O
dominador europeu após singrar os mares e aportar nesta Terra de Santa Cruz,
ávido por riquezas a explorar, valeu-se de inúmeros subterfúgios para colocar
sob seu comando os povos originários e os africanos trazidos para o regime da
escravidão. Aliada ao poder governamental, a religião foi um atalho para este
processo e a cruz a trilha inicial.
Sendo
símbolo maior do cristianismo, foi diante dela que se celebrou em solo baiano,
a primeira missa deste país, celebrada por Frei Henrique Soares (de Coimbra),
em 26/04/1500, em Porto Seguro. Os catequizadores usaram a cruz para
doutrinarem os indígenas, como adotaram o rosário para com os africanos, dentre
outros símbolos e objetos sagrados.
O
invasor usou o canto e a dança no processo de catequese, ambos tão queridos das
três etnias mais numerosas de nossa formação humana. Surgiram danças e
folguedos religiosos cumprindo esta função. Atualmente, a Roda de São Benedito,
a Dança de São Gonçalo, as Folias e muitos Congados (no sentido mais genérico)
são exemplos e heranças deste sistema, com modelos também noutros países da
América Latina, destacando-se a Dança de Santa Cruz nas terras paulistas,
estudadas por ARAÚJO (1964) e PELLEGRINI FILHO (1985).
Três
de maio foi estabelecido como o Dia da Santa Cruz, dito Invenção da Santa Cruz,
relembrando a descoberta da cruz na qual Cristo foi pregado, feita por Santa
Helena, no século IV. Também a 14 de setembro é festejada _ Exaltação da Santa
Cruz _ data, contudo, mais eclesiástica que popular.
Esta
festa rareou. Uns dizem que o fato se deve à mudança da data oficial, de maio
para setembro, quebrando a tradicionalidade, pois os devotos se habituaram à
festa no outono. Esta mudança decerto prejudicou o festejo, que, porém, não
deve ser culpada isoladamente, haja vista as mudanças sociais vigorosas,
incluindo o forte êxodo rural, por ser festa, sobretudo, dos meios não urbanos,
ligada ao calendário agrícola. Vale frisar que não é festa exclusivamente
rurícola, pois ocorre também nas cidades. Mas é nas roças que atinge maior
expressão e originalidade, coincidindo, mormente, com a zona de cultura
caipira.
Em São João del-Rei foram especialmente afamadas de Santa Cruz no Senhor dos Montes, durante muitos anos, informou CINTRA (1982). Também na ladeira do Pau d’Angá [1], no centro da cidade, diante do grande cruzeiro fincado na colina pedregosa, animados festejos durante anos saudaram a cruz, juntando devotos a rezar o terço e a cantar benditos. Atualmente esta rua é chamada Carvalho Resende, velhíssimo caminho, desde o século XVIII para a mina de ouro do Barro Vermelho, hoje conhecida por Cel. Tamarindo. CINTRA (1988) cita verso de 1892 dando ar misterioso ao lugar:
“Jesus, que casa assombrada!
Coitado de quem for lá...
Junto à subida chamada
- Ladeira do Pau d’Angá!”
Na
festa de 1918, segundo a mesma fonte, o Monsenhor Gustavo Ernesto Coelho, após
pregação, dirigiu a cerimônia de adoração à cruz. Num ambiente enfeitado e
iluminado, com uma corporação musical tocando num coreto. Bem próximo, na
esquina com Rua Padre Faustino, o Cruzeiro Velho ainda é cuidadosamente
adornado, em especial no tempo da Santa Cruz. Ambos são visitados pela
Encomendação das Almas pela quaresma.
No
Bairro São Dimas, o popular Lava-pés, diz-se que o cruzeiro que ladeia a Capela
do Rosário (bem mais recente que ela), foi fincado para espantar dois
sacis-pererê que atentavam o lugar, assoviando de uma parte e respondendo de
outra. Após colocar-se o símbolo sagrado o assombro cessou. Faziam rezas de
Santa Cruz por lá.
Nas
Águas Férreas, Bairro Tijuco, festejou-se o santo madeiro próximo à ponte, num
cruzeiro que ali havia. Embora retirado deste lugar, os encomendadores de
almas, como herança tradicional, ainda param ali para rogar rezas em sufrágio
daqueles que Deus já chamou.
Na
Festa de Santa Cruz usava-se pendurar numa trave diversas sinetas. As crianças
brincavam batendo nelas com varas. Seu som metálico _ contam _ anunciava à
vizinhança a reza noturna, após a qual se confraternizavam. O som de campainhas
e sinetas é ritual, marcando momentos importantes da cerimônia e afastando maus
espíritos. Uso universal.
