Bem vindo!

Bem vindo!Esta página foi criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas, tampouco acadêmicas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




terça-feira, 30 de setembro de 2025

Como vai nossa primeira devoção?

 

O dominador europeu após singrar os mares e aportar nesta Terra de Santa Cruz, ávido por riquezas a explorar, valeu-se de inúmeros subterfúgios para colocar sob seu comando os povos originários e os africanos trazidos para o regime da escravidão. Aliada ao poder governamental, a religião foi um atalho para este processo e a cruz a trilha inicial.

 

Sendo símbolo maior do cristianismo, foi diante dela que se celebrou em solo baiano, a primeira missa deste país, celebrada por Frei Henrique Soares (de Coimbra), em 26/04/1500, em Porto Seguro. Os catequizadores usaram a cruz para doutrinarem os indígenas, como adotaram o rosário para com os africanos, dentre outros símbolos e objetos sagrados.

 

O invasor usou o canto e a dança no processo de catequese, ambos tão queridos das três etnias mais numerosas de nossa formação humana. Surgiram danças e folguedos religiosos cumprindo esta função. Atualmente, a Roda de São Benedito, a Dança de São Gonçalo, as Folias e muitos Congados (no sentido mais genérico) são exemplos e heranças deste sistema, com modelos também noutros países da América Latina, destacando-se a Dança de Santa Cruz nas terras paulistas, estudadas por ARAÚJO (1964) e PELLEGRINI FILHO (1985).

 

Três de maio foi estabelecido como o Dia da Santa Cruz, dito Invenção da Santa Cruz, relembrando a descoberta da cruz na qual Cristo foi pregado, feita por Santa Helena, no século IV. Também a 14 de setembro é festejada _ Exaltação da Santa Cruz _ data, contudo, mais eclesiástica que popular.

 

Esta festa rareou. Uns dizem que o fato se deve à mudança da data oficial, de maio para setembro, quebrando a tradicionalidade, pois os devotos se habituaram à festa no outono. Esta mudança decerto prejudicou o festejo, que, porém, não deve ser culpada isoladamente, haja vista as mudanças sociais vigorosas, incluindo o forte êxodo rural, por ser festa, sobretudo, dos meios não urbanos, ligada ao calendário agrícola. Vale frisar que não é festa exclusivamente rurícola, pois ocorre também nas cidades. Mas é nas roças que atinge maior expressão e originalidade, coincidindo, mormente, com a zona de cultura caipira.

 

Em São João del-Rei foram especialmente afamadas  de Santa Cruz no Senhor dos Montes, durante muitos anos, informou CINTRA (1982). Também na ladeira do Pau d’Angá [1]no centro da cidade, diante do grande cruzeiro fincado na colina pedregosa, animados festejos durante anos saudaram a cruz, juntando devotos a rezar o terço e a cantar benditos. Atualmente esta rua é chamada Carvalho Resende, velhíssimo caminho, desde o século XVIII para a mina de ouro do Barro Vermelho, hoje conhecida por Cel. Tamarindo. CINTRA (1988) cita verso de 1892 dando ar misterioso ao lugar:

 

“Jesus, que casa assombrada!

Coitado de quem for lá...

Junto à subida chamada

- Ladeira do Pau d’Angá!”

 

Na festa de 1918, segundo a mesma fonte, o Monsenhor Gustavo Ernesto Coelho, após pregação, dirigiu a cerimônia de adoração à cruz. Num ambiente enfeitado e iluminado, com uma corporação musical tocando num coreto. Bem próximo, na esquina com Rua Padre Faustino, o Cruzeiro Velho ainda é cuidadosamente adornado, em especial no tempo da Santa Cruz. Ambos são visitados pela Encomendação das Almas pela quaresma.

 

No Bairro São Dimas, o popular Lava-pés, diz-se que o cruzeiro que ladeia a Capela do Rosário (bem mais recente que ela), foi fincado para espantar dois sacis-pererê que atentavam o lugar, assoviando de uma parte e respondendo de outra. Após colocar-se o símbolo sagrado o assombro cessou. Faziam rezas de Santa Cruz por lá.

 

Nas Águas Férreas, Bairro Tijuco, festejou-se o santo madeiro próximo à ponte, num cruzeiro que ali havia. Embora retirado deste lugar, os encomendadores de almas, como herança tradicional, ainda param ali para rogar rezas em sufrágio daqueles que Deus já chamou.

 

Na Festa de Santa Cruz usava-se pendurar numa trave diversas sinetas. As crianças brincavam batendo nelas com varas. Seu som metálico _ contam _ anunciava à vizinhança a reza noturna, após a qual se confraternizavam. O som de campainhas e sinetas é ritual, marcando momentos importantes da cerimônia e afastando maus espíritos. Uso universal.

 

Cantavam o tradicional Bendito da Santa Cruz, do qual segue um fragmento:


“Bendito, louvado seja,

Nos céus a divina luz,

E nós também cá na terra

Louvemos a Santa Cruz!

 

Jesus, quando morreu,

Deixou o mundo sem luz,

Para remir os pecadores

Que morreu na Santa Cruz.”

 

Em meados da década de 1990 uma moradora promoveu a reza de Santa Cruz publicamente nas Águas Férreas, por promessa, diante de uma grande cruz portátil, enfeitada de papel picotado. Distribuiu cruzinhas adornadas aos moradores mais vizinhos.

 

Noutro ponto do Bairro Tijuco, no também já inexistente Cruzeiro do Betume, SOUZA [s.d.] descreveu uma lenda da mula-sem-cabeça. O monumento ficou registrado na mesma obra, em desenho de Armando Pacheco.

 

Na Gruta do Divino Espírito Santo e Nossa Senhora do Rosário (confluência da Rua Antônio Rocha com a Rua Antônio Josino Andrade Reis), no Centro, no ano 2000, onde também existe um cruzeiro, foi rezado um terço em honra à Santa Cruz no dia 03 de maio, com participação da comunidade local.


Algumas partes da zona urbana ainda fazem rezas simples à Santa Cruz a 03 de maio ou em dias próximos a este, sem pompa ou aparato, com um público modesto, porém fiel. Enfeitam ainda o Cruzeiro do Morro da Forca (no Bairro do Bonfim), o do Senhor dos Montes e o do Pau d’Angá.

 

Na área rural ressalva-se as rezas e cantos no arraial do Fé, município de São João del-Rei, junto ao Cruzeiro das Missões, no alto de um campo:


“Bendito és, louvado seja,

Nos céus a divina luz

Por nós também cá na Terra

Louvemos a Santa Cruz.

 

Naquele Monte Tabor

O verde brilhava à luz;

Depois do raio saiu

O enfeito da Santa Cruz.

