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Bem vindo!Esta página foi criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas, tampouco acadêmicas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Passinhos da Paixão

Quem anda pelas cidades históricas mineiras vislumbra por vez nas ruas antigas, uma construção religiosa contígua ao casario, a guisa de uma capelinha. Em alguns lugares seu feitio é do tempo colonial, ou pelo menos de uma arquitetura que à primeira vista remeta ao estilo setecentista de edificações para uso do sagrado. Em outras localidades é mais recente e por vezes bem simples em sua composição artística.

Parecem igrejas em miniatura e são conhecidas pelos nomes de passopasso da Paixãocapela-passo e passinho. Ao contrário das igrejas, ermidas e capelas, não tem um santo específico como orago ou padroeiro e em verdade em quase todas existe iconografia que remeta à devoção ao Senhor Bom Jesus dos Passos e a Nossa Senhora das Dores. Em algumas, aparece quadro, pintura ou imagem do Bom Jesus da Coluna ou da Cana Verde. Outra diferença básica é que por seu pequeno tamanho as celebrações se realizam externamente, diante do passo que permanece iluminado e com as portas abertas.

Sua construção acompanha as residências, por vezes parece incrustada nelas. Os passos antigos são pequenas joias arquitetônicas, com elementos artísticos entalhados em pedra (cantaria), na base das colunas, portada, ornamentos, cruz do culmen; porta de madeira, com tirantes de ferro, grandes ferrolhos, rebites. Por dentro, pequeníssimo espaço. O fiel não entra. Um retábulo (não raro entalhado e às vezes com douramento) conserva pequena imagem ou como é muito comum, quadros pintados diretamente no madeirame de revestimento (pintura parietal), além de telas penduradas nas paredes interna; o espaço se completa com castiçais e jarras para flores. É sempre profusamente florido nas ocasiões festivas, quando forram as bancadas com toalhas artísticas (contendo bordados diversos, e acabamento em rendas, tais como abrolhos e richelieu) e o piso com tapetes. Em São João del-Rei e algumas cidades vizinhas é costume desfolhar o cheiroso rosmaninho sobre o piso e bancadas. Tanto mais, depositar no seu interior ramos aromáticos de arnica, manjericão e alecrim.

A pintura interna repete os temas comuns das igrejas, tais como anjos, florais e rocalhas. Contudo, detalhes específicos enriquecem eventualmente algum passo em particular (por exemplo, pintura dos cravos da crucificação ou o chicote do martírio). 

Os passinhos permanecem fechados quase o ano todo. Só abrem após o carnaval, pela quaresma, nos dias e horários próprios, conforme a programação religiosa de cada paróquia. Então é visitado pelo povo devoto, que diante dele se posta um instante para uma prece ligeira. Ali se persignam e admiram a arte religiosa. Especificamente o sentido dos passinhos é rememorar momentos marcantes da via-sacra de Jesus Cristo, quando levava a pesada cruz de arrasto pelas ruas de Jerusalém. Então, de maneira didática e porque não dizer catequética, cada passo em sequência pelas ruas e largos, mostra uma cena especial da Paixão do Messias.

Quando realizam as vias-sacras externas, partindo das igrejas, é diante dos passinhos que interrompem o cortejo com a cruz na dianteira, ladeada por lanternas de velas e fazem as paradas ou estações, com celebração de orações específicas, leituras contemplativas e música coral (por vezes orquestral).

Em Conceição da Barra de Minas, um dos pontos de parada da encomendação das almas é diante do passo; contudo, ele permanece fechado durante o ritual.  

