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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




segunda-feira, 13 de julho de 2015

Bentinhos & Patuás

... e outros objetos da religiosidade popular

A cultura popular possui meandros profundos na religiosidade. Ela envereda pela espiritualidade, pelo misticismo, pela crendice, pela doutrina. Tudo se conflui no mesmo porto da fé, se irmana de tal modo que não dá para separar os elementos pois de fato se fundem num todo. 

A participação frequente nos ritos e celebrações da Igreja não desestimula o povo de suas práticas culturais religiosas caseiras, ancestrais e hereditárias. Assim não dispensam a reza forte, as simpatias, as promessas, a produção de bentinhos. Bentinho é como popularmente se chama qualquer objeto religioso individual para se trazer junto ao corpo, no geral oculto, preceito que garantiria sua eficácia. Um simples paninho bordado ou estampado um símbolo universal como uma estrela é um bentinho, desde que pendurado ao pescoço ou costurado a uma bandeira de folia ou congado, para irradiar luz, trazer boa sorte, abrir os caminhos afastando todos os malefícios. 

Elementos da natureza tornam-se poderosos recursos contra as forças do mal. Trazer no bolso da calça um dente de alho (do roxo é melhor), uma semente de olho de boi, fava de Santo Inácio, fava de Ogum, tento, conta de lágrima, ou uma concha do mar, ou um cavaco de madeira dura como pau-pereira ou candeia, ou ainda uma lasca de cipó (cruzeiro, milhome, azougue, caboclo, de São João, beira-corgo, escada de macaco) ou um pedaço de raiz de para-tudo ou carapiá, ou ainda, quem sabe, um raminho de arruda atrás da orelha, ou de alecrim de horta na bolsa... a tudo isto e muito mais se atribui um caráter protetivo, um poder sobrenatural. 

Alguns objetos gozam entretanto de um prestígio especial pois neles se deposita maior crença de funcionalidade: escapulários, talismãs, amuletos e patuás. 

Dos mais populares é o escapulário. É formado por dois pequenos pedaços retangulares de pano, sobre os quais estão impressos a imagem de um santo (a) e às vezes escudo do sodalício religioso da qual é patrono. Preso a um duplo cordão ou fita, fica uma parte voltada para frente, sobre o peito e outra para as costas, passando ambos os cordões ou fitas sobre a escápula, donde lhe vem o nome, cada cordão sobre um ombro. 

Em verdade pode-se fazer escapulário de qualquer santo mas de fato o mais conhecido talvez seja o do Carmo. Em l6/07/1251, o santo inglês ermitão, São Simão Stock, voltando à Europa de uma viagem ao Monte Carmelo (no Oriente), “teve uma visão de Nossa Senhora, que rodeada de anjos, lhe entregou o escapulário, como distintivo dos carmelitas, com a promessa de que, quem o usasse e com ele morresse, não cairia no inferno. A Irmandade do Escapulário, por ele fundada, acabou fazendo parte da Ordem do Carmo que, graças àquela promessa mariana e ao privilégio sabatino, se espalhou pelo mundo inteiro”, segundo GAIO SOBRINHO (1997). O privilégio sabatino referido diz que o devoto verdadeiro que usar o escapulário e com ele morrer, será resgatado no purgatório pela Virgem, no primeiro sábado após sua morte, aguardando com grande vantagem o juízo final. 

Outros escapulários que gozam de prestígio são o de Nossa Senhora das Mercês e do Sagrado Coração de Jesus. 

Além dos escapulários, medalhas, terços, rosários, cordões... também muito popular é o amuleto - um objeto místico de extrema força espiritual protetiva a quem o usa. O amuleto resguarda, passivamente, sem emitir força externa que possa atingir outrem. Pode ser um objeto qualquer preparado por alguém hábil no assunto: um medalha de santo pode ser transformada num amuleto, uma cruz de raiz de guiné, uma figa, uma ferradura, um pedra, uma concha do mar, etc. 

O talismã não se confunde com o amuleto, embora em si possa ser praticamente idêntico no aspecto mas não na potência. É um objeto místico feito com qualquer espécie de material, desde que energizado com tal força mágica que seria capaz de agir à distância, buscando meios de alcançar um resultado ativo em prol de quem o usa. O talismã basicamente seria o mesmo amuleto, com a diferença que muito bem aponta CASCUDO (1978) de ter força ativa, como se fosse vivo: ele externa seu poder, irradia sob o comando mental de seu dono. O talismã é portanto mais elaborado que o amuleto. 