 

Então o Filho de Deus,

Por ver o mundo sem luz

Nos deixou a sua graça

No santo lenho da cruz.

 

Ela é todo o nosso bem

Sua glória nos conduz

Quando for o penhor da Terra

Louvemos a Santa Cruz.

 

Essa pia redenção

Amparo, meu Bom Jesus,

Para remir os pecadores

Que morreu na Santa Cruz.

 

Bendito és, louvado seja,

Para sempre a Santa Cruz!

Bendita seja sem fim,

Para sempre, amém, Jesus!”

 

Notar a riqueza de fundamentos bíblicos e figurações religiosas neste bendito. Acendem velas junto do Cruzeiro das Missões e o enfeitam com flores. Rezam o terço e pedem perdão pelos pecados [2]

 

“Perdão, meu Jesus,

Perdão, Deus de Amor.

Perdão, Deus Clemente

Perdoai-me, Senhor!

 

Perdão, Deus Clemente,

Perdoai-me, Senhor!

Eis-me aos vossos pés,

Grande pecador...

 

Por meus enormes crimes,

Perdoai-me, Senhor!”

 

Sendo a reza para pedir chuva _ fato de ampla difusão no país _ molham o cruzeiro com água no madeiro e carregam pedras pesadas por penitência, postas junto à cruz:

 

“Senhor Deus, misericórdia!

Misericórdia, Senhor!

Nos dê chuva que nos molha;

Nos dê o pão que nos consola!

Nós somos pecadores

Morremos na fome ...” [3]

 

Destaca-se também neste município a devoção a Santa Cruz no distrito de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno, tanto na vila que leva este nome quanto nos povoados do Largo da Cruz e Trabanda. Enfeitam o cruzeiro com flores, bambus, ramos, fitas, bandeirolas ao redor e do seu topo ao chão, papel picotado, corrente de papel. Após a parte religiosa pode haver pequena e simples festa de Largo com música regada a comes-e-bebes.


De modo especial, no Largo da Cruz, o mês de maio inteiro, todas as noites a comunidade se reúne para rezar no cruzeiro adornado, único monumento religioso local. Era um cruzeiro de madeira, enfeitado a cada 03 de maio. Mais tarde, por seu mau estado de conservação foi substituído por um de alvenaria, enfeitado a 1º de maio. Cantam o tradicional Bendito de Santa Cruz.

 

Em dois outros distritos deste município ainda mantém rezas e enfeites nos cruzeiros: São Gonçalo do Amarante (ex-Caburu) e São Sebastião da Vitória. Vale por fim relatar uma prática muito expressiva usada neste dia. É a troca dos enfeites das cruzes de fachada, que o ano inteiro marcam e abençoam a frente (entrada) das casas, fixadas geralmente ao portal ou sobre ele e à sua lateral ou, ainda, ao caixilho da janela.

 

Tem em torno de 30 cm de comprimento, feitas em madeira. É de praxe enfeitá-las com papel-crepon picotado em alças ou repiques simples, podendo ter flores complementando, naturais ou artificiais, de papel ou plástico. Outros complementos são fitas de papel, pendentes dos extremos.

 

Muito usadas na zona rural, diz-se que outrora não havia casa da roça que não a ostentasse na humilde fachada. Se a frequência já não é mais a mesma, contudo, ainda não se pode taxá-las de raras e quem passar pelas estradas vicinais, pouco depois do terceiro dia de maio as verá com enfeites novos. São encontradas também na área urbana, sobretudo nos subúrbios, mas em proporção consideravelmente menor. Além de São João del-Rei vários municípios vizinhos mantém este costume.

 

É corrente a lenda que narra que, na noite de Santa Cruz, Nossa Senhora em espírito passa pelas ruas vendo quais as casas enfeitaram de novo a cruz de seu bento Filho. Ali ela derrama a sua benção e proteção. Onde não adornaram e ainda mais, naquelas que tem a cruzinha na fachada, Ela passa direto, sem voltar a sua bondade para aquele lar.

 

Tal lenda é um incentivo piedoso à manutenção do costume, possível reinterpretação popular do Livro do Êxodo, cap.12, vers.7 que comenta sobre a instituição da páscoa judaica, quando disse Deus a Moisés e a Aarão que deveria ser ofertado um cordeiro, do qual “tomarão do seu sangue e pô-lo-ão sobre as duas ombreiras e sobre a verga da porta das casas em que o comerão”.

 

As humildes festas de Santa Cruz, acíclicas, praticamente preparatórias às juninas, estão hoje em São João del-Rei bastantes apagadas, resistindo porém nas áreas rurais mais conservadoras.


Cruzeiro do Atalho, Distrito de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno
(São João del-Rei/MG). Data: 03/05/2019. 

Alvorada diante do cruzeiro. Festa do Rosário na Gruta do Divino. 
São João del-Rei, Centro. Data: outubro/1999. 

Cruz de Fachada, afixada em uma porta de entrada de residência. 
Caieira, São João del-Rei. Data: 03/05/2011. 


Referências

 

ARAÚJO, Alceu Maynard. Folclore Nacional. 2.ed. São Paulo: Melhoramentos, 1964.


CINTRA, Sebastião de Oliveira. Efemérides de São João del-Rei. 2.ed. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1982. v.1, 326p., p.91-2.


CINTRA, Sebastião de Oliveira. Nomenclatura de Ruas de São João del-Rei. Separata da Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, n.6, 1998. 24p.


PELLEGRINI FILHO, Américo. Folclore Paulista: calendário e documentário. 2.ed. São Paulo: Cortez/Sec. Cultura, 1985. 240p.


SOUZA, Lincoln de. Contam que... lendas da histórica e tradicional cidade mineira de São João del-Rei. São João del-Rei: A Colegial, [s.d.]. 87p.il. p.31-3.

 

Créditos

 

- Texto e fotografias: Ulisses Passarelli.

 

Notas

 

- Publicação original adaptada para esta postagem extraída de:

PASSARELLI, Ulisses. Como vai nossa primeira devoção? Tradição. Informativo da Subcomissão Vertentes de Folclore. São João del-Rei, n.8, maio/2000.


- Obs.: as fotografias desta postagem não faziam parte da publicação original.


- Agradecimentos especiais aos principais informantes: Antônio Geraldo dos Reis (Águas Férreas), Mario Calçavara e Catarina Calçavara (Fé), Luís Santana (São Dimas), Delfina Ribeiro (Largo da Cruz), Elvira Andrade de Salles (Santa Cruz de Minas), Júlia Maria de Lacerda e Geraldo Elói de Lacerda (Águas Férreas). 

 

- Revisão: 30/09/2025. 



[1] - Ingazeira (Inga edulis), ingá, angá. Árvore mimosácea de valor medicinal cuja casca em decocção é utilizada como curativo de feridas antigas e para diarreias em clisteres. Fonte: BALBACH, Alfons. A flora nacional na medicina doméstica. São Paulo: Edificação do Lar, [s.d.]. p.909.

