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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




quarta-feira, 23 de maio de 2018

Pentecostes em crônica: a Festa do Divino em São João del-Rei

Certas sutilezas acontecem no jubileu pentecostal de Matosinhos, em São João del-Rei. Na correria da grande Festa do Divino, na agitação de cores e sons, movimentos coreográficos e povo, celebrações e reencontros... a gente não percebe alguns detalhes. 

Moçambique de Passa Tempo: presença sempre marcante. 

Assim, por exemplo, o zelo dos congadeiros em levantar o mastro na abertura da festa - a forma como olham ao céu, vislumbrando a bandeira que sobe - é um olhar de esperança, de expectativa, que não se pode descrever, mas apenas sentir pelo convívio ou pela observação com vista clínica. A imagem transcende ao plano material. É telúrica! Esperança de uma grande festa, equilibrada e feliz. O instante imediato do levantamento, a inclinação do madeiro, se reveste de certa tensão, que logo se esvai quando o mastro se verticaliza na posição final. Se o dançante beija o mastro e bate-lhe a fronte para buscar forças, logo, gente da assistência, sem saber por qual razão, repete o gesto. A descida dos mastros é entusiástica, concorrida. Muita gente aglomera em derredor, gerando preocupação aos responsáveis por algum eventual contratempo. Na sonorização se pede para guardar distância de segurança. Mas o povo junta, parece magnetizado; aguarda com ansiedade especial a descida do mastro do Espírito Santo, o mais alto. Querem ver como vai ser, mesmo já sabendo como acontece. É como uma aliança sagrada que é benta de novo, uma promessa que se renova. 

Moçambiqueiro de Pedra Negra entoa seu canto, lamento, louvor, prece!

A cavalgada traz à tona as origens rurais, o ruído característico de cascos no asfalto; o cheiro do estrume. A imagem urbana do casario, o comércio cheio de engenhos publicitários, tudo se contrapõe à vermelhidão dos estandartes e flâmulas, alvejadas ao centro pela clássica figura da pombinha milagrosa. A sua passagem anuncia a proximidade da festa. O povo o diz: olha a festa chegando, a cavalgada passou por aqui! Já se formou o vínculo da imagem dos cavaleiros à chegada do festejo. Ou seja: o objetivo anunciatório é cumprido de maneira natural, espontânea. 

Experiência e sabedoria: moçambiqueiro de Ibituruna. 

Quanto às folias no sábado, véspera do dia maior, o povo fica estático diante do coreto, hipnotizado, ouvindo uma a uma, todos os anos, comparando os estilos (toadas), evocando saudades da roça dos avós quando viam em tenra infância a chegada dos foliões; rememoram os pais que acolhiam as bandeiras e músicos folieiros dobrando o joelho ao chão, coando o café saboroso para servir com quitanda e queijo. Muitos vão à emoção. Folia mexe com as pessoas. "Quem gosta, gosta!", dizem... As folias carregam uma simbologia de um mundo rural, um elo perdido na modernidade, que a melodia resgata na memória, disparando como um gatilho a renovação da aliança com as raízes. (De novo as alianças...) No salão do café, há mais que broas, pães e biscoitos. A ornamentação é toda em branco e vermelho (tecidos, fitas, flores, bexigas de ar, bandeirolas). O quadro negro traz mensagens escritas que saúdam ao Espírito Santo. O bolo tem uma pombinha em cima. É carinho, zelo. Bastaria o lanche, mas o tempero é amoroso. O ornamento aclimata os folieiros. Ali se confraternizam, dialogam, membros de uma e outra folia. Amizades se selam e renovam. Relembram-se velhos participantes que já partiram para o plano maior.

Capitão Tadeu, congado anfitrião de Matosinhos. 

