Entendendo os Romances
Ulisses Passarelli
Romanceiro é uma coleção de
romances. Conjunto de composições que obedecem ao estilo da literatura popular
chamado “romance”.
Romance é uma composição
poética, ou antes, gênero poético-musical, de origem européia, medieval, que
narra uma estória em versos. O fundo moralizante não é obrigatório mas
eventualmente surge. Na história de Eulina (*), a moça que abandona o pai idoso
para sair mundo afora à procura de serviço e uma vida melhor, termina arrependida
ante o lamento paterno:
_ Adeus,
adeus, adorável Eulina,
|
_ Este teu
pranto, tão amargurado,
|
Sozinha pelo
mundo vai...
|
Ó pai
amado, embarga minha partida...
|
A Estrela d’Alva
que no céu mais brilha
|
Eu de
joelho, mil perdão te peço
|
Quando voltares
não acharás teu pai!
|
E me
confesso louca e arrependida!
|
_ Retrocedeste, este passo errado,
Ó filha amada, do meu coração...
A Estrela d’Alva, que no céu mais brilha,
És minha filha, já tens o perdão!
Algumas vezes os temas dos romances serviram no Brasil de inspiração
para composições de outros estilos, como modas, ABC’s, dramas, contos, etc.,
numa visível adaptação ou desdobramento.
Cascudo define os romances em
seu dicionário como sendo:
“poemas em versos octossílabos (pela
versificação castelhana e setissílabos pela nossa) refundidos e recriados nos
sécs.XV e XVI, com rimas assonantes nos pares, e os ímpares livres, vindos dos
sécs. X, XI, XII (...) foram poemas
feitos para o canto nas cortes e saraus aristocráticos, e não a poesia
democrática e vulgar, feita para o povo. No séc.XVI, a recriação foi um processo de acomodação ao gênio popular”,
(etc.)
E na Literatura Oral no Brasil
ensina com frases magistrais: “foi um
gênero que resistiu até princípios do séc.XX” ; “os romances vieram na memória
portuguesa” ; “eram queridos por todas as classes” ; “creio ter sido o romance
o primeiro verso cantado pelo português no Brasil”. Sobre a fragmentação
das versões que hoje encontramos como meras sobrevivências nos diz: “cada ano diminui o número dos que sabem
recordar algumas estrofes, cada vez mais interrompidas pelos hiatos da memória.
Um romance ou rimance completo já é uma impossibilidade”.
Os trovadores feudais mantiveram
vivos os romances, cantando-os e tocando-os nas cortes e feiras. Eram a
princípio composições volumosas, com um grande conjunto de estrofes.
Acredita-se que pelo século XV e XVI tenham passado por uma remodelação de
forma que lhes conferiu o aspecto típico que chegou ao Brasil, com estórias
menores e independentes.
Em nosso país ganhou rápido a
preferência popular, sendo recriado com temas nacionais, tais como o cangaço, a
pecuária e temas líricos.
A palavra romance ganhou um
sentido genérico aplicado a algumas formatações poéticas variantes, porém inter-relacionadas,
que convém explicitar:
- novela:
são romances avultados, envolvendo muitos personagens, embora tenha os agentes centrais
claramente definidos. O desenrolar do enredo é complexo na confluência de temas
e eventos, mas o sistema poético é mantido no conjunto de estrofes. Algumas
novelas tornaram-se célebres na literatura popular, perpetuadas na vastidão
continental pelos folhetos de cordel: Pavão Misterioso, a Princesa Magalona, A
Imperatriz Porcina, a História de João de Calais, a História de Carlos Magno e
os Doze Pares de França, Roberto do Diabo (ou Roberto de Deus).
- romance
(propriamente dito): as formas européias que recebemos por via ibérica são
tipicamente o que chamamos de “romances palacianos”, que narram a vida dos
fidalgos, princesas e nobres nos castelos (Bela Infanta, Juliana e Dom Jorge, etc.).
O Brasil memorizou estes modelos e os difundiu no seio popular. Mas também
tivemos o poder criativo, gerando um verdadeiro ciclo de poesias populares, com
os romances do ciclo do gado, por exemplo, narrando feitos notáveis de vaqueiros,
de cavalos inigualáveis e de bois fantásticos. Deífilo Gurgel classificou os
romances quanto à origem em ibéricos e brasileiros, ambos vivendo em nosso
país. Os ibéricos podem ser quanto ao tema, palacianos, sacros (religiosos) e
plebeus. Os brasileiros: do gado, do cangaço, burlescos.
- romance
de relação: ou simplesmente relação. São romances enumarativos; poemas
romancísticos com uma sequência numérica ou mnemônica de fatos que se
encadeiam. Estrofes corridas listando uma continuidade de atos. Hélio Galvão
advertia: “mais abundante na Espanha que
em Portugal, não é entretanto de encontro freqüente a relação. Mesmo no Brasil,
ao que parece, seu número é reduzido, posto em confronto com a vastidão do
gênero.” Seu modelo seria mais recente que dos romances típicos (após o séc.XVI).
- xácara:
espécie de romance cuja característica marcante é o diálogo dos personagens,
com pouca intervenção do narrador. “Canção
narrativa”, nos dizeres de Cascudo.
- solau:
“é mais plangente e mais lírico, lamenta
mais do que reconta o fato, tem menos diálogo e mais carpir” (Almeida
Garret, O Romanceiro. Apud Cascudo,
Dicionário, verb.Xácara).
