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Bem vindo!Esta página foi criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas, tampouco acadêmicas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




terça-feira, 5 de maio de 2015

Ouro: um ciclo cultural

(Ofereço ao amigo de longas caminhadas, Luís Antônio Sacramento Miranda)

              O ouro é um metal de transição de grande densidade, considerado nobre, de propriedades extraordinárias, resistente ao ataque de muitos reagentes químicos e à oxidação. Conserva seu aspecto de pureza e por isso mesmo é símbolo da durabilidade, da permanência. Não é por acaso que as alianças de casamento são feitas deste metal.

Na tabela periódica de elementos químicos é simbolizado por Au, iniciais de seu nome em latim, aurum, donde derivam palavras como auréola, áureo, aurora, aurificação, aura, todas alusivas à cor dourada luzidia.

Seu uso pela humanidade vem de tempos imemoriais, nas mais diversas civilizações e o encanto do ser humano por ele, atrelado à cobiça, não esmorece com o tempo. Ouro sempre enche os olhos. O homem comete loucuras por este metal, povoa regiões inóspitas e longínquas em espírito aventureiro movido pelo desejo desenfreado do poder, do enriquecimento, à custa de sua extração.

Influenciou as mitologias, as lendas e as crendices, desde os tempos pré-bíblicos. Do mundo grego ouvimos as histórias do Rei Midas, que tudo que tocava tornava-se em ouro, verdadeira maldição; ou ainda o Velocino de Ouro, uma pele ovina cuja lã era toda de ouro, de uma riqueza imensurável, procurada por Jasão e os Argonautas; ou o ouro dado por um dos Magos a Jesus, conforme o texto bíblico do Evangelho de Mateus. De geração em geração a cultura do ouro chegou ao Novo Mundo e ganhou esperança sobre velhos sonhos de riqueza, como o El Dorado, ou a nossa Vapabuçu, cobiçada pelos bandeirantes, ou a Serra Pelada da década de 1980. O ouro reluzente nas igrejas coloniais é ainda a antevisão desse esplendor tão sonhado, sacralizado e dramatizado. Retrato fiel do céu idealizado, como um palácio esplendoroso, promessa de futuro para o fiel seguidor.

Tal se deu nessas minas, que em geral tinham de tudo. Não poderia ter nome mais propício: Minas Gerais! Batida a força da resistência indígena, sob a atroz descarga dos velhos arcabuzes e bacamartes, a terra foi tomada à força, rasgada, ferida, escalavrada como quem risca um ancinho no solo... O ouro de aluvião girou em voltas centrípetas até dourar o fundo da bateia. A notícia correu. Aqui no Morro das Mercês se achou ouro pela raiz do capim! Assim o disse José Mattol. Logo ali, numa lagoa em Tiradentes, pepitas grandes como grãos de canjica... Gente veio de todo lado: de mais ao norte, das bandas fluminenses, do reino... Povo emboaba, em refrega com os paulistas descobridores pelo domínio minerador e político. Guerra dos Emboabas.

Essas velhas cidades mineiras viram isso tudo. Leitos de córregos foram remexidos na busca do fulvo metal. As pedreiras serranas foram alvo de escavações: ponteiros, talhadeiras, almocafres, picões, alavancas, picaretas cortaram rochedos com muito sacrifício do braço do homem escravizado para enriquecimento do senhorio e pagamento do maldito imposto da coroa portuguesa, o quinto, gatilho que disparou o movimento da Inconfidência Mineira. Betas, mundéus, regos pequenos ou gigantes como o Canal dos Ingleses na Serra do Lenheiro, cascalheiras (também numerosas na Serra de São José), grupiaras, canoas, socavões, são ainda hoje testemunhos daquele tempo, estruturas do patrimônio minerário, coetâneas para são-joanenses, tiradentinos e pradenses. Também em localidades vizinhas, no século XVIII, o ouro foi o foco da economia: Conceição da Barra de Minas, Lavra do Córrego do Cravo (em Nazareno), Córrego (em Santa Cruz de Minas), Bichinho - atual Vitoriano Veloso (em Prados), Cuiabá e Canjica (em Tiradentes). Ouro se tirou em São Miguel do Cajuru, São Gonçalo do Amarante, Brumado de Cima e até no Bairro Matosinhos (em São João del-Rei). Ouro saiu do Tanque – atual Vila Fátima (em Coronel Xavier Chaves) e de Lagoa Dourada _ o próprio nome um atestado da riqueza encontrada pelos pioneiros.

O ouro foi a semente da qual brotaram essas localidades e muitas outras. Se não a semente, o adubo que impulsionou o crescimento. A atividade em redor de sua intensa e rude exploração centralizava tudo. A terra foi varrida do amarelo, e logo se esgotava. Outros rumos foram tomados para a sobrevivência. Novas vocações os habitantes tiveram que descobrir para romper até o dia de hoje. Quando ele escasseou, o povo descobriu novas fontes para mover a economia e outros mais, migraram, foram povoar as vastidões a oeste (nas cabeceiras do São Francisco), para lidar com o gado, ou para a Zona da Mata e interior fluminense, derrubar florestas virgens e plantar café. E junto levaram a cultura das Vertentes, que naquelas novas terras se mesclava ao que lá já havia e gerava variantes magníficas do rico folclore brasileiro.

