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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




sábado, 29 de abril de 2017

Pequeno glossário de alguns terreiros de São João del-Rei


Nesta postagem ousamos, muito respeitosamente, selecionar uma centena de palavras e expressões habitualmente usadas em algumas tendas e terreiros de São João del-Rei. É preciso inicialmente entender que elas fazem parte propriamente de uma linguagem popular, contudo típica do ambiente dos trabalhos espirituais. Isto não as torna exclusivamente ritualísticas. Se referem a elementos correlatos ao ritual, mas são parte da dinâmica coloquial da linguagem. 

Por isto, em momento algum houve preocupação de especificar o terreiro onde foi ouvida; tão pouco a doutrina específica daquela casa, pois há uma grande circularidade nestas gírias, termos, expressões e alcunhas entre diversos terreiros, carreados por participantes a elas afeitos, quando de visitas e participações. Assim sendo, elas ganham maior dimensão e são incorporadas por alguns umbandistas e quimbandeiros, e eventualmente candoblecistas e de uns e outros não raro passam a integrar o repertório dos consulentes. A própria influência mútua entre as várias religiões faz com que haja a citada circulação do palavreado. 

No mais há outro aspecto: se de fato faz parte da linguagem típica, por outro lado não lhe é exclusiva. Algumas destas palavras caem no uso comum fora da comunidade dos terreiros e passam a ter uso bem mais amplo. Contudo, a recíproca também é verdadeira. 

Por tudo isto não houve como diretriz da escolha das palavras deste pequeno glossário, a menor intensão de focar em um único terreiro, tão pouco em incluir palavras exclusivas do vocabulário ritualístico. Não interessa para os limites desta postagem o significado da palavra ebó, por exemplo, ou amalá, ou assentamento. Elas tem uso limitado à religião não à cultura popular associada. Da mesma sorte e por coerência de raciocínio, se fica esclarecido que “compadre” é alcunha de exu, isto basta para a proposta deste blog. Explicar quem é exu e seus atributos é coisa de um estudo religioso ou antropológico e isto já nos extrapola. 

Esteja claro também que esse uso comum de tal vocabulário não está a rigor cerceado pela corrente doutrinária desta ou daquela umbanda: não é limitada à umbanda tradicional ou à traçada ou à esotérica... Repetimos a palavra circularidade, sem rigor, embora possam haver tipicidades específicas. No mais, embora não tenhamos cotejado este vocabulário com o equivalente de outras regiões nacionais, é bom possível, pelo menos no campo hipotético, que muitas destas palavras tenham vasto uso em outras áreas nacionais e eventualmente significados distintos conforme a influência cultural de cada zona geográfica. Outrossim é preciso destacar que seu uso não se restringe a São João del-Rei no Campo das Vertentes, pois várias destas palavras e expressões já as ouvimos em municípios vizinhos, ainda que a coleta para efeito desta postagem tenha sido feita apenas em terra são-joanense.

É mister observar que a linguagem em questão se reveste de ricas figurações, alegorias, que a tornam especialmente interessante para o estudo. Assim, por exemplo, as designações temporais: tempo grande, tempo roxo, trinta tempos... (*) revelam uma forma de interpretação de fenômenos naturais à moda da cultura popular. Outras nitidamente são africanismos ou pelo menos tiveram sua influência: malungo, quizila, malême... Esta parcela denota a resistência cultural de nossa formação étnica. 

O intento é o mero registro cultural, etnográfico e linguístico. Repetimos que não tem finalidade religiosa e aliás, é mister destacar que não pode ser usado como parâmetro de evolução ou estado doutrinário da religião. Como a linguagem é algo muito dinâmico, mutável, esperamos com este humílimo registro deixar consignado para estudos futuros a pequena listagem que se segue.

