São João del-Rei: 304 anos de patrimônios
Ninguém sabe ao certo. Documento exato não se apresentou. Cogita-se... Estima-se a data inicial. Mas é certo que essa única São João del-Rei ultrapassa aos trezentos anos.
Já no anoitecer da era dos seiscentos, bandeirantes aventureiros passavam para lá e para cá pelo vale do Rio das Mortes, a perseguir povos originários e riquezas. Até que um resolveu ficar com família, agregados e homens escravizados. Fez morada no Porto Real da Passagem ainda seiscentos (vide mapa do Padre Cocleo) e em 1701 se tornou a primeira autoridade, como guarda-mor. Tomé Portes del-Rei era seu nome. Desta urbe pode ser considerado fundador e patrono. Tudo começou ali pelas bandas de Matosinhos, que sempre foi e ainda é São João del-Rei. Mas o mérito não é tentação para essas linhas discorrerem. O foco é outro.
O núcleo de povoamento cresceu e se multiplicou; desdobrou-se com os achados auríferos subsequentes. Em 08 de dezembro de 1713, um arraial miúdo e dourado, entre montanhas mineiras e mineradoras foi elevado à vila, batizada com o pomposo nome de São João del-Rei. Por isto hoje comemoramos seu aniversário: 304 anos, que na verdade são mais.
O aniversário comemorado a cada 08 de
dezembro é como o de uma pessoa, que depois de vários anos de nascida, fosse
então tirar a certidão de nascimento, sem data retroativa. Tal aconteceu com
este núcleo urbano, festejado somente a partir da oficialização.
A cidade expandiu e hoje é reconhecida por sua cultura e patrimônio, inseparáveis. Tem uma cara, uma fisionomia, um modo de ser, de viver, uma identidade. E isto, em plenitude, compõe seu mais tenro patrimônio: o humano! São João del-Rei não é nada sem o são-joanense. O maior patrimônio é a pessoa e ponto final. Terra de personalidades eminentes, artistas, mestres, sábios, estudiosos, músicos, artesãos, ferroviários, operários. Povo acolhedor. Gente simples e culta. Quem cultua sua cultura é culto!
São João é uma cidade poética. Cada novo ano de sua história é um verso a mais em sua poesia em permanente construção. Ao se passear pelas ruas antigas ou pelas novas, pelo núcleo histórico ou pelos arrabaldes, por uma caminhada em qualquer bairro que seja, se observa a velha e a nova cidade, cada uma de per si com sua característica, que no todo é a mesma São João del-Rei, multifacetária. Não se pode equiparar o todo só pela identidade do núcleo histórico. Ele é absolutamente fundamental, mas a cidade de fato palpita além dele. Por toda parte tem seus problemas, mas ainda assim a amamos. Qual é a identidade de São João del-Rei? Aposto no plural.
O tão decantado patrimônio cultural são-joanense pode ser entendido noutra dimensão, aquela que de fato vivifica as cidades. O valor do patrimônio imaterial ou intangível é alvo de atenções há bastante tempo; contudo, parece inegável que num grau bem menos intenso que o do material ou tangível. Quase automaticamente acostumamos nos referir às edificações como patrimônio,
mas há pouco foco nas manifestações. A observação deve ir além das belas construções!
O casario, o largo, as ruas e os templos formam o ambiente urbano; a paisagem, como a esplêndida Serra do Lenheiro, forma a moldura, encaixando-se. Mas uns e outros seriam como uma bela vitrine se não houvesse o patrimônio imaterial. A cidade, por mais preservada que esteja ou que estivesse, sem sua vida cultural é como uma maquete. Vivemos em uma cidade cenário, não em uma cidade cenográfica. Os cidadãos compõe o mosaico dessa cultura riquíssima. Nas lendas e mitos refletem suas crenças, medos e interpretações do mundo. Na sua fé, nos seus ritos e cerimônias se sintonizam com o sagrado. Nas simpatias e benzeduras buscam alívio. Nas diversões se confraternizam e socializam. É preciso andar por aí com todos os sentidos aguçados, e porque não dizer, até com o sexto sentido aflorado. Naquela esquina contam que viram uma assombração. Se lembrar disso e passar por lá, pode até sentir um arrepio! O barroquismo deixou suas marcas como
se fosse um carimbo. E junto a este sinal de presença, outras influências e
correntes culturais antecederam e se sobrepuseram, numa mescla imensurável.
