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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Cultura florida: as flores no folclore e na religiosidade do povo

As flores estão em toda parte, na zona urbana e rural. Desde jardins, praças, alamedas, vasos... até a situação nativa, no habitat, nas matas, nos campos e nas serras. Acostumamos a vê-las e na faina diária dos afazeres, poucas vezes paramos para contemplá-las ou notar seus usos que extrapolam a mera ornamentação.

É fato que a cultura popular absorveu o tema das flores, não apenas por sua óbvia poética, pois povoa uma infinidade de versos recitados e cantados; também adquiriu alguns elementos religiosos. Invadiu o universo simbólico do folclore e mesmo mais prático, ou físico, como no caso dos usos como remédio.

Interessante notar que o processo construtivo desse saber envolveu de fato as mais diversas fontes étnicas mesmo com as flores não nativas, importadas da Europa, por exemplo, e aqui ganharam a cor local das tradições. A arnica do Velho Mundo não corresponde às nossas Lychnophora. Mas alguns usos ou indicações populares se equivalem. Outras mais, da mesma procedência, aqui no Novo Mundo tornaram-se flores votivas de orixás africanos, aclimatados no panteão dos nossos imensuráveis candomblés e umbandas. 

Das margaridas e outras compostas o povo viu na disposição de sua inflorescência o formato ou desenho de um sol, daí dizer-se que é uma flor solar. Disso resulta a crença que ter margaridas no jardim traz bons augúrios, iluminação, positividade. Com o girassol o raciocínio é o mesmo. A artemísia, como miniatura tem igual sentido e encontra uso nas beberagens contra cólicas e enxaquecas. 

Sobre as rosáceas foi construída uma rede de saberes. As de flores amarelas são procuradas e queridas por se crer que tê-las plantadas garante fartura para o lar. É óbvio a analogia do amarelo de suas pétalas com o dourado do ouro. Quanto mais vigorosa e florífera, tanto maior o potencial para se conseguir melhorias financeiras. Compõe também oferendas e firmezas para Oxum nas cachoeiras*. As rosas brancas tem grande popularidade. As típicas são via de regra oferendadas a Iemanjá; outras variedades tem uso para banhos de firmeza da linha dos negros velhos e ainda para uso na medicina popular, atribuindo-se-lhes poder calmante, depurativo e desinflamatório para males uterinos e por isto o povo consome a flor in natura como salada ou usa de seu esfregaço em água para se beber aos poucos, ou mesmo após fervura. Já as rosas vermelhas nos terreiros umbandistas tem uso mais limitado ao campo de atuação espiritual de Bombogira (Pomba Gira, diz-se habitualmente) e das Ciganas, para os mais diversos trabalhos e não apenas aos de natureza amorosa como muitos supõe. A variedade "Príncipe Negro" é reputada como a de maior energia espiritual. Além da tradição religiosa afro-brasileira, todas as rosas são consideradas flores especiais consagradas a Nossa Senhora do Rosário, sobretudo as de flores cor de rosa, cor atribuída ao manto da Virgem Maria. Nas procissões da inolvidável padroeira seus andores via de regra vem repleto dessas flores e na chegada à igreja, em plena empolgação, logo os populares acorrem a retirá-las levando-as consigo para usos que superam a finalidade estética: por serem abençoadas transmitem esta bênção de forma duradoura a quem as conservar ou dão matéria-prima para remédios. Debaixo das roseiras se enterra o umbigo dos recém-nascidos. A sua sombra se reza para o anjo da guarda. Ter sobre a cômoda do dormitório um souvenir em forma de rosa, feito de prata, é elemento propiciador de boa sorte e prosperidade. 

Em verdade um grande número de outras flores são votivas de orixás e oferendadas a diversas entidades, variando também com influências regionais: manacá (para Nanã), trombeteira ou saia branca (para exus), crisântemos brancos (para hindus), marcela do campo (para boiadeiros), colônia (para Iemanjá), etc.

Sobre as orquídeas outra postagem deste blog já se dedicou, cuja leitura sugerimos por complemento. 

Das amarilidáceas o destaque é o lírio de São José, que no interior os devotos ofertam ao protetor dos carpinteiros. Na frente de sua imagem uma jarra com estas flores o ornamenta; no seu andor um lírio é posto à sua mão. Mesmo na imaginária tradicional é típico a imagem deste santo ter um lírio branco nas mãos. Parece uma sobrevivência extraordinária da narrativa apócrifa de seu casamento com a Virgem Maria. Segundo o Papiro Bodmer, entre os pretendentes, uma vez submetidos à prova da escolha imposta pelo sacerdote judaico, inesperadamente do bastão do carapina José saiu um pomba, fato tido como sinal divino de sua eleição para esposo. Acredita-se que houve aproximação deste episódio com o do florescimento da vara de Aarão, narrado na Bíblia Sagrada, Livro dos Números, capítulo 17, versículos 14-25. Um lírio africano, o Crinum scabrum introduzido no Brasil é cultivado nos jardins sob o nome de lírio de Ogum, cuja cor branca e vermelha contribuiu para a terminologia. As açucenas são votivas dos caboclos de Oxóssi. 

