Algumas reflexões sobre a preservação do patrimônio cultural
Desde que tomaram corpo, as medidas de preservação do patrimônio cultural brasileiro, tem evoluído ostensivamente, acompanhando a dinâmica dos conceitos que regem esta matéria.
Desta sorte, o conteúdo tradicional, profundamente arraigado, nos remete de imediato, à ideia de preservação dos velhos casarios, dos antigos templos e seu acervo, das vetustas pontes e logradouros, como se de forma intuitiva e eloquente, esses bens edificados nos falassem sobre a necessidade de preservação inquestionável. Como sinais deixados pela cultura das gerações que nos antecederam, o patrimônio material fala por si e salta aos olhos por sua importância cênica. Preserva-lo é algo óbvio. Não restam dúvidas acerca de sua real contribuição para a formação da brasilidade, sendo ao mesmo tempo um reflexo dela. Os modelos e matrizes trazidas pelos povos formadores, amalgamados e transformados sob a técnica do brasileiro, materializaram-se em peças e construções ora admiradas por sua magnitude.
Eis a semente da preservação, impulsionada pelos participantes da Semana de Arte Moderna de 1922, cujos esforços frutificaram pelos anos seguintes, amplificando o clamor dos estudiosos daquele tempo e se coroando de vitória com a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN).
Mais tarde, décadas depois, crescia a premissa de que, muito para além deste patrimônio construído (material), também era patrimônio o conjunto de saberes, os modos de fazer, os locais de cultura, as práticas tradicionais, as festividades. Tal herança cultural foi entendida, que é tão digna de preservação quanto as edificações e objetos. Ela reflete o modo de viver tradicional em comunidade e é neste espírito de sociedade que se reveste de significação e funcionalidade. Portanto, foi necessário também ser abarcada pelos mecanismos preservacionistas. A descaracterização de tais valores implica na perda de referências simbólicas da população que os criou e mantém. Devidamente salvaguardada acompanha a própria evolução cultural desta sociedade.
A nível internacional as discussões se sintonizavam com a abertura do leque preservacionista ao patrimônio não construído, imaterial ou intangível, se consolidou via UNESCO, com as “Recomendação sobre a salvaguarda da cultura tradicional e popular” (Conferência Geral da UNESCO - 25ª Reunião, Paris, 15 de novembro de 1989) e a “Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial” (Paris, 17 de outubro de 2003). A nível de Brasil, a “Carta do Folclore Brasileiro” (I Congresso Brasileiro de Folclore, Rio de Janeiro, 22-31/08/1951, atualizada e revisada no VIII Congresso Brasileiro de Folclore, Salvador, 12-16/12/1995), foi um marco muito significativo desta tendência. A própria Constituição Federal Brasileira (1988) bebendo na fonte das discussões coetâneas, foi muito além das suas predecessoras na amplitude de proposições de guarda do patrimônio como um todo.
Em paralelo se consolidava o entendimento e mecanismos de preservação do patrimônio de forma ainda mais ampla, abarcando as paisagens, por sua significação para além do lado apenas ecológico. A nova visão perpassava pela cultura e sua simbologia implícita, na valoração e peso para a formação da sociedade brasileira, desde tempos pretéritos. Embora o conceito e primeiras medidas já existissem, é em data bem mais recente que se aprimorou a significação amplificada dos chamados “conjuntos paisagísticos”. Eles se somaram ao conceito já sólido de “núcleo histórico”, para envolver o que estava escondido sob as camadas do tempo. Assim, o material arqueológico, móvel e imóvel, igualmente o paleontológico e o espeleológico, foram envolvidos como partes igualmente inalienáveis do patrimônio brasileiro.
A paisagem passa a ser vista e compreendida como um todo: nela está a natureza em sua plenitude! Outrossim, tal ambiente contém os elementos antropológicos e remanescentes arqueológicos, desde os paleoindígenas até os caboclos, referências de povos originários que antecederam à civilização hodierna ou que estão inseridos nela. Na paisagem estão os abrigos e cavernas de interesse para pesquisa da vida destas populações anteriores. Nas cavidades naturais há uma fauna troglóbia, depósitos fossilíferos, vestígios de práticas rituais de outras épocas, matérias do interesse da geologia. Enfim, a visão holística da paisagem só é possível se submetida à multidisciplinaridade. Há uma cultura envolvida e desenvolvida sobre toda esta paisagem, bem como, um sentido sobre aquilo que ela representa para a população local, em sua carga simbólica e identitária ...
Tudo isto estrutura um conjunto paisagístico, seja ele natural, arqueológico, espeleológico ou paleontológico. Na mesma lógica, um núcleo histórico, por exemplo, se vivifica com o patrimônio imaterial ali desenvolvido: uma banda de música em ensaio, dá vida às paredes de pedra e cal de sua sede. Sem a cultura, todo o cenário, por mais belo que seja é mera vitrine de admiração e não ambiente de vivência.
Adensando ainda mais toda esta questão, ganha intensidade no momento o interesse à geodiversidade, como um eco à biodiversidade. Uma e outra demonstrando a complexidade do meio no qual vivemos, contribuindo para dar mais lume aos processos evolutivos da crosta terrestre e consequentemente ao próprio ambiente onde habitamos e desenvolvemos nossas cidades e civilização.
A prática plena dos mecanismos de preservação e salvaguarda de todo este patrimônio cultural é no fundo a conservação do próprio patrimônio humano, que de fato é o que mais importa. O patrimônio é impregnado de memórias e eivado de saberes. É pela dignidade de viver em tão rico ambiente, em equilíbrio e bem estar, que se justifica a causa preservacionista e o desenvolvimento de ferramentas jurídicas para concretizá-la. Cuidar das urbes e sua ambiência é cuidar de nós mesmos. Para além de obrigação, deve ser missão.
A atitude educacional é sempre a via primeira a se trilhar. Constituir a consciência coletiva, que valorize e conserve tudo isto é uma ação permanente e deve ter o alcance tanto mais amplo quanto possível. A vigilância, contudo, por prudência, caminha de parelha, e quando o vaticínio acena ameaçador contra alguma expressão destes valores patrimoniais, entra em cena as medidas legais. O planejamento administrativo, de par com a lei estruturante das medidas cabíveis para cada caso é garantia e complemento ao êxito da educação e da vigilância. A fruição do patrimônio pela geração atual e futuras, como direito legal, se interliga a este conjunto de medidas garantidoras: educação, vigilância, planejamento e legislação.
Para além da punição, as medidas preventivas são sempre as melhores, podendo e devendo o poder público, a propósito, cumprir medidas de reconhecimento do valor do patrimônio e adotar garantias de acautelamento apropriadas.
O patrimônio está em nossas mãos! Serra do Lenheiro, São João del-Rei/MG, Brasil. |
* Texto e fotografia (23/04/2020): Ulisses Passarelli
** Revisão e melhoramentos: 11/01/2024.
Texto bem conciso e explicativo.Data vênia para inserí lo no novo site da Casa Santos Reis em reestruturação
ResponderExcluiragora na extensão .org.a1
Uma honra para mim tê-lo neste site. Agradeço!
ExcluirTexto excelente do sempre brilhante Ulisses Passarelli!!
ResponderExcluirGratidão! Continue acompanhando as postagens.
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