Cantavam
o tradicional Bendito da Santa Cruz, do qual segue um fragmento:
“Bendito, louvado seja,
Nos céus a divina luz,
E nós também cá na terra
Louvemos a Santa Cruz!
Jesus, quando morreu,
Deixou o mundo sem luz,
Para remir os pecadores
Que morreu na Santa Cruz.”
Em
meados da década de 1990 uma moradora promoveu a reza de Santa Cruz
publicamente nas Águas Férreas, por promessa, diante de uma grande cruz
portátil, enfeitada de papel picotado. Distribuiu cruzinhas adornadas aos
moradores mais vizinhos.
Noutro
ponto do Bairro Tijuco, no também já inexistente Cruzeiro do Betume, SOUZA
[s.d.] descreveu uma lenda da mula-sem-cabeça. O monumento ficou registrado na
mesma obra, em desenho de Armando Pacheco.
Na Gruta do Divino Espírito Santo e Nossa Senhora do Rosário (confluência da Rua Antônio Rocha com a Rua Antônio Josino Andrade Reis), no Centro, no ano 2000, onde também existe um cruzeiro, foi rezado um terço em honra à Santa Cruz no dia 03 de maio, com participação da comunidade local.
Algumas
partes da zona urbana ainda fazem rezas simples à Santa Cruz a 03 de maio ou em
dias próximos a este, sem pompa ou aparato, com um público modesto, porém fiel.
Enfeitam ainda o Cruzeiro do Morro da Forca (no Bairro do Bonfim), o do Senhor
dos Montes e o do Pau d’Angá.
Na área rural ressalva-se as rezas e cantos no arraial do Fé, município de São João del-Rei, junto ao Cruzeiro das Missões, no alto de um campo:
“Bendito és, louvado seja,
Nos céus a divina luz
Por nós também cá na Terra
Louvemos a Santa Cruz.
Naquele Monte Tabor
O verde brilhava à luz;
Depois do raio saiu
O enfeito da Santa Cruz.
Então o Filho de Deus,
Por ver o mundo sem luz
Nos deixou a sua graça
No santo lenho da cruz.
Ela é todo o nosso bem
Sua glória nos conduz
Quando for o penhor da Terra
Louvemos a Santa Cruz.
Essa pia redenção
Amparo, meu Bom Jesus,
Para remir os pecadores
Que morreu na Santa Cruz.
Bendito és, louvado seja,
Para sempre a Santa Cruz!
Bendita seja sem fim,
Para sempre, amém, Jesus!”
Notar a riqueza de fundamentos bíblicos e figurações religiosas neste bendito. Acendem velas junto do Cruzeiro das Missões e o enfeitam com flores. Rezam o terço e pedem perdão pelos pecados [2]:
“Perdão, meu Jesus,
Perdão, Deus de Amor.
Perdão, Deus Clemente
Perdoai-me, Senhor!
Perdão, Deus Clemente,
Perdoai-me, Senhor!
Eis-me aos vossos pés,
Grande pecador...
Por meus enormes crimes,
Perdoai-me, Senhor!”
Sendo
a reza para pedir chuva _ fato de ampla difusão no país _ molham o cruzeiro com
água no madeiro e carregam pedras pesadas por penitência, postas junto à cruz:
“Senhor Deus, misericórdia!
Misericórdia, Senhor!
Nos dê chuva que nos molha;
Nos dê o pão que nos consola!
Nós somos pecadores
Morremos na fome ...”
[3]
Destaca-se
também neste município a devoção a Santa Cruz no distrito de Santo Antônio do
Rio das Mortes Pequeno, tanto na vila que leva este nome quanto nos povoados do
Largo da Cruz e Trabanda. Enfeitam o cruzeiro com flores, bambus, ramos, fitas,
bandeirolas ao redor e do seu topo ao chão, papel picotado, corrente de papel.
Após a parte religiosa pode haver pequena e simples festa de Largo com música
regada a comes-e-bebes.
De
modo especial, no Largo da Cruz, o mês de maio inteiro, todas as noites a
comunidade se reúne para rezar no cruzeiro adornado, único monumento religioso
local. Era um cruzeiro de madeira, enfeitado a cada 03 de maio. Mais tarde, por
seu mau estado de conservação foi substituído por um de alvenaria, enfeitado a
1º de maio. Cantam o tradicional Bendito de Santa Cruz.
Em
dois outros distritos deste município ainda mantém rezas e enfeites nos
cruzeiros: São Gonçalo do Amarante (ex-Caburu) e São Sebastião da Vitória. Vale
por fim relatar uma prática muito expressiva usada neste dia. É a troca dos
enfeites das cruzes de fachada, que o ano inteiro marcam e abençoam a frente
(entrada) das casas, fixadas geralmente ao portal ou sobre ele e à sua lateral
ou, ainda, ao caixilho da janela.