O patuá é um objeto místico oculto numa pequenina bolsa de pano ou couro costurado em segredo para que ninguém saiba o conteúdo nem a forma como foi feito. O pano virgem, isto é, nunca usado para nada é o mais indicado. Tecido vermelho garante-lhe maior energia, evidente analogia à cor do sangue, símbolo da vitalidade; pano amarelo atrai dinheiro. O patuá é levado na carteira para trazer fartura, é carregado na algibeira, no alforje do cavaleiro, na bolsa da senhora, pendurado ao pescoço por um cordão, é pendurado na parte de traz de um bandeira de grupo folclórico, nalgum ponto da farda do palhaço da folia de reis. Existem composições infindáveis de conteúdo e fórmula de composição, cujo segredo é sempre a garantia absoluta do sucesso. Se alguém descobre o que tem ou como foi feito torna-se inócuo.

Patuás para fartura contém em geral uma moeda, às vezes aquela que foi ofertada num pires ao presépio; outras vezes aquela que por acaso se achou caída na rua; ainda mais, a da simpatia de Santo Onofre (*), protetor dos cachaceiros e santo invocado contra os vícios do alcoolismo: uma moeda é posta no fundo de um pequeno copo de dose de cachaça e é submersa na mesma. O copo cheio de pinga com a moeda no fundo é posto em frente à imagem deste santo. Quando a aguardente se esvai por completo, a moeda é tirada e com ela é feito o patuá. Outras vezes, quando a imagem é pequenina e metálica, o próprio Santo Onofre é imerso no copo de cachaça. É comum pingar uma gota de parafina derretida em cada lado (na cara e na coroa), vela oferecida às almas, que garante abundância. ou ao referido santo.

Outro patuá para fartura é com três caroços de romã, com a respectiva polpa. É parte de uma simpatia muito difundida: no Dia de Reis (06 de janeiro), são reservados nove caroços de uma romã. Três se come, três joga-se para traz por cima dos ombros, sem ver onde cairão e com três se faz o dito patuá. Os engulidos garantem saúde, paz, proteção; os jogados expurgam os males (desde que respeitado o velho preceito de ser por cima dos ombros e de não olhar para traz, sob pena do mal voltar tal e qual a mulher de Ló no episódio bíblico) e os do patuá deverão ser conservados na bolsa de dinheiro até o outro ano, quando então pode ser descartado por um novo. Um patuá pode conter apenas uma medalhinha de santo costurada num pano, mas assim feita fica longe das vistas curiosas e garante maior eficácia. Poderá também conter um papelzinho dobrado diversas vezes que traz escrita uma oração forte, reza brava, que não se pronuncia à toa a não ser nos momentos extremos e não se ensina a qualquer pessoa. 

E vai por aí afora um sem-número de recursos preventivos que demonstram o quanto o elemento popular se preocupa com a invasão do mal, a sua influência perniciosa. Seja nos objetos em contato corporal, praticamente personalizados como os talismãs, seja em contato com a moradia ou com a benfeitoria, como uma ferradura presa na tábua da porta, um chifre de boi na ponta de uma estaca da horta ou mesmo da caveira de cabeça bovina inteira na entrada de um rancho ou curral, ou até na universal cruz nas portões, os objetos protetivos são altamente significativos no âmbito da cultura popular. 

Uma figa entalhada em madeira.
São João del-Rei/MG.

Notas e Créditos

* Os processos religiosos sincréticos aproximam Santo Onofre ao orixá Ossãe, senhor das folhas medicinais das matas. Neste aspecto é atribuído ao santo grande força nas matas. 
** Texto: Ulisses Passarelli
*** Fotos: Iago C.S. Passarelli

Referências Bibliográficas

CASCUDO, Luís da Câmara. Meleagro: pesquisas do catimbó e notas da magia branca no Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Agir, 1978. 208p. p.81.

GAIO SOBRINHO, Antônio. Santos negros estrangeiros. São João del-Rei: [s.n]. 1997. 153p. p.61.

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