Para participar ou tão somente assistir uma Festa do Rosário é preciso entender a lógica da mesma, segundo a tradição que abarca os congadeiros. Quem não o puder fazer estará perdendo seu precioso tempo... Ou quando muito sentir-se-á atraído por algo supostamente exótico, curioso.
A festa do reinado de Nossa Senhora do Rosário é sobretudo um momento de coesão social, de repartimento das benesses recebidas no decurso do ano. Festejo de gratidão. Festa quebra cotidiano, rompe com o normal, conflitua com o padrão, entra em rota de colisão com o cotidiano. Por isto seu ambiente é outro: clima de festa! É isto que faz a festa ser uma festa e não um momento comum. Se na festa tudo for igual ou no padrão urbano do dia a dia ela não é festa. Seria um arremedo. O evento se destaca pelos atrativos e programação diversificada, no caso, sobretudo de natureza religiosa, pareada com manifestações da cultura popular.
Tal se dá no distrito de São Gonçalo do Amarante, em São João del-Rei, cerca de 18 km a noroeste da sede municipal. Pequena vila do período colonial, chamada primitivamente São Gonçalo do Brumado, mais tarde renomeada para Caburu. De vida rural típica, calma, tradicionalista, pautada na atividade agropecuária de subsistência, o distrito pratica tradições as mais variadas, a maioria já em ocaso, mas de quantas existem, a prática do congado é a mais forte, atingindo seu máximo na Festa do Rosário.
O congado local é do tipo congo(*), e segundo a tradição oral persiste já a mais de um século. Sua festa é feita via de regra em outubro, há muito fixada no segundo domingo do mês, como dia maior consagrado a Nossa Senhora do Rosário. A preparação da festa envolve vários momentos. O congo como protagonista do evento sagrado, através de suas lideranças, cuida de um sem fim de detalhes.
Em outras postagens deste blog já constam informações da estrutura festiva, razão pela qual, ora o foco será na questão alimentar, deixando o restante apenas para o registro fotográfico.
Alguns dias antes, o festeiro e sua equipe de ajudantes, se resguarda da preocupação de garantir o alimento necessário à fartura festiva. A arrecadação / compra de mantimentos deve contemplar para além dos grupos (ternos de congado) visitantes confirmados, porque não é raro um congado não confirmar mas vir, e é preciso estar pronto para alimentar os congadeiros.
Um dos tópicos pertinentes é a produção caseira de quitandas (biscoitos e broinhas), a nível familiar, acondicionados corretamente e com higiene até o dia maior da festa. Tanto mais, o café da manhã se completa com pães trazidos da cidade. O café transcorre com muita tranquilidade, até porque os grupos participantes são relativamente poucos e vão recebendo a alimentação à medida que vão chegando à festa. Mas o espírito de confraternização é o mesmo, forte, evidente.
Para a alimentação é montado na lateral direita da igreja, sob a perspectiva do observador, um pequeno barraco de bambu e cobertura de lona plástica. Tem segurança em seus amarrios e encaixes, até porque é leve. Sob ela postadas em pequenas mesas, o alimento a servir. A fila se forma, os congadeiros vão passando e recebendo o alimento.
No almoço o esquema é idêntico, mas a fila se faz maior, porquanto, todos os grupos já chegaram, também vários visitantes e até alguns moradores, que acabam comendo junto também, pois a ideia é congregar e não deixar desperdício do alimento feito. Ao pegar seu alimento a pessoa se posta livremente na lateral externa ao adro, gramada, sob sombra de árvores e o costume é mesmo sentar-se ao chão, sobre a grama limpa, livremente, dentro daquilo que já se frisou de quebrar a rotina. Aparenta um grande pique-nique e nisto reside uma peculiaridade local, aceita, praticada há muito, e bastante singular por fazer parte da tradição são-gonçalense.
Por vezes ao público externo pode causar estranheza tamanho bucolismo, mas ele é perfeitamente aceito e praticado pelos locais e congadeiros em geral, que não se queixam ou sofrem com desconforto ou falta de higiene, que de fato não há. Experiências de anos anteriores de posicionar o alimento na área escolar ou outra foram frustrantes, em razão da exiguidade do espaço, aí sim gerando o efeito do desconforto.
É preciso - essencial em verdade - se transportar ao âmago da tradição congadeira para a entendê-la de fato e dela participar. E mais que isto: se contextualizar à realidade estrutural e possibilidades práticas de cada lugar, sem desvirtuar o costume local, desde que não fira a segurança das pessoas. A alegria do compartilhamento na Festa do Rosário remete ao costume herdado da tradição cultural afro, base estruturante da cultura popular pertinente a esta festa. Conservá-la e prestigiá-la é salvaguardar esta raiz cultural e identitária.
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Vista posterior da Igreja de São Gonçalo do Amarante. |
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Pichorra: bexiga cheia de guloseimas aguardando ser rompida
para alegria da criançada - tradição ibérica. |
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Na véspera, a gincana toma conta do largo para alegria da criançada.
É parte das comemorações do dia das crianças. |
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Balanço - tradicional brinquedo infantil. |
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Após as gincanas da véspera, distribuição gratuita de bolo. |
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Último ensaio dos congadeiros, na véspera do dia maior. |
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Logo cedo, pessoas se juntam para limpeza do largo. |
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Na cozinha o alimento é preparado com esmero:
lavagem das verduras. |
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Além de tempero e higiene, muito carinho é o ingrediente fundamental. |
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Montando a barraca de alimento. |
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Preparando a cobertura. |
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O congo na porta da igreja. |
Notas e Créditos
* Congo: ao iniciar minhas pesquisas naquele distrito, em 1992, ouvia sempre as pessoas chamarem o congo de reinado. Dançar o reinado; tocar no reinado. Sobretudo as pessoas mais idosas usavam esta palavra neste contexto. Em paralelo corria o nome "congo-cacique" e ouvia dizer que tinha influência de índios, vinha "do começo do mundo"... Para tempos mais recentes é corrente a designação popular "congo-vilão", inclusive inscrito na bandeira. Os demais nomes estão em crescente desuso. É preciso frisar que o congado local absolutamente nada possui de mínimas características de um vilão típico, como os ocorrentes no centro-oeste e oeste mineiro.
** Texto, fotografias (12 e 13 de outubro de 2019) e acervo: Ulisses Passarelli
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