[2] Canto muito divulgado com diversas variações de texto e música, na mesma linhagem. 

[3] Canto também divulgado. Uma variante de Santa Cruz de Minas/MG diz no último verso: “não nos deixa morrer na fome!”


quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Queima do Judas no Caburu em 2025

A Queima do Judas já foi tratada com maiores detalhes em outras postagens deste blog. Observa-se em toda Mesorregião Campo das Vertentes que arrefeceu acentuadamente. Poucos lugares ainda a conservam; cenário de declínio, intensificado desde o início do século XXI. No próprio distrito em tela, incluso no município de São João del-Rei/MG, onde é muito tradicional, foi realizada anualmente até o ano de 1999, a partir do qual se descontinuou. Somente em 2014 (ver links no final desta postagem) foi reativada, depois de muito incentivo, totalmente às custas da comunidade local e sob o seu formato tradicional. Mas foi uma iniciativa isolada e nos anos subsequentes a manifestação cultural não aconteceu. Mais uma vez houve uma reativação, em 2025, quando no Sábado da Aleluia houve a Queima do Judas e o Boi Malhado saiu no largo, conforme mostram as fotografias desta postagem. 

A versão de 2025, em linhas gerais, seguiu ao mesmo formato daquela de 2014: 

- organização estritamente comunitária, sob a gestão de algumas lideranças do lugar, que se prontificaram livremente a assumir os desafios dos preparativos; 

- o boneco Judas de estrutura artesanal, recheado de bombas e palha de bananeira para enchimento, vestido de roupa velha, cabeça moldada em papel-machê (nitidamente mais aprimorada que a de 2014, graças a um artista local); 

- boneco pendente em uma árvore de embaúba, conforme reza a tradição, afixada a propósito ao centro do largo; 

- brincadeiras para as crianças, à guisa de gincana: corrida do saco, pau de sebo mirim e pegada de balas; 

- outro pau de sebo, bem mais alto, para os adultos; 

- presença do Boi-malhado (versão local do Rancho do Boi) vindo da Travessa Cava Funda para o largo, ao som de pandeiro, caixas e acordeon, pivô de muitas brincadeiras com as crianças, de avanços e recuos, simulacros de ataques marcados por rodopios e corridas; 

- leitura do Testamento do Judas, produzido sob anonimato, obedecendo a um formato fixo, de rimas simples, distribuindo a herança do Judas, coisas que ele deixa para as pessoas do lugar, sempre com muita verve e ironia, não raro em sentido chulo; 

- explosão do boneco, a partir da queima do pavio, concluindo-se com foguetório. 

Em relação a 2014, não houve em 2025 o artefato pirotécnico chamado "avião" ou "aviãozinho", que consiste em um longo arame (que parte do coreto até o boneco) e serve de guia que conduz pendente um mecanismo que imita de maneira simplista a forma de uma aeronave, e contendo um pavio, quando aceso, corre pelo fio de arame e ateia fogo no Judas. Por outro lado, as brincadeiras com as crianças foram muito mais aprimoradas, o que se mostra uma medida importante pelo efeito lúdico e de aprendizado, estimulando o senso de pertencimento. A leitura do testamento teve também o adicional cômico do personagem vestido de terno completo, pasta de documentos à mão, imitando um tabelião de cartório, que despertou risos na assistência. 

Segundo informações orais de populares  que participavam da manifestação cultural, no passado o boi era muito mais agressivo e o que hoje é um ataque simulado, era de fato uma corrida de pega, valendo chifrada e cabeçada, que mandavam ao chão a criança ou jovem que abusava no desafio e provocação. Contaram que houve época de ser um boi bastante grande, que era movido por dois dançantes ao mesmo tempo. Mas as narrativas confluem para afirmar que tanta animação passado tinha por combustível a cachaça... Inclusive, certa vez, os dois colegas metidos debaixo do boi, encontrando-se muito embriagados, caíram com o boi dentro de um valo, sob a zoada dos circunstantes! E não dando conta de retirá-lo, saíram do valo com muita dificuldade, deixando o boi lá dentro. E naquele ano acabou a brincadeira. Hoje, entretanto, a realidade é outra: o boi dança com mais tranquilidade, sem derrubar ninguém e sem a bebedeira dos dançantes, o que preserva a brincadeira de forma sadia e sem riscos.  

1- O boneco Judas enforcado na árvore de embaúba.

2- Programação da festividade afixada na porta de um bar local, 
como forma de divulgação e convite aos moradores.


3- Crianças correm para pegar balas e confeitos, lançados em pegada.
 
4- Tentativas de subir o pau de sebo e ficar com o prêmio. 

5- Crianças aguardam a largada da corrida do saco.
 

6- Detalhe do Boi Malhado.
 
7- Largo em festa. 

8- Boi Malhado, os tocadores e o Judas na árvore.


9- Um representação bem humorada de um "Tabelião do Cartório",
que vem ler o Testamento do Judas.


10- Leitura do Testamento do Judas, do alto do coreto. 


11- Momento da explosão do Judas. 

12- Fogos de artifício em comemoração ao bom êxito da festividade. 


Créditos

- Texto e fotografias 2, 4, 7 e 10: Ulisses Passarelli.
- Demais fotografias: Betânia Nascimento Resende.  

Notas

- Sobre este mesmo festejo em sua edição anterior, de 2014, ver:

domingo, 10 de agosto de 2025

Antônio Garcia da Cunha, o Bandeirante

      Resumo dos antecedentes históricos

 

Existem algumas notícias que se referem a expedições que teriam adentrado o interior do território que hoje pertence a Minas Gerais, na primeira metade do século XVI, mas nada que fosse substancial. A noção de que em tal ermo existiam riquezas como ouro e esmeraldas já vigorava, despertando curiosidade e interesse [1].

Consta que em 1553 o Rei de Portugal, Dom João III, teria dado ordens ao Governador-geral do Brasil, Tomé de Souza, que pesquisasse pelas nascentes do Rio São Francisco, posto que fora informado que os espanhóis descobriram esmeraldas e ouro em seu lado do Tratado de Tordesilhas. A fim de cumprir tal ordem, foi encomendada a tarefa ao castelhano Francisco Bruza Espinosa. Partiu a entrada com vários companheiros, palmilhando o sertão pelo vale do Rio Pardo e chegou ao São Francisco, passando por terras hoje em parte na Bahia e outro tanto em Minas Gerais. Os relatos desta viagem foram registrados pelo Padre Jesuíta João de Azpilcueta Navarro, conforme texto da Wikipédia. O sonho das esmeraldas e outras riquezas tomaria corpo em numerosas expedições.