Tem
em torno de 30 cm de comprimento, feitas em madeira. É de praxe enfeitá-las com
papel-crepon picotado em alças ou repiques simples, podendo ter flores
complementando, naturais ou artificiais, de papel ou plástico. Outros complementos
são fitas de papel, pendentes dos extremos.
Muito
usadas na zona rural, diz-se que outrora não havia casa da roça que não a
ostentasse na humilde fachada. Se a frequência já não é mais a mesma, contudo,
ainda não se pode taxá-las de raras e quem passar pelas estradas vicinais,
pouco depois do terceiro dia de maio as verá com enfeites novos. São
encontradas também na área urbana, sobretudo nos subúrbios, mas em proporção
consideravelmente menor. Além de São João del-Rei vários municípios vizinhos
mantém este costume.
É
corrente a lenda que narra que, na noite de Santa Cruz, Nossa Senhora em
espírito passa pelas ruas vendo quais as casas enfeitaram de novo a cruz de seu
bento Filho. Ali ela derrama a sua benção e proteção. Onde não adornaram e ainda
mais, naquelas que tem a cruzinha na fachada, Ela passa direto, sem voltar a
sua bondade para aquele lar.
Tal
lenda é um incentivo piedoso à manutenção do costume, possível reinterpretação
popular do Livro do Êxodo, cap.12, vers.7 que comenta sobre a instituição da
páscoa judaica, quando disse Deus a Moisés e a Aarão que deveria ser ofertado
um cordeiro, do qual “tomarão do seu sangue e pô-lo-ão sobre as duas ombreiras
e sobre a verga da porta das casas em que o comerão”.
As humildes festas de Santa Cruz, acíclicas, praticamente preparatórias às juninas, estão hoje em São João del-Rei bastantes apagadas, resistindo porém nas áreas rurais mais conservadoras.
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| Cruzeiro do Atalho, Distrito de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno (São João del-Rei/MG). Data: 03/05/2019. |
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| Alvorada diante do cruzeiro. Festa do Rosário na Gruta do Divino. São João del-Rei, Centro. Data: outubro/1999. |
| Cruz de Fachada, afixada em uma porta de entrada de residência. Caieira, São João del-Rei. Data: 03/05/2011. |
Referências
ARAÚJO,
Alceu Maynard. Folclore Nacional.
2.ed. São Paulo: Melhoramentos, 1964.
CINTRA,
Sebastião de Oliveira. Efemérides de São
João del-Rei. 2.ed. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1982. v.1, 326p.,
p.91-2.
CINTRA,
Sebastião de Oliveira. Nomenclatura de
Ruas de São João del-Rei. Separata da Revista do Instituto Histórico e
Geográfico de São João del-Rei, n.6, 1998. 24p.
PELLEGRINI
FILHO, Américo. Folclore Paulista:
calendário e documentário. 2.ed. São Paulo: Cortez/Sec. Cultura, 1985. 240p.
SOUZA,
Lincoln de. Contam que... lendas da
histórica e tradicional cidade mineira de São João del-Rei. São João del-Rei: A
Colegial, [s.d.]. 87p.il. p.31-3.
Créditos
-
Texto e fotografias: Ulisses Passarelli.
Notas
-
Publicação original adaptada para esta postagem extraída de:
PASSARELLI,
Ulisses. Como vai nossa primeira
devoção? Tradição. Informativo da Subcomissão Vertentes de Folclore. São
João del-Rei, n.8, maio/2000.
-
Obs.: as fotografias desta postagem não faziam parte da publicação original.
-
Agradecimentos especiais aos principais informantes: Antônio Geraldo dos Reis
(Águas Férreas), Mario Calçavara e Catarina Calçavara (Fé), Luís Santana (São
Dimas), Delfina Ribeiro (Largo da Cruz), Elvira Andrade de Salles (Santa Cruz
de Minas), Júlia Maria de Lacerda e Geraldo Elói de Lacerda (Águas Férreas).
- Revisão: 30/09/2025.
[1] - Ingazeira (Inga edulis), ingá, angá. Árvore
mimosácea de valor medicinal cuja casca em decocção é utilizada como curativo de
feridas antigas e para diarreias em clisteres. Fonte: BALBACH, Alfons. A flora nacional na medicina doméstica.
São Paulo: Edificação do Lar, [s.d.]. p.909.
[2] Canto muito divulgado com diversas variações de texto e música, na mesma linhagem.
[3] Canto também divulgado. Uma variante de Santa Cruz de Minas/MG diz no último verso: “não nos deixa morrer na fome!”





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