Mas se a febre do ouro passou há mais de dois séculos, a marca dourada ficou na cultura mineira e nessa Microrregião de São João del-Rei de maneira muito especial. E se revela em sutilezas. 

Ourivesaria é o ofício de trabalhar o ouro, fazer joias. Divulgadíssimo outrora é hoje bem menos comum. Seu praticante é o ourives. Verdadeiros artistas, profissionais habilidosos que fizeram joias esplendorosas com técnicas artesanais, ainda hoje visíveis como relíquias familiares e como adornos de imagens de santos dos séculos XVIII e XIX, sobretudo _ coroas, resplendores e cetros. É natural que fosse mais frequente nas regiões tradicionalmente mineradoras, como no Campo das Vertentes. O serviço equivalente em prata é a prataria, também conhecido por aqui, que alcançou desenvolvimento considerável em Tiradentes.

Quando alguém ao andar tropeça sem razão aparente, crê-se que naquele exato local há ouro não explorado. Diz então o povo em tom meio reticente: "tem ouro aí...", ou como pergunta: "tem ouro escondido?" (subentendido: nesse lugar).

O velho costume de usar "dentes de ouro" arrefeceu diante da odontologia estética, desenvolvendo em tempos hodiernos resinas compostas e compômeros que reproduzem com elevada perfeição a aparência dentária original. Porém, a incrustação, a faceta ou mesmo a coroa de liga de ouro ainda tem seu lugar e muitos ainda se comprazem em sorrir largamente ostentando um laivo dourado. É o ponto extremo: o ouro no próprio corpo toma parte do ser.

"Dentinho de Ouro!

Adornado de marfim!

Negro velho gosta de congo, 

morena gosta de mim, ai, ai"

Ainda hoje, assim cantam nossos congadeiros do catupé, como observado em São João del-Rei e imediações. Dançantes, aliás, que tem uma expressão curiosa, "é ouro só", que equivale a um demonstrativo de qualidade extrema, caráter irrepreensível, excelência:

"_ Ô rainha de ouro ...

_ É ouro só!

_ Toda roupa que senta nela ...

_ É fita só!

Êêêh... marra a fita no tundá,   BIS

pro cabelo o moço dá!"

Tundá era parte da vestimenta feminina de outrora: um enchimento discretamente posto pelas sinhazinhas na parte de trás do vestido, para salientar a sensualidade do traje; anquinha, acima das nádegas. Sua referência no verso testemunha a antiguidade deste canto [1]

Ainda dos congados regionais:

"Estrela d'alva alumiô,

a coroa do rei é ouro só!"  [2]

"_ A coroa do rei ... 
_ é ouro só! [3]

 _ A da rainha ...
_  é prata só!"

Ainda sobre a linguagem é corrente uma expressão negativa, que indica rejeição absoluta: "nem pintado de ouro!" Ou seja: é usada para indicar que tal pessoa não agrada ou não é desejada, mesmo com “boa aparência” e nem revestida de riquezas materiais.

Existe uma prática sagrada, firmeza por poucos revelada, que é fazer um furo em um bastão ou bengala, de congado, por exemplo, e esconder no seu interior uma pedrinha de ouro, pequena pepita que dará uma força extra ao seu portador. Brilhará para ele qual uma luz.

A crença varia conforme a própria diversidade religiosa, a cada região e denominação. O ouro é especialmente consagrado a Orixá Oxum, senhora das fontes e das cachoeiras. No processo de sincretismo religioso pelos quais passaram em grande parte as religiões de matriz africana, e suas múltiplas derivações em terra brasileira, houve sincretismos com Santa Efigênia, Nossa Senhora da Conceição e Nossa Senhora Aparecida. Ainda no processo de abrasileiramento, se identifica uma falangeira de Oxum denominada "Oxum do Ouro". Em outro nível hierárquico do panteão de alguns terreiros de umbanda, o ouro é consagrado aos guias (entidades espirituais) da linha dos ciganos e ciganas. Há inclusive este ponto cantado (zuela ou curimba): “Cigano é de ouro! / É de ouro só!” (bis)

Um mito conhecidíssimo e por tantos relatado é o da mãe do ouro, aparição aérea, brilhante, luminosa, áurea, como um cometa que risca o céu. Simula na aparência um astro desconhecido. A mãe do ouro estoura tem movimento e se choca contra rochedos, indicando que ali está oculta farta riqueza. As fagulhas que caem durante sua passagem pelo céu, ao atingirem o solo se transformam em fios de ouro, conforme crença popular. Mas é mortal! Ai daquele que for tocado pela mãe do ouro... Morre torrado como quem é fulminado por um raio [4].