*  *  *

1.     Agô – desculpas, perdão, misericórdia.
2.     Água forte – álcool, usado externamente em certos descarregos e trabalhos.
3.     Amaci – esfregaço de ervas próprias numa bacia com água para se lavar a cabeça e assim buscar sintonia com as entidades espirituais; “amanci”; banho de cheiro.
4.     Areia doce – açúcar.
5.     Areia salgada – sal de cozinha.
6.  Boca mole – negro velho, referência à fala custosa desses guias, de pronúncia geralmente lenta, cheia de palavras diferentes.
7.     Burro – aparelho espiritual, médium de incorporação, geralmente em linguagem de esquerda.
8.     Cafioto – criança.
9.     Calunga grande – oceano; local onde muita gente morreu afogada.
10. Calunga pequena – cemitério; campo santo.
11. Calunguinha – igreja (no passado havia enterramentos nas igrejas).
12. Cambureco – criança.
13. Canela – vela.
14. Cangira – gira; ingira; sessão; cerimônia. Cangira de baianos: trabalho dos guias baianos; cangira de boideiros: trabalhos dos guias boiadeiros.
15. Cavalo – aparelho espiritual; médium de incorporação, geralmente em linguagem de direita.
16. Cazuá – casa, habitação, construção. “Canzuá”.
17. Comida de Oxóssi – expressão figurada e poética, que não se refere propriamente ao alimento ofertado ao orixá, mas sim às chuvas que caem entre o Dia de Reis (06 de janeiro) e o Dia de São Sebastião (20 de janeiro), tida como especialmente abençoadas. Nesta última data muitos terreiros festejam Oxóssi, em razão do sincretismo com o santo católico.
18. Compadre – exú. Um tratamento intimista, nem por isto desrespeitoso; “meu compadre”.
19. Cortar – sacrificar um animal.
20.Criança – alcunha corriqueira aplicada aos erês, por terem esses guias comportamentos infantis quando incorporados. Habitualmente se diz “meninos” e “meninas”, conforme a roupagem espiritual que assumem em sua manifestação.
21. Cumba – feiticeiro; mandingueiro.
22. Cumbara – terra, no sentido de rincão, cidade. “Nesta cumbara”: nesta cidade; “cumbara distante”: outra cidade.
23. Curimba – canto sagrado ritualístico; ponto cantado; evocação.
24. Curuto – charuto.
25. Dendê – feitiço; mistério espiritual. É uma extensão alegórica absorvida do sentido típico da palavra, um coco africano, cujo óleo é usadíssimo na cozinha ritual. Muitas comidas oferendadas às entidades são regadas ou cozidas a azeite de dendê, que confere axé ao alimento. “Tem dendê...”: tem um mistério envolvido.
26. Derrubada – ação de derrotar um inimigo através da manipulação de forças espirituais. Derrubar através de trabalhos de terreiro.
27. Despacho – ato de despachar algo indesejado ao rito do terreiro; ação de por para fora do terreiro um objeto, velas, alimentos... com o objetivo de retirar do local ou do caminho de um consulente uma determinada entidade.
28. Direita – designação muito arraigada de uma divisão prática das linhas de trabalho da umbanda. Habitualmente formam o que se chama “povo da direita” ou “linha branca”, com características comportamentais, doutrinárias e campo de ação mais ou menos correlatos: negros velhos, caboclos, erês, baianos, marinheiros, boiadeiros, orientais.
29. Dongo - dinheiro. O mesmo que "zimba". 
30. Egum – derivação da palavra africana egungum, que tem hoje nos terreiros o sentido genérico de alma, os mortos, ou especificamente corresponde ao que a cultura popular chama de almas penadas. A conotação hodierna afastou-se um pouco da concepção original da palavra.
