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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




sábado, 29 de junho de 2013

Racismo e discriminação numa lenda sobre os magos


“Vinte e cinco de dezembro é um dia de aligria. É o dia em que nasceu o filho da Virgem Maria. Era uma noite pinerosa, chovia rosa do céu. Os três Reis rompendo a escuridão no caminho de Belém. O anjo Gabriel anunciô e o galo bateu asa e cantô:

_ Já nasceu o Redentor... !
O boi preguntô:
_ Aonde...?
O carnêro arrespondeu:
_ Em Belém...!
O cabrito disse:
_ É mintira! É mintira! É mintira!

Os três Reis vei’ rompêno a escuridão numa noite de Natal. Lá tiveram interrompido, na beira do mar, no meio da escuridão. Tiveram uma discussão. Lá ia dois branco e um preto. Eles [os magos brancos] marcaro: ôcê [o mago negro] vai pur aqui que é ataio, nós vamo pur aqui que é vorta. Nesse momento o preto foi abarcado , que apareceu a estrela do oriente. Ela foi alumiando e andando em direção dele. Quando ele chegô lá em Belém ela parô e abaxô como fosse baxá na terra, com aquela cauda. Então ali ele já achô. Quando os dois branco chegô ele já tava lá com o Menino Jesus no colo. Eles se assustaro, os dois branco assustaro porque ele já tava com o Menino Jesus no colo. (Hoje eles num diz isso qu’é pra num ofendê muito a raça branca. Mas a verdade é essa, tem um preto mesmo). Aí vieram, um com ouro, outro com incenso e outro com mirra. O que trouxe ouro... de que fez o cálix bento. Mas num quiria aceitá, o Menino Jesuis, o piquinininho, ele num quiria aceitá. A mãe dele que é a Nossa Sinhóra imploro pra ele aceitá. Ali que ele aceitô. Então o ouro (que é o saco de oro), a mirra (é uma folha que mistura no incenso pra dá o chêro nele) e o incenso. Cada um trôxe um presente e assim se aprumô”.

(por Luís Santana, São João del-Rei/MG, 1998)



*  *  *  

Não vou discorrer sobre as origens históricas da devoção aos Reis Magos e seus desdobramentos culturais, tarefa árdua e complexa que tem sido alvo de muitos estudos no Brasil, tendo como mentor o folclorista Affonso Furtado, entusiasta e mestre do tema. Porém, aqui mesmo neste blog se pode aprofundar o tema nos textos lincados a seguir, que formam uma trilogia:

Origens dos Reisados Brasileiros
Introdução ao Estudo dos Reisados Brasileiros
Tipologia dos Reisados Brasileiros

Me limitarei a comentar a lenda religiosa acima exposta, que pela sua importância e riqueza de detalhes, resolvi transcrever ipsis litteris, preservando a linguagem original de meu informante, tão reveladora de sutilezas quanto poética. 

Luís Santana (1929-2002) era são-joanense natural da zona rural, nascido no Pombal, imediações do torrão natalício do Alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Santana era um negro forte, alto, de fina inteligência e memória extraordinária, com quem construí sólida amizade. Muitas vezes seu nome foi citado neste blog e outras tantas ainda será, tal a riqueza de ensinamentos que tinha o prazer de distribuir, a despeito de não ter visto sua cultura ser valorizada na cidade. 

Sr.Luís Santana, em foto do autor, a 04/06/2000.

Tinha uma revolta gritante contra o racismo e a discriminação racial e social. Suas falas sempre enalteciam os valores afro-brasileiros, que ele chamava de "força negreira", uma expressão de magnitude, que nunca esqueci. 

Foi um iminente mestre folião de Reis e capitão de congado por quarenta anos ininterruptos, fora o tempo vivido noutros grupos que não o seu próprio. Era sanfoneiro de uma oito baixos e também grande conhecedor do calango. 

Na lenda em questão narra Luís Santana a viagem famosa de Gaspar, Melchior (ou Belchior) e Baltazar do oriente a Belém na busca do Messias, mas com uma nuance que mostra os males gerados pela discriminação. Antes de me narrar dizia que o racismo vinha "do começo do mundo" e para atestar entrou com a presente narrativa.

Baltazar era o mago africano, que teve na versão lendária, seu caminho propositalmente desviado de Belém pelos outros dois magos, que não queriam viajar com ele. Ensinaram o caminho mais longe dizendo que era mais curto (atalho). E teriam seguido pela suposta "volta" (caminho mais longo). Mas Baltazar, contemplado por sua humildade, recebeu a graça da guia celeste, a estrela de cauda, que lhe mostrou as melhores passagens e ele chegou primeiro que Melchior e Gaspar para a surpresa destes. O texto diz que ele foi "abarcado", ou seja, envolvido (em luz), subentendo-se um momento mágico, mediúnico, porque não, de êxtase, de sublimação. Afinal, "chovia rosas do céu"...

O Menino Deus recusa o presente dos magos racistas e só os aceita a pedido da Santa Mãe. Um claro e profundo ensinamento religioso do valor do verdadeiro presente e ainda da força mariana como medianeira. Depois disso, "se aprumô" ... se levantou, se ergueu, se manteve... o cristianismo, pois os magos são como li alhures "os primeiros romeiros da cristandade". 

E o folião imita seus gestos, andando nas noites reiseiras com a bandeira na guia como se fosse sua própria estrela, "rompendo a escuridão" rumo a Belém. Belém, que hoje é o nosso lar, onde teimamos em não deixar o Deus Menino nascer. Vinte e cinco de dezembro é uma noite de alegria, que os foliões não nos deixam esquecer com sua poesia messiânica e misteriosa, "pinerosa"..., envolta numa bruma, qual um véu, que preserva a verdade subjacente. Mergulhar no seu mundo é buscar a revelação da riqueza cultural de nossa gente. 

Os bichos do presépio ganham vida na narrativa lendária e fazem coro onomatopeico aos anjos, anunciando a boa nova. O narrador para descrever a frase de cada animal, imita-lhe o som característico, numa dramatização inusitada. O mal, como o joio, semeado no meio do bem, nega a verdade "_ é mentira!", induz atitudes discriminatórias, mas por fim o bem apruma. 

Lendas como esta carimbam conceitos populares acerca de fatos sociais. Buscam explicar origens e se repetem de boca em boca anunciando clamores: "quem tiver ouvidos, ouça!"

Folia do Mestre Luís Santana, Bairro São Dimas, São João del-Rei/MG.
Autor e data não identificados. Gentilmente cedido pelo referido folião para reprodução. 


Notas e Créditos


* Texto e fotos do presépio: Ulisses Passarelli
** Obs.: presépio fotografado: peças em cerâmica pintada em esmalte sintético. Artesão: sr. "Mundinho", Santa Cruz de Minas / MG, década de 1970.

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