O ouro é um metal de transição de
grande densidade, considerado nobre, de propriedades extraordinárias,
resistente ao ataque de muitos reagentes químicos e à oxidação. Conserva seu
aspecto de pureza e por isso mesmo é símbolo da durabilidade, da permanência. Não
é por acaso que as alianças de casamento são feitas deste metal.
Na
tabela periódica de elementos químicos é simbolizado por Au, iniciais de seu nome em
latim, aurum, donde derivam
palavras como auréola, áureo, aurora, aurificação, aura, todas alusivas à cor
dourada luzidia.
Seu uso pela humanidade vem de
tempos imemoriais, nas mais diversas civilizações e o encanto do ser humano por
ele, atrelado à cobiça, não esmorece com o tempo. Ouro sempre enche os olhos. O
homem comete loucuras por este metal, povoa regiões inóspitas e longínquas em
espírito aventureiro movido pelo desejo desenfreado do poder, do enriquecimento,
à custa de sua extração.
Influenciou as mitologias, as
lendas e as crendices, desde os tempos pré-bíblicos. Do mundo grego ouvimos as
histórias do Rei Midas, que tudo que tocava tornava-se em ouro, verdadeira
maldição; ou ainda o Velocino de Ouro, uma pele ovina cuja lã era toda de ouro,
de uma riqueza imensurável, procurada por Jasão e os Argonautas; ou o ouro dado
por um dos Magos a Jesus, conforme o texto bíblico do Evangelho de Mateus. De
geração em geração a cultura do ouro chegou ao Novo Mundo e ganhou esperança
sobre velhos sonhos de riqueza, como o El Dorado, ou a nossa
Vapabuçu, cobiçada pelos bandeirantes, ou a Serra Pelada da década de 1980. O
ouro reluzente nas igrejas coloniais é ainda a antevisão desse esplendor tão
sonhado, sacralizado e dramatizado. Retrato fiel do céu idealizado, como
um palácio esplendoroso, promessa de futuro para o fiel seguidor.
Tal se deu nessas minas, que em geral tinham de
tudo. Não poderia ter nome mais propício: Minas Gerais! Batida a força da
resistência indígena, sob a atroz descarga dos velhos arcabuzes e bacamartes, a
terra foi tomada à força, rasgada, ferida, escalavrada como quem risca um
ancinho no solo... O ouro de aluvião girou em voltas centrípetas até dourar o
fundo da bateia. A notícia correu. Aqui no Morro das Mercês se achou ouro pela
raiz do capim! Assim o disse José Mattol. Logo ali, numa lagoa em Tiradentes,
pepitas grandes como grãos de canjica... Gente veio de todo lado: de mais ao
norte, das bandas fluminenses, do reino... Povo emboaba, em refrega com os
paulistas descobridores pelo domínio minerador e político. Guerra dos Emboabas.
Essas velhas cidades mineiras viram isso tudo.
Leitos de córregos foram remexidos na busca do fulvo metal. As pedreiras
serranas foram alvo de escavações: ponteiros, talhadeiras, almocafres, picões,
alavancas, picaretas cortaram rochedos com muito sacrifício do braço do homem
escravizado para enriquecimento do senhorio e pagamento do maldito imposto da
coroa portuguesa, o quinto, gatilho que disparou o movimento da Inconfidência
Mineira. Betas, mundéus, regos pequenos ou gigantes como o Canal dos Ingleses na
Serra do Lenheiro, cascalheiras (também numerosas na Serra de São José), grupiaras,
canoas, socavões, são ainda hoje testemunhos daquele tempo, estruturas do
patrimônio minerário, coetâneas para são-joanenses, tiradentinos e pradenses.
Também em localidades vizinhas, no século XVIII, o ouro foi o foco da economia:
Conceição da Barra de Minas, Lavra do Córrego do Cravo (em Nazareno), Córrego
(em Santa Cruz de Minas), Bichinho - atual Vitoriano Veloso (em Prados), Cuiabá
e Canjica (em Tiradentes). Ouro se tirou em São Miguel do Cajuru, São Gonçalo
do Amarante, Brumado de Cima e até no Bairro Matosinhos (em São João del-Rei).
Ouro saiu do Tanque – atual Vila Fátima (em Coronel Xavier Chaves) e de Lagoa
Dourada _ o próprio nome um atestado da riqueza encontrada pelos pioneiros.
O ouro foi a semente da qual brotaram essas
localidades e muitas outras. Se não a semente, o adubo que impulsionou o
crescimento. A atividade em redor de sua intensa e rude exploração centralizava
tudo. A terra foi varrida do amarelo, e logo se esgotava. Outros rumos foram
tomados para a sobrevivência. Novas vocações os habitantes tiveram que
descobrir para romper até o dia de hoje. Quando ele escasseou, o povo descobriu
novas fontes para mover a economia e outros mais, migraram, foram povoar as vastidões
a oeste (nas cabeceiras do São Francisco), para lidar com o gado, ou para a
Zona da Mata e interior fluminense, derrubar florestas virgens e plantar café.
