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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Boi do Rosário

Breve descrição do impressionante cortejo oliveirense  

Ulisses Passarelli

Na cidade de Oliveira, com pouco mais de 40.000 habitantes, que encabeça uma das microrregiões do Oeste de Minas Gerais, já fora do Campo das Vertentes, mas na vizinhança imediata, compartilhando elementos culturais mutuamente, a Festa do Rosário é um marco notório da fé popular e das tradições folclóricas de base histórica afro-brasileira. 

Tais festas são muito arraigadas no Estado e na zona oeste alcançam muita popularidade, mas em Oliveira ganham uma relevância pela extensão (levantamento de mastros um mês antes dos festejos) e a festa propriamente dita mobiliza uma semana completa de reinados, capazes de mobilizar os congados da terra, entre vários moçambiques e catupés e um vilão, ao todo, algo em torno de uma quinzena de grupos culturais (guardas ou ternos). Poucos são os grupos visitantes, entretanto, a grande quantidade de guardas locais já faz uma festa de elevada qualidade. É tudo cuidadosamente pensado e cuidado: coreografias, ritmos, uniformes, cantos, fardamento, identidade cultural. O reinado tem sua passagem de forma marcante. Os coroados com toda postura e respeito, vem munidos de fato de muita legitimidade para os papéis sagrados, com trajes primorosos, zelo com penteados e adereços, marchando com postura majestática sob as umbrelas. 

Mas nesta postagem o foco recairá sobre o Boi do Rosário. Sob o olhar da folclorística pode-se qualificar esta manifestação cultural como uma forma do bumba-meu-boi, sob o viés de um rancho, sem entrecho dramático evidente, mas obedecendo a uma ritualística sólida. A multidão acompanhante se ocupa muito mais do entretenimento de atiçar o boi e fugir de suas investidas. Mas a equipe organizadora faz o boi cumprir um rito, a rigor. Apesar do aparente caos tudo é muito bem organizado. 

Das informações coligidas in loco o Boi objetiva de forma primária abrir os caminhos da Festa do Rosário. É como se o cortejo gigante fizesse uma abertura espiritual e energética das vias públicas para as passagens dos congados nos dias seguintes, tudo no campo simbólico e sob a égide da fé. Há forte vinculação entre o boi e o congado. Eles não saem juntos, mas estão interligados. A própria música do boi, de natureza percussiva, é marcada por tambores congadeiros (observamos a presença de sete caixas). O boi inicia e termina na Casa dos Congadeiros Geraldo e Conceição Bispo, no Bairro das Graças; muitos congadeiros aliás se envolvem com o cortejo do boi. 

No giro pelas ruas centrais o Boi do Rosário passa junto à Igreja Matriz Nossa Senhora de Oliveira e na lateral da praça, o boi saúda lentamente, com vênias e salamaleques, cada um dos cinco mastros (Rosário, Mercês, Senhora Aparecida, Santa Efigênia, São Benedito), sob guiamento do Candieiro (personagem que munido de uma vara de ferrão conduz o boi). Na porta da Igreja dos Passos o boi vem saudar a entrada da casa santa reverenciando as ombreiras da portada com movimentos da cabeça. Vimos o Boi do Rosário visitar no Alto de São Sebastião a casa do Rei Congo, onde o Carregador da Balaieira (o homem que vai dentro da armação do Boi), a Comissão Organizadora, os caixeiros, são recebidos com comes e bebes e o cortejo estaciona um pouco. Na sequência o boi desceu até a Casa Azul, sede do Moçambique Nossa Senhora das Mercês, da Capitã Pedrina, onde foram também recepcionados com toda gentileza e protocolo. 

Marcado para sair às 19h e 30 min, o Boi saiu quinze minutos depois, e só encerrou o giro pelas ruas meia noite e meia (zero horas e trinta minutos). Até o encerramento o movimento era frenético, os acompanhantes não esmoreceram o ânimo. Caixas zoando fortemente os couros, canto do povo a repetir com insistência o refrão tradicionalíssimo "Êh, boi!". E se o boi passa um tempo sem correr atrás do povo, se ele fica um prazo curto só no movimento de balanceio e passinhos curtos, logo o instigam: 

"E solta o Boi!

_ Êh, Boi!

E solta o Boi!

_ Êh, Boi!"

De repente o batido das caixas muda para um rufado e neste instante o boi dispara sobre o público, em correria, giros, pinotes, cabeçadas. Logo para e a percussão retoma o batido padrão e a marcha pelas ruas também, mas sempre neste momento, sob os apupos frenéticos dos acompanhantes. Muitos estendem as mãos acariciando seu focinho e testa, como se de fato fosse vivo, tivesse alma. Com a longa caminhada e o passar das horas os integrantes diminuem em quantidade. Mas os muitos que ficam não esfriam os ânimos. Chega a ser bastante difícil aproximar-se do boi para vê-lo em detalhes ou fotografá-lo. 

A chegada na Casa do Congadeiro marca o fim para os acompanhantes. A Comissão adentra, há cerimônia interna com preces, janta e bebidas num momento de confraternização. O boi só sai às ruas nesse dia, durante todo o ano, apenas uma vez. 