Em São João del-Rei é muito forte a tradição dos passinhos. Anualmente vemos a movimentação religiosa em torno deles durante as Comemorações dos Passos. São cinco: dois na Rua Direita (atual Getúlio Vargas), um na Padre José Maria Xavier (antiga Rua da Prata), um no Largo das Mercês e outro no Largo da Cruz, todos no Centro Histórico (*). Como a tradição nesta área é a da prática de sete estações, as duas restantes, por falta de mais passinhos, se completam na Igreja de São Francisco de Assis e na Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar, extremos do solene deslocamento de fiéis. A construção dos passinhos são-joanenses se deu em data incerta, possivelmente em meados ou em pleno terceiro quartel do século XVIII. Nesta cidade as comemorações quaresmais dos Passos no Centro se devem aos esforços e coordenação da Venerável Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos (datada de 1733), que muito se esmera para o êxito de sua programação. Nas paróquias fora do Centro as vias-sacras não se apoiam em passinhos.  

A tradição dos passinhos e vias-sacras externas tradicionais a eles vinculadas é muito marcante em Prados e Tiradentes. 

Em algumas cidades existem um ou dois passinhos remanescentes, sem compor o total necessário a realização da via-sacra. Alguns casos o numero menor decorre apenas da não construção; outros mais, são fruto de demolição. Também é comum a alteração estilística ao longo dos anos, com franca alteração da arquitetura e acabamento. Em Aiuruoca, no sul do Estado, os passinhos estão preservados em pleno uso pelas cerimônias de Semana Santa [1]. 

A preservação dos passinhos é de extrema importância não apenas para em si assegurar sua função prática de estação de via-sacra. Além desta importância óbvia, o valor cultural e arquitetônico deles é evidente, como elemento identificador da vida religiosa da sociedade colonial e imperial. Destacam-se ainda, pela composição da paisagem urbana, inseridos que estão em pequenos espaços junto às casas históricas, com elas compondo um todo, digno de se perpetuar.  

No arremate desta postagem segue um conjunto de fotografias de variados passinhos das cidades históricas das Vertentes - Prados, São João del-Rei e Tiradentes, de elevado valor arquitetônico e artístico por seus bens integrados e elementos ornamentais internos e externos, servindo anualmente às tradicionais vias-sacras. Os passinhos polarizam além das atividades religiosas, a música sacra correlacionada, executada pelas antigas orquestras e coro dessas tradicionais cidades mineiras.  

Tanto mais, seguem imagens de passinhos de outras áreas urbanas, dentro e fora do Campo das Vertentes.  


            
 Nazareno. Fotos: UP, 02/07/2017.


 
Passinhos próximo à Igreja do Rosário
em Coronel Xavier Chaves. Fotos: IP, 30/12/2014 (esquerda) e 03/02/2018 (direita).

Ritápolis: Passinhos da Rua Santa Rita. Foto: UP, 01/10/2017.
  
Ritápolis: Passinho no Largo da Matriz, junto à Sala de Milagres. Foto: UP, 29/06/2019.

 
Passinhos da cidade de Ibituruna. Fotos: UP, 30/06/2013 e 30/06/2019.

  
 Dores de Campos. Foto: UP, 10/10/2018.

Passinho prensado entre prédios. Barbacena. Foto: UP, 11/10/2018.

Vitoriano Veloso (Prados/MG). Foto: UP, 09/03/2019.

Carrancas. Foto: UP, 14/03/2019.

Carrancas. Foto: UP, 14/03/2019.

Passinho (esquerda da fotografia), ladeando um imponente casarão
em Conceição da Barra de Minas. Foto: IP, 23/10/2016.  

Encomendação das almas canta diante de um passinho
 em Conceição da Barra de Minas. Foto: IP, 29/03/2014, 00:37 h.
  

No canto direito da fotografia um passinho junto a uma antiga residência
em São Sebastião da Vitória (São João del-Rei). Infelizmente nem o casarão nem
o passinho existem mais... Foto: UP, agosto/1999. 

 São Sebastião da Vitória (São João del-Rei). Foto: UP, agosto/1999.
 
    
Prados. Fotos: IP, 16/10/2016.

  
 Prados. Fotos: IP, 16/10/2016. 

Prados: passinho incrustado em imóvel e detalhe da placa informativa. Foto: UP, 08/02/2018.

