“Vinte e cinco de dezembro é um dia
de aligria. É o dia em que nasceu o filho da Virgem Maria. Era uma noite
pinerosa, chovia rosa do céu. Os três Reis rompendo a escuridão no caminho de
Belém. O anjo Gabriel anunciô e o galo bateu asa e cantô:
_ Já nasceu o Redentor... !
O boi preguntô:
_ Aonde...?
O carnêro arrespondeu:
_ Em Belém...!
O cabrito disse:
_ É mintira! É mintira! É mintira!
Os três Reis vei’ rompêno a escuridão
numa noite de Natal. Lá tiveram interrompido, na beira do mar, no meio da
escuridão. Tiveram uma discussão. Lá ia dois branco e um preto. Eles [os magos brancos] marcaro: ôcê [o mago negro] vai pur aqui que é ataio, nós vamo pur aqui
que é vorta. Nesse momento o preto foi abarcado , que apareceu a estrela do
oriente. Ela foi alumiando e andando em direção dele. Quando ele chegô lá em
Belém ela parô e abaxô como fosse baxá na terra, com aquela cauda. Então ali
ele já achô. Quando os dois branco chegô ele já tava lá com o Menino Jesus no
colo. Eles se assustaro, os dois branco assustaro porque ele já tava com o
Menino Jesus no colo. (Hoje eles num diz isso qu’é pra num ofendê muito a raça
branca. Mas a verdade é essa, tem um preto mesmo). Aí vieram, um com ouro,
outro com incenso e outro com mirra. O que trouxe ouro... de que fez o cálix
bento. Mas num quiria aceitá, o Menino Jesuis, o piquinininho, ele num quiria
aceitá. A mãe dele que é a Nossa Sinhóra imploro pra ele aceitá. Ali que ele
aceitô. Então o ouro (que é o saco de oro), a mirra (é uma folha que mistura no
incenso pra dá o chêro nele) e o incenso. Cada um trôxe um presente e assim se
aprumô”.
(por Luís
Santana, São João del-Rei/MG, 1998)
* * *
Me limitarei a comentar a lenda religiosa acima exposta, que pela sua importância e riqueza de detalhes, resolvi transcrever ipsis litteris, preservando a linguagem original de meu informante, tão reveladora de sutilezas quanto poética.
Luís Santana (1929-2002) era são-joanense natural da zona rural, nascido no Pombal, imediações do torrão natalício do Alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Santana era um negro forte, alto, de fina inteligência e memória extraordinária, com quem construí sólida amizade. Muitas vezes seu nome foi citado neste blog e outras tantas ainda será, tal a riqueza de ensinamentos que tinha o prazer de distribuir, a despeito de não ter visto sua cultura ser valorizada na cidade.
Sr.Luís Santana, em foto do autor, a 04/06/2000.
Tinha uma revolta gritante contra o racismo e a discriminação racial e social. Suas falas sempre enalteciam os valores afro-brasileiros, que ele chamava de "força negreira", uma expressão de magnitude, que nunca esqueci.
Foi um iminente mestre folião de Reis e capitão de congado por quarenta anos ininterruptos, fora o tempo vivido noutros grupos que não o seu próprio. Era sanfoneiro de uma oito baixos e também grande conhecedor do calango.
Na lenda em questão narra Luís Santana a viagem famosa de Gaspar, Melchior (ou Belchior) e Baltazar do oriente a Belém na busca do Messias, mas com uma nuance que mostra os males gerados pela discriminação. Antes de me narrar dizia que o racismo vinha "do começo do mundo" e para atestar entrou com a presente narrativa.
Baltazar era o mago africano, que teve na versão lendária, seu caminho propositalmente desviado de Belém pelos outros dois magos, que não queriam viajar com ele. Ensinaram o caminho mais longe dizendo que era mais curto (atalho). E teriam seguido pela suposta "volta" (caminho mais longo). Mas Baltazar, contemplado por sua humildade, recebeu a graça da guia celeste, a estrela de cauda, que lhe mostrou as melhores passagens e ele chegou primeiro que Melchior e Gaspar para a surpresa destes. O texto diz que ele foi "abarcado", ou seja, envolvido (em luz), subentendo-se um momento mágico, mediúnico, porque não, de êxtase, de sublimação. Afinal, "chovia rosas do céu"...
O Menino Deus recusa o presente dos magos racistas e só os aceita a pedido da Santa Mãe. Um claro e profundo ensinamento religioso do valor do verdadeiro presente e ainda da força mariana como medianeira. Depois disso, "se aprumô" ... se levantou, se ergueu, se manteve... o cristianismo, pois os magos são como li alhures "os primeiros romeiros da cristandade".
E o folião imita seus gestos, andando nas noites reiseiras com a bandeira na guia como se fosse sua própria estrela, "rompendo a escuridão" rumo a Belém. Belém, que hoje é o nosso lar, onde teimamos em não deixar o Deus Menino nascer. Vinte e cinco de dezembro é uma noite de alegria, que os foliões não nos deixam esquecer com sua poesia messiânica e misteriosa, "pinerosa"..., envolta numa bruma, qual um véu, que preserva a verdade subjacente. Mergulhar no seu mundo é buscar a revelação da riqueza cultural de nossa gente.
Os bichos do presépio ganham vida na narrativa lendária e fazem coro onomatopeico aos anjos, anunciando a boa nova. O narrador para descrever a frase de cada animal, imita-lhe o som característico, numa dramatização inusitada. O mal, como o joio, semeado no meio do bem, nega a verdade "_ é mentira!", induz atitudes discriminatórias, mas por fim o bem apruma.
Lendas como esta carimbam conceitos populares acerca de fatos sociais. Buscam explicar origens e se repetem de boca em boca anunciando clamores: "quem tiver ouvidos, ouça!"
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Folia do Mestre Luís Santana, Bairro São Dimas, São João del-Rei/MG.
Autor e data não identificados. Gentilmente cedido pelo referido folião para reprodução.
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Notas e Créditos
* Texto e fotos do presépio: Ulisses Passarelli
** Obs.: presépio fotografado: peças em cerâmica pintada em esmalte sintético. Artesão: sr. "Mundinho", Santa Cruz de Minas / MG, década de 1970.
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