No interior de Minas Gerais há uma diversidade de grupos de bois. Um número acentuado deles floresceu no Ciclo do Carnaval, sob várias denominações. Oliveira mesmo também possui um, intitulado Boi da Paz. Outros mais surgem na quadra natalina, mormente no norte mineiro e Vale do Jequitinhonha, batizados Reis de Boi ou ainda Boi-janeiro. Em alguns lugares os Bois se desenvolveram conectados a festas locais. Nesta última categoria está o Boi do Rosário. Aliás, sob o nome de Boi do Rosário e igualmente vinculado aos congados, o rancho do boi também acontece na abertura da Festa do Rosário na vizinha cidade de Carmópolis de Minas, também no Centro-Oeste de Minas Gerais.

Não se sabe ou não se tem clareza da data de sua fundação em Oliveira, ou como iniciou. A tradição oral o dá como muito antigo. Encontramos em um canal de vídeos uma filmagem datada de 1991 na qual o Boi do Rosário aparece, cumprimentando uma Rainha Conga com o bater a cabeça sucessivamente no ombro direito dela, no esquerdo e direito de novo, da mesma maneira do cumprimento congadeiro e do cumprimento interno entre irmãos de terreiro. O boi aparece ainda com o rosário em volta do pescoço. Estes elementos deixam claro que tem um sentido sagrado, o que a aparência da multidão em polvorosa pode ocultar. No entanto, o grande volume de gente, se por um lado é relativamente tranquilo e revela um forte senso de pertencimento da comunidade à manifestação, por outro lado, eventualmente pode gerar alguns distúrbios. Vimos na grande ladeira de subida ao Alto de São Sebastião, o embrião de uma briga entre jovens, que felizmente não foi adiante, porque as próprias pessoas da comunidade separaram a contenda afirmando: "parem com isto! o Boi vai subir!" Ouvimos relato de que alguns indivíduos extrapolando a brincadeira, há alguns anos tentavam derrubar o boi ou ainda, batiam com força em sua carcaça, ou ainda surgiam inícios de brigas. Por esta razão o boi chegou a ficar dois anos sem sair e ainda, o itinerário no Alto foi encurtado, razão pela qual o boi já não chega mais tão tarde à Casa dos Congadeiros como antes (duas a duas e meia da madrugada). Ao mesmo tempo os organizadores tem trabalhado fortemente no aspecto da conscientização, repetindo o valor sagrado do Boi. Estas medidas para reduzir a profanização tem trazido o equilíbrio à prática cultural, minimizando os eventuais distúrbios. 

Uma nota jornalística local destacou: "O capitão mor  do estado maior, órgão da festa responsável pela organização dos reinados, Geraldo Bispo dos Santos Neto, disse que o Boi do Rosário tem grande importância espiritual e religiosa, para os congadeiros e, por isso, o desfile deve acontecer com respeito e admiração." (GAZETA DE MINAS, 2024)

Das mudanças mais substanciais verifica-se que a armação (balaieira) era de bambu ou madeira, hoje de ferros encurvados. Era apenas um homem que ia de baixo, em todo trajeto (e dizem que descalço!). Mas ora se revezam na função de cinco a seis rapazes. Havia também mais cantoria, desenvolvida sob o refrão "Êh, boi!", como se observa em vídeos antigos e também se refere Waldyr Bernardino (1987). Este autor mencionou que "há sob a armação uma pessoa muito simples que o leva desde o reinício da Festa do Rosário em Oliveira, em meados de 1953, 54, por aí", atribuindo este papel então a Geraldo Tertuliano da Silva ("Geraldo Brasilino"), que "também em Divinópolis, Carmo da Mata e Carmópolis já organizou Boi". Mas o Boi não foi criado por esse Geraldo, pois diz o autor "Geraldo lembra-se da festa desde os 8 anos de idade, quando corria e tinha medo do boi.". 

Por esta breve descrição se observa a significação emblemática do boi no cenário cultural oliveirense. Oliveira que é uma cidade culta, destaca na arte musical, reconhecida no animado carnaval, com destaque para a tradição dos mascarados ("Cainágua"); os casarões e mais casarios imponentes que rememoram o fausto de sua economia nos meados do século XIX, como entreposto comercial. Oliveira que surgiu em meados setecentistas junto ao fluxo ao longo da Picada de Goiás, à época movida pela força agropecuária, hoje encontra no serviço terciário o principal ponto de sua economia. 

Vídeo: Ulisses Passarelli, 07/09/2024








Fotos: Ulisses Passarelli e Betânia Nascimento Resende, 07/09/2024. 


REFERÊNCIAS:  

BERNARDINO, Waldyr. Boi de Congo. In: Gazeta de Minas, Oliveira, 31 out. 1987 

Boi do Rosário abre a Festa do Congado: evento afro-brasileiro é um dos mais tradicionais de Oliveira. In: Gazeta de Minas, Oliveira, 08 set. 2024


VÍDEOS:

Boi do Rosário, Oliveira, 2024. In: YouTube, @up72folk, 09 set. 2024. Disponível em: https://youtu.be/Jeg1ROsBo5Q 

O Boi de Oliveira. In: You Tube, Saberes Tradicionais, 20 nov. 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dqcsdF3GvMM 

Festa de Nossa Senhora do Rosário - 1991. In: YouTube, Sidney de Almeida, 18 mar. 2024. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GexSDd60vEs


AGRADECIMENTOS: 

A Robert Henrique Silva e Isadora Queiroz Ribeiro Leite, pelo inestimável acolhimento e grande apoio à realização desta visita a Oliveira e concretização da postagem. 

Ao folclorista Affonso Furtado e ao historiador Filipe Calil Abrão, pela disponibilização das matérias jornalísticas, respectivamente de 1987 e 2024.