Alvorada é sacrifício de poucos. Tradição. Madrugadinha o caixeiro acorda, pois o despertador zoa irritante. A missão chama: "Quando chega a hora é hora, vamos com Deus e Nossa Senhora!". Um desjejum rápido e já basta. Muito frio nessa época. Lá fora o vento gelado não é receptivo, mas é preciso bater caixa às 6 horas no Santuário. O sino já chama no bronze. Este ano foram dois grupos de caixeiros, com cerca de quatro caixas cada, um de Matosinhos, outro de Santa Cruz de Minas. É coisa rara de se ver. Em verdade quase ninguém vê e nisso reside a mágica do ato. Não se faz para público, não é para aplauso. É para o Divino. Ele o vê e isto basta ao caixeiro. Isto lhe é um suficiente estímulo para sair de seus cobertores ao frio da aurora. Alvorada é saudação ao dia maior. É pedir forças para a tarefa imensa que se seguirá ao longo do dia. E o fazem com tamanho vigor e dedicação como se uma multidão os assistisse; multidão que não passa de meia dúzia de aventureiros que se dignaram acordar tão cedo em gélida manhã. Alvorada é para Deus; não para plateia. Se canta, se reza, se louva. 

Capitães de Barbacena. 

Congados vão chegando pelas oito e meia, nove... O largo se engalana em festa. A Deusa Ceres (*) assiste a tudo estática, impassível, imponente. Em verdade tal estátua fica ainda mais bela nesse dia. 

Devoção à bandeira, com o congado do Bairro São Dimas. 

As pessoas acorrem para apreciar. Se socializam, reencontram, dialogam. Fazem comentários elogiosos sobre a desenvoltura de um sanfoneiro, a expressividade de um capitão, o bailado de um catupé animado, a marcialidade de um congo, o zunir das gungas de um moçambique, o bater idiofônico das manguaras de um vilão. Alguns devotos beijam bandeiras e se persignam. Capitães se saúdam ritualisticamente. Há uma forma de fazê-lo. Não basta acenar ou pegar nas mãos. Se dois grupos se encontram frente a frente podem trocar de bandeiras, cada uma beijando a do outro, como cortesia e respeito. Praxe. 

Congo de São Gonçalo do Amarante. 

No salão Rainha aguarda ansiosa a passagem do congado predileto, elogiando em versos seu vestido abalonado. E sai toda ciente de sua majestade que é real de fato. Na retaguarda do terno de dançantes caminha solenemente. Sinhô Rei vai também... 

Moçambique de Ibituruna em marcha. 

A passagem de tão álacre cortejo suscita a saudação da vizinhança que o aplaudi das janelas e sacadas. Na porta acorrem; na calçada se postam. Dos peitorais das janelas toalhas de cor ornam as fachadas; vasos floridos e imagens são postas. A rua se sacraliza. Não se vê isso todo dia. Festa do Divino mexe com o sentimento. Os dons se esparramam como uma brisa que sopra. Não é raro ouvir comentários que "essa festa é linda!" ou "é minha festa preferida!" ou ainda... "eu lembro da minha mãe..." ... "meu pai era dançante!" 

Nossa Senhora do Rosário, a grande Mãe, estampada na bandeira do catupé de Cláudio. 

Como descrever tanta emoção? Será mesmo possível? Vai vendo... No adro o povo forma corredor. Congados passam pelo meio. Na porta o imperador está postado, como anfitrião maior. De cetro em riste saúda e cumprimenta. Presenteia com uma lembrança artesanal, uma pombinha. O congado passa o portal sagrado e entra no céu simbólico, assim tratada a nave do templo. Diante do altar é de ver e não esquecer a respeitabilidade extremada dos congadeiros ao altar com suas imagens. Que exemplo eles deixam! Rezar com alegria!!! Pra todo lado é gente filmando dos celulares e fazendo selfs. Todos querem uma lembrança. Visitantes se esbarram daqui e dali, gente de fora que veio ver as maravilhas da fé e da cultura.

Moçambiqueiro são-joanense toca um pantagome feito de calotas de carro. 

Almoço é alarido. Comida boa, de muita fartura, limpinha, cheirosa. Bom tempero mineiro. A equipe da cozinha é admirável. Trabalho árduo, dificílimo. Aquilo sim é abnegação! Cozinheira não vê festa, mas festa sem ela não existe. 

Esperança de futuro com jovens e crianças no congado de Resende Costa.  

O Imperador já está agora lá na Igreja de Santa Terezinha. Nossa Senhora do Rosário também. É preciso escoltar seu andor ao santuário. Um imenso cortejo se forma, serpenteante. Escoa em sons e cores pelas ruas, maciço, uniforme, gigante. O pessoal do Departamento de Trânsito e da Guarda Municipal se empenha de corpo e alma para que tudo dê certo; e dá. Sem eles vira uma esculhambação. A chegada ao Santuário é apoteótica. Quem o viu não esquece. Quem não o viu não sabe o que perdeu... 