Na toponímia, o ouro deixou também sua marca: Lagoa Dourada, conforme já citado, município alcandorado na Serra das Vertentes; Rua do Ouro, no Alto das Mercês, em São João del-Rei; Córrego do Ouro, que nasce na Serra de São José e deságua na margem esquerda do Rio Carandaí, em Coronel Xavier Chaves; Lavrinha, na zona rural são-joanense – pequena área de extração aurífera (território distrital cajuruense); Córrego do Garimpo, na Serra do Caiambola [5], em Coronel Xavier Chaves; Serra do Ouro Grosso, em Itutinga; Córrego do Ouro Fino, pelos lados do Bairro Tijuco, em São João del-Rei. 

Ouro de tolo é o nome que habitualmente se dá à pirita, um minério à base de dissulfeto de ferro, com brilho amarelo-dourado, que pode criar a ilusão de ser ouro verdadeiro.

Vale ainda ressaltar a questão do linguajar garimpeiro, suas técnicas e crenças. A larga experiência entre as rochas à busca dos veios produtivos, ou nas margens dos riachos à cata do ouro de aluvião, lhes dá um olhar clínico e alto poder de observação das características de cada terreno. Ele sabe identificar o ouro de moita, raso, que surge entremeio o raizame, o ouro de veio, dos filões de quartzo, as composições rochosas chamadas aglomerados, as quais denominam de cascorão, com frequência trazendo partículas áureas; o ouro encapado, que corresponde ao clássico ouro preto, assim chamado pela associação ao ferro. A tradição garimpeira, fortemente marcada pelos saberes afro, tem uma cultura própria, marcante, que passa por via oral, de geração em geração e vai desde as crenças místicas até as técnicas de abertura de uma beta.

O complexo cultural desenvolvido em torno do ciclo do ouro é tão intenso e vasto que um simples texto sobre este assunto chega ser algo pretensioso. Uma crônica extraída da memória, que não passa de um panorama sobre o assunto. O ouro merece uma investigação cultural, uma abordagem acadêmica, como de um garimpeiro diante de um veio de quartzo, no meio das areias caçando o brilho. Precisa um trabalho investigativo, de envergadura, para perscrutar as suas influências desde o nosso barroquismo até a cultura popular dos dias atuais. 


Bateias, 2010, acervo do autor. 

Antigas ferramentas de mineração: 
à esquerda, picão; à direita, almocafre (acima) e enxadinha de veio (abaixo).
São João del-Rei/MG. Acervo: MMTPDR - Museu Municipal Tomé Portes del-Rei.

Ouro de tolo.

 Créditos

Texto e fotografias: Ulisses Passarelli

Notas

- Revisões: 28/03/2024 (com ampliação) e 19/08/2025.  

- Este texto foi também publicado (sem fotografias) em: PASSARELLI, Ulisses. Ouro: memórias e tradições populares de um ciclo cultural. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, v.17, 2025. 190p. p.40-46. 


[1] - Informante: Capitão de Congado (Catupé), José Camilo da Silva, Bairro São Dimas, São João del-Rei, 1992. Segundo o mesmo, este canto era da guarda de moçambique do Capitão "Barão", que houve nas primeiras décadas do século XX em Ritápolis, então distrito são-joanense outrora chamado Santa Rita do Rio Abaixo.

[2] - Cantoria de Congado (Congo), distrito São Gonçalo do Amarante (São João del-Rei), 1998, cantado pelo Capitão José Francisco Sales (“Faixa Preta”), parte ainda constante no repertório do grupo.

[3] - Catupé, Conceição da Barra de Minas, Capitão Vicente Cirilo Ribeiro. Muito embora os exemplos acima e outros que se poderia garimpar, é mister frisar que a expressão em questão não é exclusividade da Mesorregião Campo da Vertentes. Pode ser encontrada alhures e existe até mesmo uma já rarefeita modalidade de reisado no Vale do Rio São Francisco, ao norte de Minas e sul da Bahia que se chama Mulinha (ou Burrinha) de Ouro, da estirpe do Bumba-meu-boi. Nele dança a figura alegórica de um muar, animada por um folião, sob o insistente refrão: "_ A mulinha é de ouro! / _ é de ouro só!"

[4] - O mito da mãe do ouro pode ser explicado pelo raro fenômeno meteorológico chamado raio-bola ou raio globular.

[5] - Caiambola ou Canhambora: os dois nomes correm em sinonímia na designação desta elevação do relevo, além do Vale do Carandaí, em Coronel Xavier Chaves, próximo à divisa são-joanense. "Caiambola" é o mesmo que quilombola, o escravizado fugido, amoitado na serrania; "Canhambora" permite outra interpretação: é palavra de origem indígena que se poderia traduzir como o "espírito malfazejo que mora no mato": caá (mato) + anhanga (diabo) + bora (morador). Portanto, nesta acepção, seria referência a um espectro, assombro espiritual.

2 comentários:

  1. Tão precioso é este texto, escrito com letras de ouro puro luminoso, por mãos de ourives iluminado. Parabéns, Ulisses Passarelli!

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  2. Sua matérias são excelentes!
    Agradeço-lhe emocionado por esta homenagem!
    Você escreve com a alma e isto faz a diferença.
    De seu irmão: Miranda.

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