Ainda segundo a Wikipédia, Sebastião Fernandes Tourinho, vinte anos mais tarde, empreendeu uma jornada admirável ao hinterland, a partir de Porto Seguro, na Bahia. Desceu a costa embarcado. Alcançou a foz do Rio Doce, o qual foi à montante. Junto à sua formação teria descoberto pedras verdes, que supunha serem esmeraldas. Não se sabe com exatidão o local ao qual chegou, posto que o Rio Doce seja formado basicamente pela fusão dos rios Piranga, Carmo e Xopotó; não há informes exatos de qual desses braços fluviais seguiu, variando as informações entre as atuais regiões de Ouro Preto, Viçosa e Arapongas.

Óbvio que tal notícia causou alvoroço. O desejo das fortunas minerais era um antigo sonho dos colonizadores. É mister recordar que o fidalgo português Brás Cubas empreendeu expedição ao interior em 1560, que supõe ter alcançado o Rio São Francisco após transposição da Mantiqueira [2].

Logo Portugal esteve sob o domínio espanhol (1580-1640) e mesmo que naqueles tempos já outros tentassem o sonho da riqueza, o foco era a preação de indígenas para o regime da escravidão e posse de suas terras. Em 1601 André de Leão penetrou através da Serra da Mantiqueira a área do atual sul mineiro, vale do Sapucaí, até o Rio Grande. Sua passagem foi significativa na abertura de caminhos para as bandeiras seguintes. E foram muitas, mas a par da busca pelas preciosidades, não encontradas por décadas, foram os índios que sofreram sob encarniçada perseguição dos bandeirantes paulistas, que os aprisionaram aos milhares pelo interior do país, destruindo inúmeras tribos e deixando incontáveis mortos para trás.

Após Portugal recuperar sua individualidade administrativa, os planos de alcançar as riquezas cresceram e haveriam de ser estimulados. Precisava-se delas para se restabelecer e o incentivo era crescente. Por essa época a captura de povos originários perdeu intensidade aos poucos e a busca pelo ouro aumentou.

Acreditavam portugueses e espanhóis que em algum lugar da imensidão territorial da América existia o El Dorado, montanha de intermináveis riquezas. Os índios, por sua vez, falavam da serra resplandecente, Sabarabuçu, com montanhas de ouro. Havia ainda, desde os primórdios da colonização, as narrativas amerabas acerca do Caminho de Peabiru, longuíssima estrada continental dos povos primitivos do litoral paulista aos Andes, onde havia riquezas sem fim. Segundo VILAR (2013), “havia também a história do Reino de Payati, o qual seria rico em ouro e prata, e ficaria localizado em algum lugar no centro do continente.” Tais rumores estimularam as expedições ao interior vastíssimo.

Fernandes Tourinho já sinalizara a existência das pedras verdes, supostas esmeraldas, de fato, turmalinas. Atrás de tantas riquezas imaginadas partiram diversas expedições sertanistas nos séculos XVI e XVII. As nascentes do Rio São Francisco eram um alvo frequente. Fato é que as sucessivas bandeiras foram aos poucos firmando caminhos e trazendo a lume o território ermo. Foi nesse clima que Fernão Dias Paes organizou em 1674 a célebre “Bandeira das Esmeraldas”. Partindo de São Paulo adentrou pelas terras do vale do Rio Paraíba do Sul, transpôs a Mantiqueira e o sul mineiro, o Rio Grande, o vale do Rio das Mortes e rumou para nordeste, alcançando seu ponto extremo no vale do Jequitinhonha. Em sua jornada de sete anos iniciou povoações, esparramou gente até sem querer, em razão dos muitos desertores de sua bandeira, que buscavam novos pontos de fixação. Foi assim que trouxe moradores para o interior. Figura fundamental na formação inicial de Minas Gerais. Também achou as pedras verdes, e seu verde o fez também crer que eram esmeraldas. Com este alento, ao retornar, faleceu febril de “carneirada” (provavelmente, malária) no Vale do Rio das Velhas.

Outros e outros se sucederam sertão adentro até de fato se descobrir ouro significativo, em Itaverava, 1692, por Antônio Rodrigues Arzão. Outros descobertos se seguiram e isto atraiu milhares de aventureiros de toda parte, que se fixaram e povoaram muitas regiões.

As serras e rios norteavam as caravanas como marcos perenes na paisagem.

A Mantiqueira no início da jornada não tinha como ser desviada. Sua muralha gigante era transposta a partir do vale do Rio Paraíba do Sul pelas gargantas de Embaú, Piracuama e Piquete. Havia também o outro caminho, passando por Atibaia. O Caminho Geral do Sertão subia por passagens primitivas pela Serra das Carrancas, que norteava os viandantes rumo ao vale do Rio das Mortes (Ibituruna[3]) e bem mais tarde foi desviada a partir de Cruzília (primitiva Encruzilhada), fugindo de sua grimpa perigosa e sujeita às temidas tormentas, como alertou MOURÃO (2019, p.22-23). Esta autora fez considerações importantes sobre este atalho.

Do limite norte da Serra de Carrancas, em seu topo, olhando para frente, se avista ao longe o conjunto formado pelas serras de Ibituruna e Bom Sucesso. Pela direita, bem mais distante a nordeste, Lenheiro e São José, como referenciais geográficos.

Da mesma forma, se fosse tomado o atalho em Cruzília, tinha-se como referência maior o avistamento no horizonte do imponente Morro dos Dois Irmãos, e à sua esquerda, o Morro ou Serra da Covanca. Entre os dois a bocaina de passagem. Uma vez vencidos, também na opção deste atalho, o Lenheiro e o São José eram as referências geográficas subsequentes.

Na longa caminhada pelos campos-cerrados, ao longe, se avistava então, fosse pelo caminho velho ou pelo atalho, o vulto do Lenheiro, pareado com a Serra de São José, qual vigias altaneiros junto à passagem mais propícia do Rio das Mortes. Ali se tomava o rumo nordeste com mais vigor e certeza. Era o marco físico da conversão direcional da jornada, implicando na prática, no redirecionamento. Revelava aos povoadores e exploradores das Minas Gerais, que rumo tomar. Transpunham o vale do Rio das Mortes, demandando ao Tripuí, Rio das Velhas e outras áreas, sob o impulso do sonho geral das riquezas.