 São João del-Rei: preparação para uma via sacra:
devotos ornamentam o passinho da "Rua da Prata" (Rua Padre José Maria Xavier).
Fotos: UP, 03/03/2017. 

São João del-Rei: devota em prece no passinho da antiga Rua da Prata
(atual Padre José Maria Xavier), no centro histórico de
São João del-Rei. Foto: UP, 11/04/2014.

Preparação para uma via-sacra:
devota faz uma limpeza num passinho da Rua Direita.
São João del-Rei. Foto: UP, 03/03/2017.

                                      
 São João del-Rei, passinhos do Largo do Pelourinho (esquerda) e da Rua Padre José Maria Xavier (direita).
Fotos: IP, 05/03/2017.


                                       
São João del-Rei, Passinhos da "Rua Direita" (Rua Getúlio Vargas). Fotos: IP, 05/03/2017.

São João del-Rei, Largo da Cruz. Foto: IP, 05/03/2017. 

Tiradentes, na Rua Direita, com congadeiros saindo
da Igreja do Rosário. foto: IP, 17/07/2016 .


Tiradentes, Largo das Forras. Detalhe do ornamento do frontão. Fotos: IP, 30/07/2017.

Ibertioga. Foto: UP, 21/07/2019.

Ibertioga, durante 42º Festival de Carros de Bois. Foto: IP, 21/07/2019.

São Tiago, Largo da Matriz. Foto: UP, 29/06/2019.
 
Madre de Deus de Minas. Foto: IP, 21/07/2019

Exemplos comparativos de passinhos em outras mesorregiões mineiras 

Entre Rios de Minas, foto UP, 31/07/2022. 

 Recorte de fotografia evidenciando um passinho em
Entre Rios de Minas. Foto: UP, 03/04/2016.

São Francisco de Paula, Rua Padre Joaquim Cardoso
Foto: UP, 03/11/2022.


São Brás do Suaçuí, na  Av. Ribeiro Oliveira.
Foto: UP, 11/11/2022.



Oliveira. Foto: UP, 08/09/2024. 

São José das Três Ilhas (Belmiro Braga/MG).
Foto: UP, 03/06/2021.  

 
Aiuruoca/MG: passinhos da cidade em pleno uso durante as cerimônias 
da Semana Santa/2025. Autor: em cima, Paróquia de N.S. da Conceição; em 
baixo, Gilberto Furriel, a quem agradecemos a gentileza dessas fotografias.

Notas 

[1] A este respeito ver: O Ayuruoca, n.20, ano 1, 08/10/2020. 

- Chama a atenção em São João del-Rei uma sexta construção que à primeira vista parece ser mais um passinho, embora que de maior dimensão: é a Capela-oratório de Nossa Senhora da Piedade, que comumente mantém aberta nas ocasiões solenes quaresmais e da Semana Santa. Não é uma capela-passo, embora pareça. Diante dela, periodicamente se celebravam missas voltadas aos presos da cadeia velha (hoje sedia o Museu de Arte Sacra), na Rua Getúlio Vargas, outrora Rua Direita. O padre e seus acólitos celebravam na entrada ou dentro dela mas não cabiam outras pessoas. Detrás das grades da então cadeia fronteiriça os condenados assistiam à celebração. A cidade teve no passado outras capelas-oratório, ao longo dos anos demolidas (Oratório das Almas - na Prainha; Oratório do Senhor do Bonfim, na Rua da Cachaça). Quando em meados dos oitocentos a cadeia foi transferida para o térreo da nova Casa da Câmara (de 1849, hoje ocupada pela Prefeitura Municipal), a Capela-oratório de Nossa Senhora da Piedade perdeu sua função primitiva. Outra detalhe: os passinhos são administrados pela Irmandade dos Passos; o oratório pela Irmandade do Santíssimo Sacramento. 

