas bonecas são simples e parcas.
Não as temos com a fartura pernambucana. Surgem, porém, com certa timidez,
destacando com sua armação agigantada, vestido de chitão, adereços chamativos.
Um indivíduo metido debaixo dela faz dançar aos rodopios e passos miúdos,
girando os longos braços a bater a bolsa nos circunstantes, obrigando a abrir a
roda de assistência. Faz salamaleques e mesuras. Insere-se no contexto dos
blocos caricatos.
Outro tipo é uma boneca ou boneco
menor, levado aos ombros por um folião, ou a ele abraçado, como uma companheira
de dança, cujas pernas molengas são amarradas às do dançante.
Já os curiosos “Cabeções” que
formavam um bloco específico, desapareceram. Os bonecos macrocéfalos ficaram no
passado.
8- Caveiras
Bloco típico que prima pelo tétrico, o
macabro, brincando com os valores da morte e da vida do além. É um cortejo ao
som de música fúnebre, de foliões envoltos em mortalhas, "cáfitas" brancas,
lençóis, como fantasmas, máscaras de caveiras em papel machê, já sendo comuns
as industrializadas. Monstros, múmias, demônios, zumbis, viúvas em pranto,
sangue fingido escorrendo de facadas falsas, caixão arrastado pelas ruas,
velas, correntes, ossos bovinos. Vão em lento desfile, ameaçando atacar a
assistência, atemorizando as crianças. A passagem do Bloco Os Caveiras é
concorrida e esperada. As máscaras artesanais tem valor folclórico.
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Bois, personagens do Bloco Recordar é Viver, em desfile pela Rua Arthur Bernardes, São João del-Rei, 03/03/2014. |
Referências
bibliográficas
CASCUDO, Luís da
Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro,
[s.d.]. 930p.
CINTRA,
Sebastião de Oliveira. Efemérides de São João del-Rei. 2.ed. Belo
Horizonte: Imprensa Oficial, 1982. V.1, 326p. p.82 e 100.
DANGELO, Jota.
De sambas e sambistas. Gazeta de São João del-Rei, Seção Opinião, Coluna
Pelas Esquinas, ano 1, n.26, 16/01/1999.
_________ Noltalgia. Idem. n.27, 23/01/1999.
_________ Agostinho França. Ibidem. n.29, 06/02/1999.
_________ Escola de Samba. Ib. n.30, 13/02/1999.
_________ Flashes do Carnaval. Ib. n.31, 20/02/1999.
DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca
e Histórica ao Brasil.
São Paulo: Martins, 1972. V.2, n.11, p.219-222.
EDMUNDO, Luiz. O
Rio de Janeiro do meu Tempo. 2.ed. Rio de Janeiro: Conquista, 1987, v.4,
p.767 e ss.
VALE, Dario
Cardoso. Memória Histórica de Prados. Belo Horizonte: [s.n.], 1985.
344p. p.224-227.
Notas e Créditos
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