Após o Lenheiro e o São José, a Serra de Camapuã era a referência mais altaneira, visível desde aquelas. Adentrando pela várzea do Marçal, a seguir, como se num corredor de morros e serras, caminhavam tendo ao lado esquerdo as serras do Canhambora, Bom Retiro e Boa Vista, em Coronel Xavier Chaves; lá adiante as Vertentes, na travessia por Lagoa Dourada; logo mais, à direita, a imponente Camapuã, serra em parte no atual município de Entre Rios de Minas. Do lado oposto e adiante, a silhueta da Serra do Gambá, beirando Entre Rios e Jeceaba. Depois as bases meridionais da cadeia do Espinhaço, em São Brás do Suaçuí eram o guia de campo. Outro corredor vinha após, tendo a Serra de Ouro Branco à direita e a da Moeda à esquerda. A morraria do meio se transpunha com dificuldade, mas as grandes serras eram evitadas pelo alto risco e esforço maioral. 

Inúmeros relatos dão conta como tais caminhos foram trilhados. Após o ano de 1700 houve a facilitação do Caminho Novo, vindo direto do Rio de Janeiro às minas, com interligações até o caminho velho a partir da altura do Registro Velho (hoje em Sá Fortes, distrito de Antônio Carlos), Igreja Nova (Barbacena) e Ressaca. Todavia existem alusões à sua existência anterior, como escreveu PARDINI (2019, p.139): “Antes de 1694 o sul de Minas Gerais, entre os rios Sapucaí e Grande, já estava percorrido, a ligação entre o Rio de Janeiro e a Borda do Campo já era conhecida”.

 

Primeiros descobertos auríferos na região

 

Procede do final do século XVII duas notícias de alguns descobertos dos mais antigos. Se eles não dão garantia nem exatidão de terem sido aqui onde hoje se situa São João del-Rei, ao menos, por aproximação, se postam na região à qual esta urbe pertence (Vale do Rio das Mortes). Desta sorte, narra ORTIZ (1996), que em 1693, partiu de Taubaté/SP a bandeira do Padre João de Faria Fialho, o qual, segundo seus dizeres,

 

“comandando a bandeira que penetrou nos sertões dos cataguás, percorrendo os vales do Sapucaí, do Grande e do rio das Mortes, onde seus integrantes descobriram algum ouro, além de safiras em vieiros de pedras cravadas. (...) permaneceu por vários anos nas regiões auríferas do Rio das Mortes, onde continuou a encontrar ouro, labutando em companhia de outros sertanistas”.

 

Ainda ORTIZ (1996, v.2, p.222) informou que alguns anos mais tarde “no final da última década seiscentista” (provavelmente 1698-9), foi a vez de Gaspar Vaz da Cunha, cognominado “Jaguara”, que acampou a bandeira onde “os índios lhe mostraram o metal precioso no capim, sob a forma de folhetas e grãos.”

Quando o Padre Faria veio a esta região a mesma já era conhecida e tinha caminhos estabelecidos, pois muitas bandeiras lhe haviam antecedido. Sua expedição trilhou entre Aiuruoca e o Ingaí; Baependi e Ibitipoca. Mas como acontece com o historico de praticamente todas as bandeiras, o caminho exato que trilharam é desconhecido e tão somente estimado segundo a conjectura de cada estudioso. PARDINI (2019, p.123), em análise de diversas fontes do movimento sertanista, escreveu:

 

“Na ausência de consenso acerca do tema ‘roteiros de expedições’, ao menos há uma tendência de que os cronistas e historiadores pesquisados concordem com o fato de Ibituruna, na travessia do rio das Mortes, ser um ponto de controle intermediário para as viagens que atravessavam a serra da Mantiqueira. Em compensação, a partir de Ibituruna as possibilidades eram inúmeras”.

Os achados iniciais, ainda que não tenham sido de grande monta, devem ter chamado a atenção. Não foi um descoberto fortuito e pontual, pois a citação diz claramente que ao partir para a região do Tripuí, Padre Faria deixou gente sua (a minerar...) na região do Rio das Mortes. Estes mineiros moraram um tempo na região. Para se aquilatar melhor esta questão: a expedição é de 1693, mas só chegou ao Tripuí cinco anos depois. Tal viagem durava, se contínua fosse, ao todo, dois meses ou dois e meio. Durante todo esse tempo, de 1693 a 1698 a bandeira vasculhou o sertão à busca de riquezas; daí o dito que “moraram”… Tal achado possivelmente serviu de estímulo ao Jaguara, que dotado de espírito indômito, e já experiente sertanista, encontrou ainda mais ouro. Portanto, com razão, ORTIZ (1996, v.2, p.287) afirmou sobre as descobertas de ouro: “Muitos autores olvidam as menores na incompreensão de que o encontro das primeiras faíscas foi ponto de partida e chamariz para os descobertos maiores que se sucederam”.

Não obstante estas citações referenciarem achados auríferos na região do Rio das Mortes no final dos seiscentos, tal afirmação contraria o Códice Costa Matoso (1999, p.240), que aponta os descobertos apenas após a morte de Tomé Portes:

 

“Eu fiz quatro viagens a estas Minas, em que gastei alguns três anos pela dificuldade do caminho, e vim a ficar cá em 1702, e em todo este tempo não se presumia haver ouro no rio das Mortes, só sim morava ali um paulista por nome Tomé Portes, que vendia mantimentos aos passageiros e era o senhor da canoa de passagem, e depois que suas amas e pajens o mataram, se descobriu ouro com grandeza.”

 

É pertinente diferenciar achados de monta ou capazes de uma exploração “industrial”, que compensavam investir esforços frente ao rendimento, em oposição aos pequenos descobertos, de parca produção, que naturalmente não despertavam a mesma atenção.

 

O primeiro núcleo populacional

 

Ora, estes dois achados por si apenas (se é que não houve outros...), justificariam plenamente a nomeação de um guarda-mor distrital para a região do Rio das Mortes. Isto se deu em 1701, com Tomé Portes del-Rei.

Não se sabe a data exata de sua chegada aqui, estimada por muitos no período compreendido nos últimos cinco anos do século XVII. Estabeleceu-se no Porto Real da Passagem, travessia do Rio das Mortes pelo caminho velho; ali fundou sua base, fazenda, estalagem para viajantes, plantou e criou, pois consta que fornecia mantimentos e víveres para os sertanistas. Veio com família e escravos. Tornou-se morador fixo, estabelecendo assim o primeiro núcleo populacional comprovado, na área hoje pertencente ao Bairro de Matosinhos, que desde sempre foi São João del-Rei (jamais mudou de jurisdição administrativa).