E junto levaram a cultura das Vertentes, que naquelas novas terras se mesclava
ao que lá já havia e gerava variantes magníficas do rico folclore brasileiro.
Mas se a febre do ouro passou há mais de dois
séculos, a marca dourada ficou na cultura mineira e nessa Microrregião de São
João del-Rei de maneira muito especial. E se revela em sutilezas.
Ourivesaria é o ofício de trabalhar o ouro, fazer
joias. Divulgadíssimo outrora é hoje bem menos comum. Seu praticante é o
ourives. Verdadeiros artistas, profissionais habilidosos que fizeram joias
esplendorosas com técnicas artesanais, ainda hoje visíveis como relíquias
familiares e como adornos de imagens de santos dos séculos XVIII e XIX, sobretudo
_ coroas, resplendores e cetros. É natural que fosse mais frequente nas regiões
tradicionalmente mineradoras, como no Campo das Vertentes. O serviço
equivalente em prata é a prataria, também conhecido por aqui, que alcançou
desenvolvimento considerável em Tiradentes.
Quando alguém ao andar tropeça sem razão aparente,
crê-se que naquele exato local há ouro não explorado. Diz então o povo em tom
meio reticente: "tem ouro aí...", ou como pergunta: "tem
ouro escondido?" (subentendido: nesse lugar).
O velho costume de usar "dentes de ouro"
arrefeceu diante da odontologia estética, desenvolvendo em tempos hodiernos
resinas compostas e compômeros que reproduzem com elevada perfeição a aparência
dentária original. Porém, a incrustação, a faceta ou mesmo a coroa de liga de
ouro ainda tem seu lugar e muitos ainda se comprazem em sorrir largamente
ostentando um laivo dourado. É o ponto extremo: o ouro no próprio corpo toma
parte do ser.
"Dentinho de Ouro!
Adornado de marfim!
Negro velho gosta de congo,
morena
gosta de mim, ai, ai"
Ainda hoje, assim cantam nossos congadeiros do
catupé, como observado em São João del-Rei e imediações. Dançantes, aliás, que
tem uma expressão curiosa, "é ouro só", que equivale a um
demonstrativo de qualidade extrema, caráter irrepreensível, excelência:
"_ Ô rainha de ouro ...
_ É ouro só!
_ Toda roupa que senta nela ...
_ É fita
só!
Êêêh... marra a fita no tundá,
BIS
pro
cabelo o moço dá!"
Tundá era parte da vestimenta feminina de outrora: um
enchimento discretamente posto pelas sinhazinhas na parte de trás do vestido,
para salientar a sensualidade do traje; anquinha, acima das nádegas. Sua
referência no verso testemunha a antiguidade deste canto [1].
Ainda dos congados regionais:
"Estrela d'alva alumiô,
a coroa
do rei é ouro só!" [2]
"_ A coroa do rei ...
_ é ouro só! [3]
_ A da rainha ...
_ é prata só!"
Ainda sobre a linguagem é corrente uma expressão
negativa, que indica rejeição absoluta: "nem pintado de
ouro!" Ou seja: é usada para indicar que tal pessoa não agrada ou
não é desejada, mesmo com “boa aparência” e nem revestida de riquezas
materiais.
Existe
uma prática sagrada, firmeza por poucos revelada, que é fazer um furo em um
bastão ou bengala, de congado, por exemplo, e esconder no seu interior uma
pedrinha de ouro, pequena pepita que dará uma força extra ao seu portador.
Brilhará para ele qual uma luz.
A crença varia conforme a própria diversidade
religiosa, a cada região e denominação. O ouro é especialmente consagrado a Orixá
Oxum, senhora das fontes e das cachoeiras. No processo de sincretismo religioso
pelos quais passaram em grande parte as religiões de matriz africana, e suas
múltiplas derivações em terra brasileira, houve sincretismos com Santa Efigênia,
Nossa Senhora da Conceição e Nossa Senhora Aparecida. Ainda no processo de
abrasileiramento, se identifica uma falangeira de Oxum denominada "Oxum
do Ouro". Em outro nível hierárquico do panteão de alguns terreiros de
umbanda, o ouro é consagrado aos guias (entidades espirituais) da linha dos
ciganos e ciganas. Há inclusive este ponto cantado (zuela ou curimba): “Cigano é de ouro! / É de ouro só!” (bis)
Um mito conhecidíssimo e por tantos relatado é o
da mãe do ouro, aparição aérea, brilhante, luminosa, áurea, como um cometa
que risca o céu. Simula na aparência um astro desconhecido. A mãe do ouro
estoura tem movimento e se choca contra rochedos, indicando que ali está oculta
farta riqueza. As fagulhas que caem durante sua passagem pelo céu, ao atingirem
o solo se transformam em fios de ouro, conforme crença popular. Mas é mortal!
Ai daquele que for tocado pela mãe do ouro... Morre torrado como quem é
fulminado por um raio [4].