A cultura perpassa desde a visão focal de um detalhe arquitetônico até a visão global da vida contida no lugar. Enfim, no todo, o que o bem contemplado proporciona para a identidade daquela comunidade. A partir dessa perspectiva a cultura e o patrimônio podem ser entendidos com o sentimento e este com os sentidos:
Olfato: a contemplação das manifestações passa pelo aroma dos temperos típicos, da culinária tradicional; da identificação de ervas de tempero ou medicinais através do odor característico; pelo fedor da pólvora queimada nos foguetórios das alvoradas e procissões; o ar olorífico dos templos de piso revestido de folhas de rosmaninho; das ervas de Oxalá de um amaci; das folhas de guiné e arruda que fervem num banho de descarrego; da madeira serrada pelo carapina que repara um telhado; um cheiro do rapé trazido numa latinha no bolso ou do fumo do cigarro de palha; das misturas de uma garrafada para bronquite; as defumações nos terreiros; a cera de carnaúba aplicada ao assoalho dos templos; o cheiro tentador dos doces que borbulham em fervura nos tachos; da cachaça que da roça veio à cidade ...
Tato: o devoto não se limita a orar diante de uma imagem; tem que passar a mão nela, tocar, beijar-lhe a fita atada ao seu corpo; esfregar a bandeira da folia de Reis sobre uma parte doente do corpo para Santos Reis trazer o alívio e a cura; passar a bandeira do congado em volta da cabeça para limpar a aura; é preciso bater a testa no mastro para buscar forças, ou o pé esquerdo na encruzilhada para afastar malefícios. A mão corre sobre a lápide como se assim o saudoso estivesse mais perto do ente querido sepultado. Um giz ou um pincel risca o chão para esquadrejar o jogo da amarelinha. Sentir a serragem correr entre os dedos na elaboração de um tapete de rua. Pessoas se cumprimentam, estendem a mão. Um abraço fraterno... Um toque gentil no ombro...
Paladar: a culinária típica e seus inúmeros desdobramentos _ o quentão da festa junina com seu sabor marcante de gengibre; o cafezinho que o cidadão comum toma no bar da esquina, como parte de sua rotina urbana; o bolinho de feijão que ali mesmo abrevia o tempo de espera do almoço; o sabor da amêndoa encartuchada ou do doce de leite mexido num velho tacho, segundo receita ancestral; as frutas típicas de cada estação, algumas incomuns, que o mercado tem à venda; as peculiaridades de sabor dos queijos regionais (frescos, meia cura e curados, ou os saborizados com temperos); o almoço confraternizador da Festa do Divino; o delicioso café da manhã das Festas do Rosário entre os irmãos congadeiros; o torresmo; o coquinho que se quebra com pedra para extrair a castanha; a pipoca comprada no carrinho típico na porta do cinema ou do teatro; o algodão doce espetado numa haste, apregoado com o fon-fon de uma buzina ...
Audição: cidade sonora! Veículos, cães vadios ladrando pela rua, bêbados proferindo impropérios, acordes de um piano extravasam por uma vidraça, pois lá dentro alguém executa uma peça que ouvimos ao passar pela calçada. Batucadas ensaiam um bloco. Foguetes anunciam a chegada da procissão; fiéis gritam: "viva!"; a menininha pede à mãe para comprar um balão colorido; o pedinte implora um óbolo pelo amor de Deus; os sinos convocam os devotos à celebração; a sanfona harmoniza o canto do calangueiro; na folia de Reis a viola caipira geme louvores; no congado, tambores troam resistência. Nos coros, vozes e violinos saúdam ao Criador. Sobre velhos paralelepípedos marcha a banda, soprando partituras. Matraca bate estrepitosa na quaresma (*). Um aviso sonoro na padaria anuncia que está pronta uma nova fornada de pão de queijo. Maria fumaça, vai partir! Seu apito já anunciou. A sirene da fábrica de tecidos marca o horário dos trabalhadores e até por extensão dos afazeres domésticos _ a zoada dos teares não para _ dia e noite seu som acelerado marca os transeuntes da "Rua das Fábricas". Passa um vendedor empurrando um carrinho: "ao picooooo...lééé!" O bolinheiro ainda apregoa em nossa memória: “bo-li-êêê... ro!” Lá no morro zoa "atabaca": é seu Tranca-ruas que vai arriar!