O Capitão Joseph Matol, contemporâneo e uma das lideranças de resistência na Guerra dos Emboabas (1707-1709), foi claro e preciso ao descrever em suas memórias a posição do Porto Real da Passagem: “morando sobre o rio das Mortes desta parte, aonde hoje é, e foi sempre o porto da passagem”. Referia-se à morada do Guarda-mor substituto, Antônio Garcia da Cunha. Cronista fidedigno, não deixou margem à contestação. Convém, contudo, destrinchar sua frase:

1- como escrevia da perspectiva de São João del-Rei, onde morava, ao dizer desta parte referenciava a mesma margem do rio (esquerda), lado são-joanense até hoje. Mesmo que fosse a margem oposta, a jurisdição oficialmente pertenceu a São João del-Rei até a região do Córrego de Dona Antônia, hoje Santa Cruz de Minas, sendo a data limite o ano de 1755. Segundo BARREIROS (1976, p.99-103), no citado ano o Ouvidor Geral da Comarca do Rio das Mortes, Francisco José Pinto de Mendonça, em ato de correição, determinou que o Rio das Mortes fosse a divisa, ficando a margem esquerda a São João del-Rei e a direita a São José del-Rei (hoje Tiradentes);

2- sobre o rio das Mortes: sobre – acima; em nível mais elevado que. Tal menção alude à altitude mais elevada que a várzea do rio, sempre sujeita às enchentes. Isto traz como única possibilidade física (geográfica) o núcleo para o largo de Matosinhos, de maior altitude;

3- hoje é, e foi sempre: define um espaço temporal: passado (foi sempre: antes dos fatos narrados) – presente (hoje é: ainda ativo na época da narração). O relato de José Matol, tal  como o de Joseph Alvarez de Oliveira, tinha natureza memorialística, posto que escritos respectivamente em 1740 e 1750-1.

Entretanto, como ponto de oposição ao acima considerado há o posicionamento do núcleo primitivo do Porto para a margem oposta, como consta sob a marcação “TomePortes” no mapa do padre jesuíta francês Jacobo Cocleo, já conhecido em 1696 [4].

ORTIZ (1996, v.2, p.135) deu informações fundamentais sobre o Capitão Tomé Portes del-Rei: 

“Na segunda metade da última década seiscentista, já pelos sessenta anos, ingressou nos sertões mineiros comandando bandeira, acompanhado de muitos moradores do termo de Taubaté, dentre os quais seu genro, Antônio Garcia da Cunha. Tomé Portes e esse seu genro incluem-se dentre os primeiros povoadores da região de São João del-Rei, onde acharam ouro, estando também no rol dos pioneiros do descobrimento desse metal no rio das Mortes. Afazendaram-se com a família no local, antes da entrada do século XVIII.” (grifei) 

Neste excerto está em destaque que ele veio no comando de uma bandeira, trazendo gente consigo. Isto parece sintomático que sua fixação no Porto fosse bem além de mera fazenda ou agente governamental de cobrança de impostos de travessia fluvial: Tomé Portes teve papel na constituição de um núcleo populacional, pois como disse José Bernardo Ortiz, veio acompanhado de muitos moradores do termo de Taubaté (e não apenas a família e escravos como repisa a sua história propalada). Atesta também que tal se deu ainda no século XVII. Para além, os sertanistas embrenhavam-se nos caminhos como um verdadeiro grupamento militar, independente de ter finalidade de colonização (no sentido de fixação em algum lugar) ou de preação de indígenas.

Todos estes fragmentos se unem numa figura de quebra-cabeças, que decerto faltam peças, mas esboça uma imagem. O ir e vir de sertanistas, já era frequente, mas os primeiros achados na região do Rio das Mortes (região muito ampla e imprecisa) pelo Padre Faria e pelo destemido Jaguara, deflagraram um interesse especial pela área desta bacia hidrográfica, cujo potencial se despontava. No mais, os pontos de travessia dos rios eram estratégicos e tinham um especial interesse. Em geral neles se fixavam elementos de tributação, aluguel de canoas e balsas, roças para fornecer alimentos. Se Tomé ficou na travessia do Rio das Mortes, o Jaguara, um pouco mais tarde, de volta à região, fez morada próximo à travessia do Rio Grande, nas imediações da comunidade que ainda preserva seu epíteto, Jaguara, distrito de Nazareno.

Em 1701, quando saiu a nomeação de Tomé Portes para guarda-mor, ele já era morador fixo da região. Não veio para cumprir o papel de um cargo. Veio para ser fazendeiro, como já era em terras paulistas, e aqui se fez merecedor da nomeação.

A leitura do consistente estudo de Adriana Romeiro sobre a Guerra dos Emboabas nos revela, ao tratar das condições político-administrativas que pairavam sobre as minas no final do século XVII e princípio do XVIII, que como plano de governo sobre a repartição sul, Artur de Sá e Meneses, então governador da capitania a partir de abril de 1697, visou fortemente “incrementar os trabalhos de mineração e aumentar a arrecadação dos quintos.” (ROMEIRO, 2008, p.52). Para tal, desenvolveu uma muito bem sucedida política de aproximação com os paulistas através da sua nomeação para cargos, concessão de títulos e combate à crise de alimentos nas minas, segundo a mesma fonte:  

 

“Ao longo de sua jornada por terras jamais pisadas por autoridade régia, criou cargos, distribuiu patentes, implantou regimento, enfim, prodigalizou-se no uso das formas simbólicas do poder, arrebanhando os paulistas para a esfera da Coroa e, ao mesmo tempo, afagando-lhes o gosto pela distinção. (p.52) (...) Sensível às grandes fomes que assolaram a região entre 1698 e 1699 e entre 1700 e 1701, (...) tratou de solucionar o problema do abastecimento, um dos maiores obstáculos ao aumento da população local. (p.52) (...) Demonstrando intimidade com a gente do Planalto, Sá e Meneses começou por ordenar o plantio de mantimentos nos caminhos para as minas e nas passagens dos rios, incorporando, assim, um velho costume dos sertanistas. (p.53; grifei) 

 

A autora não cita Tomé Portes nesta passagem, mas se depreende de suas linhas, que havia um plano de governo, ao qual o trabalho feito por Tomé Portes se encaixava. O governador citado fez três viagens às minas, e quando Tomé foi nomeado, ele se encontrava nelas. A autora esclarece que o domínio jurisdicional sobre a complicada região das minas se acerta “com a nomeação de um superintendente e guarda-mor das minas” (p.50) e que o Governador Arthur de Sá e Meneses “conseguiu implantar os fundamentos da estrutura administrativa da zona mineradora” (p.51).

A obra sobre Taubaté de José Bernardo Ortiz é uma fonte fundamental de consulta sobre Tomé Portes del-Rei. É principalmente deste autor que coligimos os seguintes dados sobre o personagem histórico: nos diz que ele procedia de família abastada. Supõe-se que nasceu em Mogi das Cruzes, mas fez vida em Taubaté, onde foi rico fazendeiro. Era filho de João Portes del-Rei e Juliana Antunes. O pai era um português de classe nobre, capitão, comandou uma entrada pelo vale do Paraíba, em companhia do genro, Bartolomeu da Cunha Gago, casado com Marta Portes del-Rei. Esse Bartolomeu foi vanguardeiro da expedição de Fernão Dias. Juliana Antunes era descendente de Antônio Preto, povoador da capitania de São Vicente da segunda metade do século XVI.