 
Capela-oratório de Nossa Senhora da Piedade, São João del-Rei,
ornada com flores e aberta à visitação durante a Semana Santa.
13/04/2017 (esquerda) e fechada em um dia comum (04/03/2018). 


- Texto revisto, ampliado e com inserção de mais fotografias em 04/03/2018, 30/04/2019, 22/07/2019, 27/10/2024 e 06/05/2025. 

Créditos

- Texto: Ulisses Passarelli.
- Fotografias: Ulisses Passarelli (UP) e Iago C.S. Passarelli (IP). As exceções de outra autoria, conforme especificado nas respectivas legendas (Aiuruoca).  

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

O Caipira: personagem mal compreendido

Brasil afora corre a palavra "caipira" como sinônimo grotesco e zombeteiro de homem do campo, rurícola, produtor rural, morador dos arraiais e sítios. Por onde quer que seja o termo se aplica eivado de uma carga de descaso e até mesmo discriminação. Quase sempre é assim. Caipirismo se diz à atitude arcaica ou ao modo de agir, falar e vestir à maneira rural e não à urbana. Rural aqui subentendido como um rural muito ermo, tosco, antiquado, provinciano...

SAMPAIO (1987) buscando a etimologia da palavra apostou que procede do tupi "caí-pyra", icaipira, o envergonhado, o tímido. Seria uma formação em particípio passado adjetivo, do verbo "cai "(envergonhar), conjugado ao sufixo "pyra" (ou byra) _ o envergonhado. Contudo, em nota, Frederico Edelweiss discordou alegando ser kaí um adjetivo guarani.

CASCUDO (s.d.) abordou a possibilidade de caipira ser alteração de caipora, "o morador do mato", segundo origem tupi. Verbetizou-o traçando-lhe com a maestria de sempre seu perfil psicológico e etnográfico: "homem ou mulher que não mora na povoação, que não tem instrução ou trato social, que não sabe vestir-se ou apresentar-se em público." 

ARAÚJO (1964) registrou como ninguém a cultura caipira, a cultura do caipira. Em abordagem que entremeia a folclorística e a sociologia, o iminente estudioso foi extremamente cuidadoso na descrição e análise dos ritos, as crendices, a religiosidade, o artesanato, a indústria caseira, o modo de vida, as festas, os folguedos e danças, a produção agrícola, a culinária, etc. Verdadeiro documentário, indelével, é obra fundamental para quem queira iniciar ou aprofundar no assunto.

Qual a área do caipira? Poder-se-ia dizer que todo o Brasil. Cada área geográfica tem seu próprio tipo de "caipira" embora que o "típico", digamos assim, resida no interior goiano e mineiro, até terras paulistas e paranaenses. Tem uma vasta gama de sinônimos ou regionalismos e raro aquele que não vem maculado de zombaria: capiau, jeca, roceiro, tabaréu, matuto, maratimba (sul capixaba), caiçara (litorâneo em São Paulo e Paraná), etc. Para lhe desqualificar os procedimentos revelando sua imaginada idiotice o chamam ou dizem ser um panguá, caboclo, coió, roceiro, jurubeba, jacu, jabacuré, tião, sô zé... Chamar alguém de caipira é o mesmo que xingar, quando deveria ser um elogio.

Do ponto de vista étnico o caipira é fruto da miscigenação de nossos formadores e nada há nele que o vincule mais diretamente a uma etnia. Ele pertence ao povo brasileiro. A mescla dos saberes de cada um ele herdou e assim construiu uma parcela deveras significativa da cultura popular nacional. 