Moçambiqueiros de Itaguara escoltam o andor de Nossa Senhora do Rosário. 

Curioso também é a indagação constante das pessoas sobre quem é o novo imperador. Todo ano é a mesma pergunta: "Quem vai ser coroado?" A cerimônia em si todos querem ver em detalhe, esticam pescoço, saem dos assentos. O Imperador vira o foco. Quando um deixa a coroa, é logo acolhido pelos dos anos anteriores, como membro de uma fraternidade. E de fato o é. Deveria aliás haver um "Conselho dos Imperadores", agregando como membros natos todos (e apenas) os imperadores de cada ano, para com sua experiência ser o braço direito do Presidente da festa. 

Carrancas também esteve presente com sua congada característica
pelo som raspados dos reco-recos de bambu. 

O imperador que deixa a coroa parece leve, sorri aliviado. O outro está tenso, fisionomia carregada. É o peso da responsabilidade. A coroa pesa. Senhor Bispo o coroa e o apresenta aos fieis sendo então ovacionado. Muitos querem cumprimentá-lo fotografar ao seu lado. O imperador é uma autoridade simbólica. 

Coronel Xavier Chaves, sempre presente com plena autenticidade. 

A procissão é um momento sagrado que a multidão se envolve como uma massa humana focada num só objetivo. Seguindo a liteira de Santo Antônio e os andores de Nossa Senhora da Lapa seguem congadeiros, imperadores e mais devotos, em preces e cantares. Gente precisando de graças especiais "disputa" oportunidade de carregar o andor. É hora de um sacrifício que vale o pedido especial. Quem precisa mais quer entrar com o andor nos ombros pela igreja. É como se o pedido estivesse entrando no céu. Assim o povo o vê. 

No sorriso a fé! Capitão Ganair, de Conselheiro Lafaiete, presença contínua desde 1998. 

Que mundo de detalhes há para observar! Quanta riqueza humana quebrando a rotina escravizadora. A Festa do Divino se faz jubilar na satisfação coletiva que gera. É festa que emociona. É festa que fluidifica a fé na cultura inseparável. 

O grande jubileu acolhe fiéis para evangelização, recebe pesquisadores e amantes da cultura, abre os braços para o turista que vem conhecer as potencialidades culturais de um território riquíssimo. Ao visitante a Festa do Divino proporciona o exótico; ao autóctone, reflete suas origens. No equilíbrio entre um e outro polo, congadeiros e folieiros, ao seu modo, são os grandes atores, que expressam seu devocionário e cultivam seus saberes. Visitar São João del-Rei e conhecer a Festa do Divino é se deparar com uma relíquia, é religar consigo mesmo, é um ato de imersão nas múltiplas etnias que formam a nacionalidade brasileira, é enxergar a nós mesmos num espelho, que reflete uma parte significativa da fé brasileira.

De antigas raízes no rosário o congado de Ritápolis marca presença. 
  
As mulheres do Pilão de Nhá valorizam a cultura rural. Caquende. 
  
Como uma onda azul, chegam os marujos de Congonhas. 

Tradicional guarda de catupé de Santa Cruz de Minas, sob a bandeira de São Miguel. 
    
Marujos de Senhora das Dores se apresentam ao Imperador.  

Capitão do congado de Santana do Garambéu. 

Congado de Itutinga durante o Cortejo Imperial. 

Congado de Resende Costa chega no adro do Santuário. 

O cortejo adentra o adro do santuário. 

Notas e Créditos

* Deusa Ceres: nome corriqueiro de um chafariz de ferro fundido sito ao centro da Praça do Sr. Bom Jesus de Matosinhos. tal fontanário é hoje entendido como uma alegoria ao Verão; mas o nome popular "Deusa Ceres" sobrevive pelo uso comum e automático. 
**Texto e acervo: Ulisses Passarelli
*** Fotografias: Iago C.S. Passarelli, 20/05/2018
**** Obs.: a disposição das fotografias no texto é aleatória e de caráter meramente ilustrativo, sem ligação exata com os parágrafos. Revisado e ampliado em 13/11/2021 e 07/03/2024. 

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