Teve Tomé Portes como irmãs: Ana, Marta e Catarina, todas assinando Portes del-Rei.

A data de nascimento de Tomé Portes é estimada por volta de 1630. Detinha o título de capitão e em Taubaté foi juiz ordinário e de órfãos. Tinha fazenda em Caçapava Velha. Casou-se com Juliana de Oliveira. Ela, após a morte de Tomé, voltou a Taubaté, onde faleceu em 1728. Era taubateana, filha de Francisco Correa de Oliveira, paulista falecido em 1686, e de Ângela da Mota.

Tomé Portes e Juliana de Oliveira tiveram, juntos os seguintes filhos:  

- João Portes del-Rei (faleceu em 1728) – c/c - Catarina Bicudo

- Francisco Homem del-Rei – faleceu solteiro

- Leonor Homem del-Rei – c/c  - Sargento-mor Miguel Garcia Velho

- Maria Antunes Cardoso (fal.1759) – c/c – Cap. Antônio Garcia da Cunha (casamento: 1688)

- Margarida Antunes Cardoso - c/c – Antônio da Cunha Gago (casamento: 1697)

Tomé Portes del-Rei morreu em 1702, assassinado por alguns escravos. Ocorre que outros cativos vingaram a morte do senhor, matando os assassinos. É o que consta, sendo desconhecidos os detalhes que geraram tal circunstância, caindo no campo da hipótese qualquer inferência. Fato é que naqueles primórdios das áreas minerais, reinavam a passos largos os atos de violência e a ineficácia administrativa da Coroa destacou muito bem ROMEIRO (2008) em seu robusto estudo sobre a Guerra dos Emboabas.

 

Antônio Garcia da Cunha

 

Sobre o segundo guarda-mor distrital, Antônio Garcia da Cunha, que substituiu o sogro, em verdade pouco se sabe. Segue um rol de informações gerais a seu respeito, reunidas a partir de obras de genealogia (LEME, 1999; MATOSO, 1999; GENEAMINAS, s/d):

- Viveu por setenta anos. Nascido em São Paulo em 1661. Falecido em Taubaté em 1731; 

- Filho do casal paulista Garcia Rodrigues Moniz (inventariado em 1659) e Catharina de Unhatte (falecida em 1691);

- Neto paterno de Manoel Garcia Velho (? -?) e Maria Moniz da Costa (c.1594-1659);

- Neto materno de Antônio da Cunha Gago (? -?) e Martha de Miranda (? -?);

- Irmãos: Miguel Garcia da Cunha, Garcia Rodrigues Moniz, Catarina Dias, Martha de Miranda (neta), Manoel Garcia Bicudo, Manoel Garcia da Cunha;

- Casou-se em 1688 com Maria Antunes Cardoso (filha de Tomé Portes del-Rei e Juliana de Oliveira);

- Filhos deste casamento – doze, sendo dois homens e dez mulheres, segundo LEME (s/d):

1- Francisco Portes (falecido sem geração);

2- Juliana de Oliveira (casada com Antônio Raposo);

3- Catharina Garcia de Unhatte (casada com Álvaro Soares Fragoso);

4- Margarida Antunes (c/c Manoel Moreira);

5- Angela da Motta (c/c João Fernandes de Sousa);

6- Francisca Cardoso (c/c Gaspar Vaz Guedes);

7- Antonia Portes (c/c João Barbosa de Lima);

8- Maria Portes (c/c Cap. Guilherme Moreira);

9- João Antonio Garcia;

10- Martha (c/c José Moreira Cordeiro);

11- Gertrudes (c/c João Alvares);

12- Luzia (c/c Domingos Rodrigues Arzam).

-Tinha o título de Capitão;  

- Mudou-se para o vale do Rio das Mortes, no Porto Real da Passagem, em data incerta, estimada na última década seiscentista, após 1695;

- Com a morte do sogro em 1702, assumiu seu cargo de guarda-mor;

- Como tal, direcionou as gerenciou de datas minerais referentes aos descobertos auríferos no complexo Serra do Lenheiro em 1704;

- Fundou o Arraial Novo de Nossa Senhora do Pilar em 1705 ou pelo menos dividiu os terrenos de mineração (datas) que deram origem ao dito arraial;

- Voltou para Taubaté em 1707, no princípio ou logo antes da Guerra dos Emboabas.

Com sua partida para Taubaté assumiu o cargo Pedro de Morais Raposo, que aqui já residia desde pelo menos junho de 1706. Homem de forte influência local foi promovido a superintendente distrital em 08/02/1708, depois a Capitão-mor, e participou da formação da primeira vereança de São João del-Rei, eleito em 09/12/1713, na qualidade de primeiro juiz.

 

Referências

 

ALVARENGA, Luis de Melo. São João del-Rei e seu Fundador. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, n. 4, 1986.

BARREIROS, Eduardo Canabrava. As Vilas del-Rei e a Cidadania de Tiradentes. Rio de Janeiro: José Olympio / INL, 1976. 128p.il.

DANGELO, André G.D. (Org.). Origens históricas de São João del-Rei. Belo Horizonte: BDMG Cultural, 2006. 127p.il.

FREITAS, Afonso A. de. Emboaba. Revista do Arquivo Municipal. São Paulo, Departamento de Cultura, 1934, n.1, p.35-41.

GAIO SOBRINHO, Antônio. Sanjoanidades: um passeio histórico e turístico por São João del-Rei: A Voz do Lenheiro, 1996. 104p.

______ . Visita à colonial cidade de São João del-Rei. São João del-Rei: FUNREI, 2001.128p.

______ . São João del-Rei através de documentos. São João del-Rei: UFSJ, 2010. 260p.

______ . Fontes históricas de São João del-Rei. São João del-Rei: UFSJ, 2013. 154p.

GUIMARÃES, Fábio Nelson. Fundação Histórica de São João del-Rei. São João del-Rei: [s.n.], 1961.

GUIMARÃES, Fábio Nelson. O município de São João del-Rei aos 250 anos de sua criação. São João del-Rei: Progresso, 1963. 55p.

GUIMARÃES, Geraldo. Catauá.  In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, n. 5, 1987.

______ . A Bacia do Rio das Mortes.  In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, n. 6, 1988.

HENRIQUES, José Cláudio. Bairro de Matosinhos: berço da cidade de São João del-Rei. São João del-Rei: UFSJ, 2003.

MOURÃO, Maria da Graça Menezes. Carrancas: uma capela no Caminho Real. 2.ed. São Paulo: Scortecci, 201173p. 9.

ORTIZ, José Bernardo. São Francisco das Chagas de Taubaté. 2.ed. Taubaté: Prefeitura Municipal, 1996. 2v.