O estereótipo do caipira foi pintado na cidade como supersticioso, crédulo, apalermado, quase andrajoso, desengonçado e bobalhão. Teria roupas velhas e remendadas, chapéu de palha à cabeça, paletó surrado pelo tempo, cabelo desgrenhado, encardido, barba por fazer, descuidado em geral, calçado de alpercatas ou botinas, por vezes, sapatos velhos; cheirador de rapé, fumador de cigarros de palha, bebedor de cachaça. Pendendo no currião (*) um canivete de picar fumo, metido dentro de uma bainha de couro. No bolso de trás da calça um chumaço de palha seca de milho para confecção de cigarros. A mulher caipira não dista muito dessa figuração: vestido estampado, de cores berrantes e desenhos grosseiros, babados em profusão, pouca elegância no agir e no andar; desprovida de qualquer senso de estética (sob a ótica urbana) ou de vaidade (idem); maquiagem borrada, exagerada, ridícula. Cabelo longo, amarrado com uma tira de trapo, ensebado, lamentável. Sandália simples no pé. Um bolsa sofrível a tiracolo. 

Uns e outros infalivelmente arrastando uma linguagem cheia de erros grosseiros de pronúncia e recheada de um vocabulário com termos e expressões das antigas. Sotaque próprio. Usam palavras específicas que na cidade pouco se sabe o que seja. O traje simplório contudo é uma necessidade prática imposta pela pesada lida cotidiana. Para os eventos, as festas, as celebrações, o homem do campo se veste bem e com gosto, limpo e cuidadoso. Vimos algumas vezes uma cena inusitada: gente da cidade ir a uma vila assistir uma festa de padroeiro ou outra, ingenuamente vestido de forma simples, e passar vergonha de ver os naturais do lugar, "os caipiras", mais limpos e bem vestidos que o cidadão da zona urbana. É uma oportunidade interessante para quebra desse paradigma. 

Anda pela cidade uma vez por mês para vender seus produtos da roça (galinhas, toicinho, balaios, fumo, ovos, verduras, tapetes de tear, mel, sabão de bola) e com o dinheiro apurado compra aquilo que não acha na roça (sal, querosene, ferramentas, ração para animais, produtos veterinários, etc.) e para lá segue com tudo pendurado num saco no lombo de um cavalo, ou jogado no porta malas de um velho ônibus ou carro que suporte as estradas rurais precárias. 

É possível que essa figura se baseie em algum arquétipo do imaginário colonial, ou mesmo, que reproduza de fato, em memória inconsciente do coletivo, o tipo humano campesino do século XVIII e XIX, forçado pelas vicissitudes de seu tempo a ser assim ou, pelo menos, movido pela vida rude do campo, tal como é visto pela fidalguia orgulhosa da cidade.

Soma-se a isto a personificação do caipira na literatura brasileira, que aproveitando do elemento pré-existente contribuiu para fixá-lo no imaginário popular. Nesta mesma linha de raciocínio destaca-se a obra de Monteiro Lobato e notadamente o personagem Jeca Tatu, que à época figurou numa forte campanha de prevenção contra os males da verminose. A lerdeza de sua figura, tomada como modelo do caipira, foi atribuída à intensa infestação de vermes intestinais, adquiridos graças a maus hábitos de higiene, que, uma vez corrigidos fizeram a sua saúde regenerar e o jeca se tornou homem forte, bem disposto e trabalhador. A narrativa deste personagem teve um alcance extraordinário e foi repetido em comerciais, almanaques, coletâneas de estórias infantis de natureza didática com notável longevidade e popularidade, não obstante o caráter depreciador de sua própria figura, visto à luz do pensamento então vigente. 

Contudo, há um senão: no anedotário, o caipira surge portador de uma sagacidade incomum. Age no caipirismo; se aparenta abestalhado, mas é de fato inteligente, de pensamento rápido, esperto e se sobressai a toda cilada ou embaraço com a simplicidade costumeira, portador que é de uma solução irrefutável para cada circunstância.  