31. Entrega – como o nome indica é algo que se entrega a uma entidade: bebida, cigarro, alimento, objeto. O material entregado é a parte material de um pedido. “Arriar uma entrega”: coloca-la no ponto de força da entidade, na sua área de domínio: encruzilhada, estrada de terra,  montanha, etc. Diferencia-se do despacho por não ter o sentido de indesejável e da oferenda por ser esta propriamente um agrado, uma homenagem ou presente. A entrega tem um objetivo específico a ser alcançado, externado no pedido mental ou verbal a uma entidade e pode ser por ela pedido ou inspirado no subconsciente.
32. Escora – exu guardião.
33. Espumante – champanhe; vinho branco doce gaseificado.
34. Esquerdas – designação muito arraigada de uma divisão prática das linhas de trabalho da umbanda. Habitualmente formam o que se chama “povo da esquerda” ou “linha vermelha”, com características comportamentais, doutrinárias e campo de ação mais ou menos correlatos: exus, pombas-giras (bombogira), mirins (exu-mirim e pomba-gira mirim), malandros e conforme a doutrina específica, também ciganos e cangaceiros. São os guias da banda virada ou guias da esquerda.
35. Flor de Omulu – pipoca, usada em oferendas e descarregos.
36. Fundenga – pólvora.
37. Gafanhoto – criança, geralmente no linguajar de esquerda.
38. Guaraná – qualquer refrigerante, independente de ser exatamente de guaraná.
39. Homem – exu. “Homem da meia-noite”: expressão arquetípica, que induz ao pensamento um exu eivado de mistérios.
40. Homem da capa preta – juiz; promotor.
41. Homem da letra bonita – advogado.
42. Homem de saia – padre.
43. Homem do grito – caboclo.
44. Homem que grita alto – pastor.
45. Hora grande – momento da morte.
46. Índio – caboclo.
47. Ingira – trabalho ou sessão; corrente mediúnica em uma determinada linha: “ingira de marinheiros”; o mesmo que cangira ou simplesmente gira.
48. Ingoma – o local do terreiro onde ficam os médiuns da corrente, separados da assistência, onde ficam os consulentes e visitantes.
49. Labutar – trabalhar, tanto no sentido de estar em um serviço quanto em sessão espiritual, na cerimônia.
50. Lume – vela.
51. Macaco – policial, numa gíria arcaica.
52. Maleme – desculpas, perdão, misericórdia. "Malenga". 
53. Malungo – africanismo: companheiro, colega. Sofre corruptela para “marungo”.
54. Marafo (ou marafa) – cachaça. Palavra muito arraigada, seu uso por vezes extrapola o ambiente dos terreiros, onde é típica.
55. Marafo bravo - whisky
56. Marafo forte - conhaque
57. Marechal de Guerra – título aplicado ao orixá Ogum, que se acredita ter sido guerreiro invencível.
58. Matracar – falar, contar algo. Deriva de matraca, instrumento de madeira, barulhento. Bater a matraca, fazer barulho. “Matacar” é corruptela comum.
59. Menga – sangue.
60. Mironga – firmeza de mistério, que não se revela a ninguém. Ter mironga: trazer consigo um patuá ou amuleto; saber como fazê-lo; saber um rito que outros não sabem.
61. Moca – café.
62. Moça – expressão eufemística e carinhosa aplicada às pombas giras.
63. Mulher – pomba gira.
64. Oferenda – oferta de velas, objetos, alimentos, bebidas a um dado orixá ou guia, geralmente em ocasiões festivas ou como sinal de gratidão.
65. Pai Véio – negro velho.
66. Panado – qualquer pano; toalha de bater cabeça; cortina do gongá.
67. Pedra de raio – artefato lítico de origem indígena; machadinha indígena de pedra; meteorito.
68.Pemba – genericamente, qualquer giz; especificamente, um giz próprio, ritualístico, confeccionado de modo a atender com exatidão os preceitos necessários para riscar um ponto.
69. Penosa – galinha.
70. Perna de calça – homem, no sentido de pessoa do sexo masculino, não no sentido de exu.
71. Ponteiro – punhal.
72. Povo – no sentido material refere-se aos parentes, familiares; no sentido espiritual corresponde à egrégora de espíritos que acompanham o médium. Assim, a expressão “seu povo”, para ser corretamente entendida, deve ser contextualizada.