Na toponímia, o ouro deixou também sua marca: Lagoa
Dourada, conforme já citado, município alcandorado na Serra das Vertentes; Rua
do Ouro, no Alto das Mercês, em São João del-Rei; Córrego do Ouro, que nasce na
Serra de São José e deságua na margem esquerda do Rio Carandaí, em Coronel
Xavier Chaves; Lavrinha, na zona rural são-joanense – pequena área de extração
aurífera (território distrital cajuruense); Córrego do Garimpo, na Serra do
Caiambola [5],
em Coronel Xavier Chaves; Serra do Ouro Grosso, em Itutinga; Córrego do Ouro
Fino, pelos lados do Bairro Tijuco, em São João del-Rei.
Ouro de tolo é o nome que habitualmente
se dá à pirita, um minério à base de dissulfeto de ferro, com brilho amarelo-dourado,
que pode criar a ilusão de ser ouro verdadeiro.
Vale ainda ressaltar a questão do
linguajar garimpeiro, suas técnicas e crenças. A larga experiência entre as
rochas à busca dos veios produtivos, ou nas margens dos riachos à cata do ouro
de aluvião, lhes dá um olhar clínico e alto poder de observação das
características de cada terreno. Ele sabe identificar o ouro de moita, raso, que surge entremeio o raizame, o ouro de veio, dos filões de quartzo, as
composições rochosas chamadas aglomerados, as quais denominam de cascorão, com frequência trazendo
partículas áureas; o ouro encapado,
que corresponde ao clássico ouro preto, assim chamado pela associação ao ferro.
A tradição garimpeira, fortemente marcada pelos saberes afro, tem uma cultura
própria, marcante, que passa por via oral, de geração em geração e vai desde as
crenças místicas até as técnicas de abertura de uma beta.
O complexo cultural desenvolvido em torno do ciclo do ouro é tão intenso
e vasto que um simples texto sobre
este assunto chega ser algo pretensioso. Uma crônica extraída da memória, que
não passa de um panorama sobre o assunto. O ouro merece uma investigação
cultural, uma abordagem acadêmica, como de um garimpeiro diante de um veio de quartzo,
no meio das areias caçando o brilho. Precisa um trabalho investigativo, de
envergadura, para perscrutar as suas influências desde o nosso barroquismo até
a cultura popular dos dias atuais.
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Bateias, 2010, acervo do autor. |
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Antigas ferramentas de mineração: à esquerda, picão; à direita, almocafre (acima) e enxadinha de veio (abaixo). São João del-Rei/MG. Acervo: MMTPDR - Museu Municipal Tomé Portes del-Rei. |
Créditos
Texto e fotografias: Ulisses Passarelli
Notas
- Revisões: 28/03/2024 (com ampliação) e 19/08/2025.
- Este texto foi também publicado (sem fotografias) em: PASSARELLI, Ulisses. Ouro: memórias e tradições populares de um ciclo cultural. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, v.17, 2025. 190p. p.40-46.
[1] - Informante: Capitão
de Congado (Catupé), José Camilo da Silva, Bairro São Dimas, São João del-Rei,
1992. Segundo o mesmo, este canto era da guarda de moçambique do Capitão
"Barão", que houve nas primeiras décadas do século XX em Ritápolis,
então distrito são-joanense outrora chamado Santa Rita do Rio Abaixo.
[2] - Cantoria de Congado (Congo), distrito São Gonçalo do
Amarante (São João del-Rei), 1998, cantado pelo Capitão José Francisco Sales
(“Faixa Preta”), parte ainda constante no repertório do grupo.
[3] - Catupé, Conceição da
Barra de Minas, Capitão Vicente Cirilo Ribeiro. Muito embora os exemplos
acima e outros que se poderia garimpar, é mister frisar que a expressão em
questão não é exclusividade da Mesorregião Campo da Vertentes. Pode ser
encontrada alhures e existe até mesmo uma já rarefeita modalidade de reisado no
Vale do Rio São Francisco, ao norte de Minas e sul da Bahia que se chama
Mulinha (ou Burrinha) de Ouro, da estirpe do Bumba-meu-boi. Nele dança a figura
alegórica de um muar, animada por um folião, sob o insistente refrão: "_
A mulinha é de ouro! / _ é de ouro só!"
[4] - O mito da mãe do ouro pode ser explicado pelo raro fenômeno meteorológico chamado raio-bola ou raio globular.
[5] - Caiambola ou Canhambora: os dois nomes correm em sinonímia na designação desta elevação do relevo, além do Vale do Carandaí, em Coronel Xavier Chaves, próximo à divisa são-joanense. "Caiambola" é o mesmo que quilombola, o escravizado fugido, amoitado na serrania; "Canhambora" permite outra interpretação: é palavra de origem indígena que se poderia traduzir como o "espírito malfazejo que mora no mato": caá (mato) + anhanga (diabo) + bora (morador). Portanto, nesta acepção, seria referência a um espectro, assombro espiritual.
Tão precioso é este texto, escrito com letras de ouro puro luminoso, por mãos de ourives iluminado. Parabéns, Ulisses Passarelli!
ResponderExcluirSua matérias são excelentes!
ResponderExcluirAgradeço-lhe emocionado por esta homenagem!
Você escreve com a alma e isto faz a diferença.
De seu irmão: Miranda.