Outra ambiguidade reside na musicalidade e na poética. No imaginário urbano sobre o caipira se reconhece seu potencial nesses ramos, atribuído à sua ingenuidade de um lado e à vivência em contato com a natureza por outro. O caipira é então entendido como o sujeito que sabe como ninguém extrair do bucolismo de sua paisagem nativa os mais belos elementos para versos e melodias ao som da inseparável viola. Cantando só ou em duplas, traduz para a cidade o sentimento rural e em verdade invadiu a urbe com sua arte para mostrar que o campo tem valor. Neste contexto muito se deve aos esforços de Cornélio Pires, pioneiro nas gravações das modas caipiras, dando importantíssima contribuição para a discografia brasileira ao valorizar as duplas de cantores.  Uma das modas gravadas graças a seu esforço, "Jorginho do Sertão", celebrizou-se e tornou-se antológica. Não é desconhecido o espaço que a música caipira conquistou no mercado gigantesco de shows e gravadoras. Com os anos, as adaptações converteram o estilo original e surgiu a música sertaneja, que hoje vende milhões e povoa a mídia, já bem distante das bases. E para a distinguir, a música caipira que permanece ligada diretamente ao campo (tradicional), esta foi adjetivada com a expressão "de raiz". A formação de duplas caipiras e até trios tornou-se uma possibilidade de sucesso com larga aceitação de mercado. Modas e toadas as mais diversas foram extensamente gravadas e regravadas, algumas celebrizando-se na voz de duplas de grande êxito.

Nas artes há ainda de se lembrar das pinturas realistas de Almeida Júnior, que imortalizou o caipira em suas telas, ainda que em formato estereotipado. 

Parte da mídia e da produção cinematográfica nos vende o cowboy. E porque será que ele foi tão bem absorvido? A cultura massiva repisa valores estilizados dos vaqueiros norte-americanos que nos chegam pelas telas. O mercado se aproveita do fato. O povo o consome. Mas paralelo a isto a cultura caipira sobrevive, nem que seja fragmentada, mas está aí. Como um fator de resistência identitária ela teima em não desaparecer frente à mudança dos tempos, ainda que aparente ser anacrônica. Em vários lugares a promoção de festas que enaltecem os valores da cultura caipira são exemplos desta reação ou resistência. Os festivais de carros de bois e tropeiros em certa medida ou paralelismo andam na mesma lógica. Na zona rural de São João del-Rei, no vilarejo do Caquende, já há vários anos acontece o encontro da cultura popular, cujo foco maior é reconhecer e valorizar a cultura popular rural, os saberes do homem do campo, do lavrador. É a celebração do trabalho, da colheita, da amizade e do saber caipira. 

Foi o caipira que nos deixou as danças típicas como o catira, os cantares do cateretê e do cururu, os fandangos como suítes de danças airosas, o gosto pela viola, o padrão de tantos festejos típicos. Foi ele quem fez viver nos vilarejos os folguedos típicos, trazidos também às cidades com seu próprio êxodo, apesar de não ser esta a única via de chegada da cultura popular às urbes, onde, aliás, também se forma dinâmica e espontaneamente. Cultivou nosso patrimônio imaterial, decantou as lendas e fábulas, dominou a técnica de produção de maquinários como engenhos, moinhos e prensas. 

Ainda neste ramo da cultura é preciso enaltecer o papel do caipira na adaptação da viola ibérica ao solo brasileiro. De várias regiões portuguesas vieram os modelos originais, nossas matrizes: viola braguesa, viola amarantina, viola campaniça, viola beiroa, viola de arame, viola toeira. Foi ao sopé dos ranchos de pouso de tropas e boiadeiros, foi à sombra da árvore da beira do curral no intervalo da lida, foi no serão na cozinha, foi no alpendre da fazendinha que o caipira adaptou os modelos portugueses de viola à realidade brasileira, dando-lhe novos formatos de corpo, ao se valer das madeiras tropicais da nação, e, com muita criatividade, reinventou velhas afinações ou criou novas, as quais batizou com nomes curiosos: boiadeira, rio abaixo, rio acima, cebolão, cebolinha, paulistinha, natural, cana-verde, paraguaçu, cuiabana, nordestina, repentista, realejo, etc... E assim surgiu a viola caipira, o instrumento musical mais representativo dos meios rurais, o mais emblemático, imediato evocador da nostalgia e do bucolismo romântico das roças. Fez logo parceria com a rabeca e a sanfona. A viola caipira é o carro chefe das cantorias da zona rural, comanda as modas e pagodes de viola, as danças de São Gonçalo, as folias de Reis e as do Divino, e até mesmo, presente em muitas congadas. Alguns grupos de congo se identificam por terem como primeiro dançante de cada fila (guia) um violeiro e o povo logo o diz "congo de viola".