Visão: pipas colorem o céu, bailam ao vento, se esquivam para lá e para cá; as árvores da praça se pintam de flores em cada estação própria. O ipê chove flores no chão. O velho telhado ondula curvas de barro. A imagem do santo aponta o dedinho para o céu. Torres sacras verticalizam a cidade. O anjinho barroco, de bochecha gorda, sorri para nós e nós com indiferença não sorrimos de volta, o cumprimentando. O sacerdote vem pela calçada, de sisuda batina preta... "_ a bênça! _ Deus te abençoe, meu filho!" Na porta do bar se vê os mesmos de sempre, contando lorotas e xingando o juiz de futebol. Fitas esvoaçam no estandarte do cortejo imponente. A jovem passa fantasiada para compor uma ala de escola de samba. As fachadas se sequenciam, coladas como gêmeos siameses. As montanhas da Serra guarnecem a urbe e ao poente, o sol pende por
detrás do Morro das Almas. Na aurora as ruas estão enevoadas, os casarões históricos se revestem de mistério, como se mergulhados em brumas de um passado inimaginável, inconfidente! A cidade é movimento: passa uma carroça; vai um ciclista; talvez um cavaleiro, ou (quem sabe!), um anjo de procissão. Evangélicos seguem concentrados para o culto ao Senhor. Vem um trabalhador de volta da faina, carregando sacolas de compras. Passa um pescador de fisionomia frustrada. Carrega seu molinete e
embornal (Rio das Mortes morreu...).
Tudo e todos compõem esta cidade. Páginas e páginas se encheriam de exemplos, cada qual mais poético que o outro. Nunca lembraríamos de tudo. Sempre alguém diria que isto ou aquilo é mais importante. O fato é que a cidade vive! Transborda vida e sugere vivências e percepções! É preciso experimentá-la em tantas possibilidades. Renasce todo dia, recria seu modo de viver e reviver; o cidadão fornece identidade à cidade e é por ela também identificado. Uns e outros se completam por interação.
Para entender isso é preciso sentir. Para sentir é preciso amar. O homem automatizado em seu agir se afasta destas experimentações, verdadeiras alquimias para a alma. Parabéns, São João del-Rei, por seus três séculos bem vividos!
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4- "Lá no morro zoa "atabaca": é seu Tranca-ruas que vai arriar!" |
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5- "A culinária típica e seus inúmeros desdobramentos". |
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6- "O algodão doce espetado numa haste, apregoado com o fon-fon de uma buzina ... " |
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7- "Um giz ou um pincel risca o chão para esquadrejar o jogo da amarelinha" |
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8- "São João del-Rei não é nada sem o são-joanense" |
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9- "É preciso bater a testa no mastro para buscar forças" |
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10- "Esfregar a bandeira da folia de Reis sobre uma parte doente do corpo para Santos Reis trazer o alívio e a cura" |
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11- "A observação deve ir além das belas construções." |
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12- "Para entender isso é preciso sentir. Para sentir é preciso amar". |
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13- "Quem cultua sua cultura é culto". |
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14- "É preciso andar por aí com todos os sentidos aguçados" |
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15- "O ipê chove flores no chão" |
Notas e Créditos
* A frase "Matraca bate estrepitosa na quaresma" foi inspirada no verso "Bate rebate a ossuda matraca", do poema "Encomendação das Almas" (1959), de Altivo Lemos Sette Câmara.
** Texto: Ulisses Passarelli
*** Fotografias: 3, 5, 6, 7, 9, 10, 12 Ulisses Passarelli; demais fotos, Iago C.S. Passarelli
Última revisão e melhoramentos: 11/07/2024
Belíssimo texto! Homenagem sensível e percepção amorosa e precisa de São João del-Rei. Parabéns ao autor e à cidade que o inspirou. Grande abraço!
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