ROMEIRO, Adriana. Paulistas e Emboabas no Coração das Minas: ideias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: UFMG, 2008. 431p.

VALE, Dario Cardoso. Memória Histórica de Prados. 2.ed. Belo Horizonte: Armazém de Ideias, 2000. 600p.il.

VENÂNCIO, Renato Pinto, ARAÚJO, Maria Marta (Org.). São João del-Rey, uma cidade do Império. Belo Horizonte: Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais / Arquivo Público, 2007.

Fontes na internet

ANTONIL, André João, Padre. Cultura e Opulência do Brasil: por suas drogas, e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslanderina, 1711. Reimpressão, Rio de Janeiro, 1837. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/222266 Acesso em: 12 mar. 2020.

MATOSO, Caetano da Costa. Códice Costa Matoso: coleção das notícias dos primeiros descobrimentos das minas na América quê fez o doutor Caetano da Costa Matoso sendo ouvidor-geral das do Ouro Preto, que tomou posse em fevereiro de 1749, & vários papéis. Belo Horizonte: FAPEMIG / Fundação João Pinheiro, 1999. Coleção Mineiriana – Obras de Referência. 2v. Disponível em:http://www.bibliotecadigital.mg.gov.br/consulta/consultaDetalheDocumento.php?iCodDocumento=53683 Acesso em: 25 out. 2022.

 

ESCHWEGE, Wilhelm Ludwig von, Barão de. Pluto Brasiliensis. Tradução do original alemão Domício de Figueiredo Murta. São Paulo: Nacional, 1944. 2v. Disponível em: https://bdor.sibi.ufrj.br/handle/doc/343 Acesso em: 12 mar. 2020.

 

Francisco Bruza Espinosa. In: Wikipédia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Francisco_Bruza_Espinosa Acesso em: 13 mar. 2020.

Garcia Rodrigues Muniz e Catharina de Unhatte. GeneaMinas. Disponível em: https://www.geneaminas.com.br/genealogia-mineira/restrita/enlace.asp?codenlace=1329684 Acesso em: 25 out. 2022.

HENRIQUES, José Cláudio. Tomé Portes del-Rei e a fundação do 1º Núcleo Habitacional da região do Rio das Mortes. In: DocPlayer. Disponível em: https://docplayer.com.br/63562489-Tome-portes-del-rei-e-a-fundacao-do-1o-nucleo-habitacional-da-regiao-do-rio-das-mortes.html Acesso em: 25 out. 2022.

LEME, Luiz Gonzaga da Silva. Genealogia Paulistana: título Garcias Velho – parte 2. V.1 p.433 – 470, 1999. Disponível em: http://www.arvore.net.br/Paulistana/Garcias_2.htm Acesso em: 25 out. 2022.

PARDINI, Herbert. Caminhos antigos e paisagens imaginadas no Termo de Ouro Preto em 1835. UFV, Dissertação, 2019. Disponível em: https://www.locus.ufv.br Acesso em: 30 out. 2022.

PASSARELLI, Ulisses. Um passeio histórico pelo Bairro de Matosinhos. In: Matosinhos: história & festas, 21 de dezembro de 2012. Disponível em: https://festadodivinosjdr.blogspot.com/2012/12/esboco-historico-basico.html Acesso em: 18 set. 2022.

RECEITA FEDERAL / Ministério da Economia. Superintendências das Minas. Disponível em http://www.receita.fazenda.gov.br/historico/srf/historia/catalogo_colonial/letras/super_minas.htm Acessado em 14 nov. 2022. 

SAINT-ADOLPHE, J.C.R. Milliet. Diccionario Geographico, histórico e descriptivo, do Imperio do Brazil. Paris: J.P. Aillaud, 1845. 2v. In: Biblioteca Digital UNESP. Disponível em:  https://bibdig.biblioteca.unesp.br/handle/10/28232  Acesso em: 26 mar. 2020.

Sebastião Fernandes Tourinho. In: Wikipédia. Disponível em:  https://pt.wikipedia.org/wiki/Sebasti%C3%A3o_Fernandes_Tourinho Acesso em: 13 mar. 2020.   

VILAR, Leandro. Uma breve história das entradas e bandeiras. In: Seguindo os passos da história. 17 de março de 2013. Disponível em: http://seguindopassoshistoria.blogspot.com/2013/03/uma-breve-historia-das-entradas-e.html Acesso em: 26 mar.2020.


Créditos

Pesquisa e texto: Ulisses Passarelli. 

Notas

-  Texto originalmente apresentado como defesa de patrono, do titular da cadeira nº40, IHG-SJDR, adaptado para este blog, a partir da sua publicação original em: 
Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, v.16, 2023. 220p. p.10-26.


[1] - Descobrimento e devassamento do território de Minas Geraes. Revista do Arquivo Público Mineiro http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/acervo/rapm_pdf/1702.pdf (acessado em 31/01/2022, 21:47h)

[2] - Descobrimento e devassamento do território de Minas Geraes (op.cit.).

[3] - Muito embora esteja bastante consolidado que a fundação de Ibituruna se deu a partir de uma antiga feitoria estabelecida por Fernão Dias, em 1674, ao que parece o lugar já era conhecido pelos bandeirantes muito antes: GUIMARÃES (1988, p.39), relembra um episódio da bandeira de André de Leão (em 1601), que segundo as crônicas do holandês Wilhelm Joost ten Glimmer, que dela deixou escrito um roteiro, “fez pouso numa taba de índios mansos à beira do Rio das Mortes, nas paragens onde hoje se localiza Ibituruna, daí aprofundando-se no sertão.” Estima-se que tenha alcançado as cabeceiras do Rio São Francisco. De Ibituruna o Caminho Geral do Sertão seguia margeando o Rio das Mortes, como pouca diferença pelas imediações, até a área de travessia no Porto Real da Passagem.

[4] - Conhecido graças a uma cópia setecentista, que se supõe posterior à morte do padre jesuíta, que ocorreu na Bahia em 1710. Pertence à mapoteca do Arquivo Histórico do Exército, Rio de Janeiro. Mapa da maior parte da costa e sertão do Brazil.  Para mais informações sobre o assunto ver:

SANTOS, Márcio Roberto Alves dos. A cópia setecentista de Jacobo Cocleo: leituras e questões. In: UFMG   https://www.ufmg.br/rededemuseus/crch/simposio/SANTOS_MARCIO_ROBERTO_A.pdf (acessado em 06/02/2022, 12:47h). 

Sobre as questões míticas figuradas nos antigos mapas, inclusive o de Cocleo, ver:

DELVAUX, Marcelo Mota. Cartografia imaginária do sertão. http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/acervo/rapm_pdf/2010D11.pdf (acessado em 06/02/2022, 18:11h)