A favor do caipira a sua fé reconhecida o distingue, a dedicação aos festejos de seus santos queridos e protetores o enaltece pela devoção ímpar. Também o reconhecem como uma pessoa extremamente honesta e trabalhadora. 

É muito arraigada a aproximação do caipira ao mineiro do interior, quase em sinônimo. Nas piadas que o mineiro (citado expressamente como tal) protagoniza, seu personagem guarda as características do caipirismo e a expertise de sobressair sobre todos com acuidade de raciocínio. 

Qual um estereótipo, o modelo antiquado de mineiro materializa o caipira até mesmo em Minas Gerais. Nessas condições, o próprio natural deste estado, ao narrar uma piada, diz: _ "Um mineiro, lá do interior..." (como se ele próprio não fosse do interior) ou _ "O mineirinho..." (minêrin'). Interior neste contexto não é o local longe do litoral ou da capital; assume o ar de distante, longínquo, ermo _ em relação ao narrador. O caipira do interior em certa medida se equipara ao conceito de sertanejo, já em tom fantasioso. 

Se de um lado o caipira é com muito humor e sarcasmo caricaturado nas charges e nas danças juninas das quadrilhas, por outro, é em certa medida invejado por suas qualidades reconhecidas e senão mesmo idealizado como modelo de equilíbrio na vida natural. Muitos sonham em sair do caótico mundo urbano e se esconder em um rancho beira rio, sob árvores e cantos de pássaros; muitos da cidade planejam adquirir um sítio para nele viver à caipira; tantos outros nos momentos de depressão e tédio atavicamente passam uns dias no campo desprovidos de todo conforto urbano para se refazerem. Ao estresse urbano se opõe o sonho de junto a uma casinha modesta ouvir o som da viola, comer uns torresmos com angu e tomar uma talagada de boa pinga.

Aliás, à cachaça de produção seriada, industrial, crê muito apreciador desta bebida nacional, se oponha àquela de produção limitada, artesanal _ "pinga da roça" _ cuja maneira de produzir o caipira domina como ninguém. E o conceito se fixou como uma verdade, independente de qualquer argumento técnico. 

Tal ambiguidade de sentimentos parece revelar o caipira que existe em nós, do qual queremos nos livrar para provarmos à gente mesmo que nós evoluímos, sofisticamos, civilizamos (!). Mas se o desequilíbrio de nossa civilidade nos assola é o atavismo que nos torna às raízes; e, como árvore não vive sem raiz, é no campo que se busca a seiva revigorante.


Cena da colheita do milho no Caquende e intervalo para o cafezinho. 

Notas e Créditos

* Caipira - além do sentido abordado nesta postagem, caipira é também chamado um artefato de equitação de madeira e couro, um tipo de chicote. Ver a postagem CHICOTES.

** Currião - cinto de couro cru, ainda provido de pelos do animal, apenas curtido ao sol. Grande correia de suspender a calça; correiona, correião. 

Texto: Ulisses Passarelli.
Fotografia: Iago C.S. Passarelli, 04/05/2014. 
Revisão: 24/03/2025. 

Referências Bibliográficas

ARAÚJO, Alceu Maynard. Folclore Nacional. São Paulo: Martins, 1964. 3v. 

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.]. 930p. 

SAMPAIO, Teodoro. O Tupi na Geografia Nacional: introdução e notas de Frederico G. Edelweiss. 5.ed. São Paulo: Nacional; Brasília: INL, 1987. 359p. p.110 e 212.