Um costume bastante arraigado é lançar pétalas sobre os andores quando de sua passagem sob uma sacada de sobrado ou qualquer elevação. A procissão se interrompe, os carregadores voltam o andor na direção da pessoa que faz aquela singela homenagem. Diz-se que o santo "está dando a graça". E o devoto lança sobre a imagem uma chuva de flores e papel picado. Quando isto acontece nas Festas do Rosário, logo os congadeiros se põe a cantar:

"Lá do céu tá caíno fulô!
Lá do céu tá caíno fulô!"

"Fulô" é corruptela de flor. "Fulôre", "flôre"...

No desativado grupo de pastorinhas que havia no Conjunto IAPI, Bairro das Fábricas, em São João del-Rei, havia a cena dramática do Despertar das Flores: quatro crianças representavam as flores, com trajes típicos que lhes evocavam as principais características _ três meninas faziam a sempre-viva, a rosa e margarida; um menino fazia o jasmim. Aparecia uma garota em trajes de fada, com uma vara de condão e após recitativo de apresentação, tocava a cabeça de uma criança que simulava um flor em letargia, abaixada no chão. A flor se erguia, como que despertando ou desabrochando e recitava seu verso. E assim com cada uma até que a fada convidava a todas para cantarem um hino ao Salvador. Além desta encenação, possuía os personagens Jardineiro, Florista e Floreira!

O tema das flores é vastíssimo e universal. A mitologia e as crenças clássicas o conhecem _ a flor de lótus, a flor de lis. Tematiza elementos da heráldica e da numismática; povoa narrativas populares e versos cantados; é matéria-prima para remédios ** e firmezas. Seu tema é parte do rico folclore e das tradições religiosas do Campo das Vertentes e de São João del-Rei, donde procedem estas informações.

1- Artemísia, popularmente, "artimijo": matéria-prima para remédios populares. 15/02/2008. 
2- Rosa Príncipe Negro: para trabalhos espirituais fortes. 29/10/2009.

3-  Rosa vermelha de cacho: para firmezas e trabalhos. 29/10/2016.

4- Rosa branca de cacho: para banhos de descarrego e banhos de firmeza. 22/05/2009. 

5- Rosa branca de remédio: uso na terapia empírica da tradição popular. 29/10/2016. 

6- Lírio de Ogum. 10/12/2013.

7- Açucena clara. 31/03/2009. 
8- Açucena escura, 25/11/2016. 

9- Lírio de São José, em vista frontal e lateral.
04/03/2008. 


10- Vista parcial do interior da Capela-oratório de Nossa Senhora da Piedade
com ornamentação floral de rosas. São João del-Rei. 18/04/2014.
 
11 e 12- Capela de Nossa Senhora da Conceição (vista e detalhe) 
observando-se no frontispício, sobre o portal, o elemento decorativo em forma de vaso de flores.
Capela do Saco (Carrancas/MG), 2012. 

13- Detalhe do altar lateral da Igreja de São Gonçalo do Amarante, no
distrito de São Gonçalo do Amarante (São João del-Rei), com pintura
de elementos florais. 12/10/2014.

Referências Bibliográficas


MORALDI, Luigi. Evangelhos Apócrifos. São Paulo: Paulus, 1999. 393p. Natividade de Maria: Papiro Bodmer, p. 61-90

PASSARELLI, Ulisses. Pastorinhas de Dona Glorinha. Revista Mineira de Folclore, Belo Horizonte, Comissão Mineira de Folclore, n.18, novembro/1997. 207p. p.184-200. 

Notas e Créditos

* Oxum do Ouro é sincretizada com Nossa Senhora da Conceição ou com Nossa Senhora Aparecida;
** Remédios: este blog desaconselha o uso de qualquer remédio sem pleno conhecimento de seus efeitos, da matéria-prima e do modo de fazer. É sempre um risco para a saúde. O registro nesta página tem finalidade meramente cultural, etnográfica.
***Texto e fotografias (1 a 12): Ulisses Passarelli
**** Fotografia 13: Iago C.S. Passarelli

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