73. Povo da encruza – os espíritos que tem domínio ou ponto de força nas encruzilhadas. Por força de hábito e genericamente se refere aos exus e pombas giras, embora nem todos sejam esquerdas de encruzilhada.
74. Povo da Calunga - os espíritos que tem domínio ou ponto de força nos cemitérios. Por força de hábito e genericamente se refere aos exus e pombas giras, embora nem todos sejam esquerdas de campo santo.
75. Povo das campinas – os espíritos que tem domínio ou ponto de força nos campos, pradarias. Por força de hábito e genericamente se refere aos boiadeiros.
76. Povo das matas - os espíritos que tem domínio ou ponto de força nas florestas. Por força de hábito e genericamente se refere aos caboclos.
77. Povo de rua - os espíritos que tem domínio nas ruas e não propriamente nas encruzilhadas. Por força de hábito e genericamente se refere aos malandros.
78. Pula-pula – congado. "Mexe-mexe". 
79. Quiumba – casta temida de espíritos desprovidos de luz e doutrina, capazes de atos maléficos.
80. Quizila – ojeriza, desentendimento, desarmonia entre médiuns ou entre mediuns e guias, naturalmente por alguma imprudência tomada por desrespeito.
81. Rabo de saia – mulher, no sentido de pessoa do sexo feminino, não no sentido de pomba gira.
82. Rabudo – exu. Termo pejorativo eivado da equivocada concepção oriunda de antigos missionários, que equipararam indevidamente exu a satanás.
83. Rebanho – conjunto de pessoas sobre a proteção de um orixá, guia, dirigente espiritual ou templo.
84. Rei Chefe da Umbanda – título aplicado a São Miguel Arcanjo, considerado supervisor geral da umbanda.
85. Riscador – giz; caneta; lápis.
86. Risco – escrito.
87. Rodador de borracha – carro; veículo. Referência aos pneus.
88. Roncador –suíno. “Carne de roncador”: bife ou pedaço de carne de porco.
89. Roupa branca – médico. Por vezes se diz, “roupa branca da Terra”, médico encarnado, doutor terreno; “roupa branca do espiritual”, médico desencarnado com licença de intervir nas doenças de modo curativo; espírito da chamada corrente médica do espaço, que se atribui a chefia ao Dr. Bezerra de Meneses.
90. Sangue de Cristo – vinho tinto.
91. Sete tempos – uma semana.
92. Tempo curto – um dia.
93. Tempo grande – um ano.
94. Tempo roxo – período da quaresma e Semana Santa, que muitos médiuns se recolhem dos trabalhos espirituais ou trabalham de forma diferenciada.
95. Traçado – bebiba que consiste na mistura no mesmo recipiente de cachaça e cerveja.
96. Trinta tempos – um mês.
97. Vale – cidade; região habitada.
98. Virada – momento da meia-noite, que reconfigura os procedimentos da sessão que o ultrapassa.
99. Vovô / vovó – negro velho / negra velha como espíritos guias de sua prestigiada linha trabalho. 
100. Zóio vermelho – idem. Ter os olhos com esclera avermelhada indica na crença corriqueira dos terreiros em apreço elevada sintonia e sabedoria dos mistérios espirituais. Por extensão e pejorativamente se equivale a feiticeiro. 




Notas e Créditos


* Texto: Ulisses Passarelli
** Fotografia: Iago C.S. Passarelli
*** Sobre as relações do tempo com a cultura popular leia neste blog a postagem:

A LINGUAGEM DO TEMPO 

Um comentário:

  1. Caro Ulisses,
    Belíssimo trabalho e belíssimo registro.
    Muitas palavras e expressões transcendem tempos e espaços, registrar é fundamental.
    Parabéns e gratíssimo por compartilhar elementos tão sublimes de nosso Patrimônio Imaterial.
    Receba meu abraço fraterno e amigo, Luiz Cruz

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