Um conto da escravidão
O escravo idoso vivera muitos anos
de intensa labuta naquela fazenda. Humildemente suportou toda espécie de maus
tratos e serviços pesados. Agora seu corpo já não permitia semelhante trabalho.
Tornou-se então tratador dos cavalos do seu senhor.
Uma vez no mês arriava a melhor
montaria para levar o fazendeiro à missa na capela do arraial. Sempre ia
também, mas a pé, andando atrás de seu dono, num andar acelerado para conseguir
acompanhar, com muito esforço para superar as dificuldades que a idade e o
sofrimento de um corpo judiado já lhe impunham.
Porém, o escravo nunca entrava na
capela. Só o branco podia. Enquanto rezavam sinhôs e sinhás, negro velho dava
água ao alazão, afrouxava sua barrigueira para o descanso, escovava seu pelo
brilhoso.
Não obstante a distância com que era
tratado e a habitual grosseria, o fazendeiro tinha por aquele escravo em
especial uma certa predileção. E uma vez, de retorno d’uma celebração
domingueira...
_ Viu só negro, que beleza a reza
de branco?
_ Vi não sinhô, que nêgo
tava escovando animal.
_ Também você num chega na igreja
que lá num é seu lugar. Mas, oh, vô te falá: esses ano tudo você tem sido um
escravo bom, num dá trabalho. Muito anos comigo. Vou te dá esse presente:
próxima missa vou te permitir entrar na igreja.
_ ô patrão, Deus que pague sua
bondade!
As luas se alternaram. Sóis vieram e
se foram. Mês passou.
O escravo estava ansioso, mas em
silêncio como sempre. Afinal como seria que conversavam com Zambi?
_ Nêgo, não esqueci minha promessa
que sou homem de palavra. Dá água pro cavalo e vem.
Fazendeiro ficou soberbo lá nos
bancos da frente; escravo, na porta, chapéu esfolado saiu da cabeça e segurado
na mão esquerda pendia ao longo do corpo. Encarquilhado pelo tempo ele era uma silhueta
sofrida na porta da capelinha. Enquanto o padre engrolava seu latim, o escravo
ora olhava o altar ora o chão ora o alto. E vez por outra batia a mão direita
no peito, junto ao coração.
Acabou a missa, caminho de volta
poeirento, sol alto, fazendeiro perguntou:
_ Viu que beleza? Num é aquelas
cantoria feia de senzala não.
_ Muito bonito sim sinhô. Nêgo
gostô. Deus que pague.
_ Mas onde que você tava que num te
vi?
_ Por que não entrou? Não deixei?
_ Porque nêgo ficô sem jeito, né...
_ É que num sei rezar como os
branco e também porque vassuncê e todos mais tava cum saco nas costa, inté o
padre, menorzinho ansim mas tava tamém. Eu olhei pra minhas costas não vi; daí
num entrei.
_ Com’é que é? Saco?! Você tá é
caducando nêgo, tá muito velho.
_ Verdade patrão, incrusive o do
sinhô era dos maió...
_ Arre! Cala a boca. Chega disso.
Vamos apertar o passo que sol tá começando a queimar e tô com fome.
Mas o homem ficou cismado com aquela
fala do escravo, estapafúrdia sim, mas parecia sincera.
No fim da outra missa, o fazendeiro
foi na sacristia e narrou o fato ao padre. Ele foi e respondeu:
_ ô meu filho, o seu escravo não
está perturbado não, nem zombando. Ele está em estado de graça! Esses sacos que
viu em nossas costas são os pecados que estamos carregando! Serve de alerta
para nós todos... Pergunta ele, qual reza ele fez porque deve ser muito forte.
Temos que aprendê-la.
_ Nêgo, lembra aquele dia que você
viu os sacos nas costas dos brancos na missa?
_ O quê que você rezou naquele dia?
_ Nêgo num sabe rezá, né, então
oiava lá pra nosso sinhô pregado naquela cruiz grande, batia a mão no peito e
falava: sinhô, seu nêgo tá aqui! Sinhô, seu nêgo tá aqui!”
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Montagem em memória dos escravos. Festa do Rosário, Passa Tempo/MG. 21/10/2013.
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Notas e Créditos
*Informante: Aloísio dos Santos, São João del-Rei/MG. Década de 1990.
** Texto e fotografia: Ulisses Passarelli
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