- gesta:
romances que tem como tema central as narrativas heróicas, a saga guerreira em
versos. Aventuras humanas.
A coletânea de romances
apresentada na parte 1 desta postagem foi toda coligida nas Vertentes de fontes
populares. Revestem-se da maior importância dentro dos estudos de literatura
oral porquanto conservadas unicamente por memória e embora em fragmentos, não
perderam seu valor etnográfico. Algumas versões são bem conhecidas no Brasil,
como o tangolomango, palavra que significa azar, fatalidade. Para alguns
estudiosos o canto do tangolomango é uma parlenda e não um romance no sistema
classificatório da folclorística.
O Romance da Bela Infanta me foi
cantado com o nome de “Conde Alemanha” mas Brasil afora surge com outras designações
(Conde Amarante, ...). É um típico romance ibérico, palaciano. Encontra-se bem
preservado sendo também um dos mais populares do país.
O de Zezinho e Mariquinha é bem
à moda nacional e foi amplamente difundido pela literatura de cordel.
A história de Antoninho (ou
Antonino) conta a narrativa de um escolar que matou o pavão do professor e
temia voltar à escola pela represália do mestre. Vai forçado pelos pais. É assassinado pelo professor. O informante só conservava de memória os últimos versos.
A narrativa de Santo Antônio com
algumas perdas de rima e métrica pela falha da memória conta-nos o
extraordinário fenômeno mediúnico da bilocação, acontecido com o glorioso santo:
celebrando uma missa, teve um aviso sobrenatural de que seu pai, Martim de
Bulhões, ia morrer inocente longe dali. Deixou o povo a rezar ave-marias, cobriu-se
com o capuz de seu hábito e de mãos postas concentrou-se ao extremo. Seu corpo
permaneceu ali diante dos fiéis mas a alma viajou até o local da execução do
pai na forca. Lá se materializou e inocentou o pai, obrigando o defunto a
erguer da cova e anunciar a inocência de Martim. Desnecessário frisar que
semelhante tema impressiona fortemente o espírito popular interiorano.
Duas gestas cangaceiras trazem
as memórias quase perdidas ou aos pedaços de velhos bandidos sertanejos: o
famigerado “Rio Preto”, um ladrão de donzelas, que as roubava no ato do
matrimônio. Depois de violentá-las, as devolvia ao pai com desaforos. Colhi-a
com o nome de “Décima do Rio Preto”, denunciando o formato original em estrofes
de dez versos, bem mais recentes que as quadras. Este bandido era paraibano,
dos oitocentos. Seu romance é bem conhecido. Já o tal “Dentinho de Ouro” teve
seus feitos de banditismo apagados na poeira dos tempos. Muito menos conhecido,
dele, Cascudo, na Flor de Romances Trágicos, apenas diz, laconicamente: “não conheço versos narrando as aventuras
dos criminosos do sul do país, um Dente de Ouro, com o romance de Menotti Del
Picchia (S.Paulo, 1923)”.
Mas de quantos romances colhi, o
mais relevante me parece o do Boi Lolô, uma típica poesia do Ciclo do Gado,
criação nacional legítima, até prova em contrário, bem aos ares de outros
elementos do romanceiro nacional, como o Boi Surubim e o Boi Espaço, que ouvi
cantado nos bumba-meu-boi do nordeste brasileiro. A composição em quadras e o
palavreado denunciam sua antiguidade. Narra um boi fantástico, gigantesco. Por
fim é dividido numa partilha, cada parte do corpo com um destino mais jocoso. A
partilha do boi é outro elemento típico do cancioneiro do bumba-meu-boi. Mas
neste caso a colheita foi independente e sem canto, apenas narrada, ao
contrário de todas as outras peças dessa coletânea, que foram cantadas.
Rapidamente os romances estão
desaparecendo do cenário nacional. Sua transmissão oral era facilitada no ermo
do interior, sem atrativos da tecnologia para entreter. O entretenimento diário
era ouvir as narrativas dos velhos, com seus contos e cantos, impressionando as
mentes e fixando a cultura na memória. Antes de dormir, após o serviço diário,
junto ao fogão à lenha, nos alpendres, nos ranchos de pouso, em torno “dos
antigos” se formava uma roda de conversa. Não se tem mais paciência nem tempo
para ouvir os idosos. O diálogo acabou. Seu saber rompeu-se na linha de
transmissão... Dentro desta realidade o romance é uma poesia em ocaso.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CASCUDO, Luís
da Câmara. Literatura Oral no Brasil. 3.ed. BeloHorizonte: Itatiaia; São
Paulo: USP, 1984. 435p.
CASCUDO, Dicionário
do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d]. 930p.
CASCUDO, Luís
da Câmara. Flor de Romances Trágicos. 189p.
GALVÃO, Hélio.
Romanceiro: pesquisa e estudo. Introdução e notas de Deífilo Gurgel. Natal:
UFSJ, 1993. 100p.
GURGEL,
Deífilo. Romanceiro de Alcaçus. Natal: UFRN/PROEX/Cooperativa Cultural
Ed.Universitária, 1992. 65p.
GURGEL.
Deífilo. Espaço e tempo do folclore potiguar. Natal: Pref.Mun., 1999.
235p.il.
TRIGUEIROS,
Edilberto. A Língua e o Folclore da Bacia do São Francisco. Rio de
Janeiro: Campanha de defesa do Folclore Brasileiro, 1977, 192p.il.
INFORMAÇÃO ORAL
(*) Informado
por meu avô materno, Aloísio dos Santos (1924-2005), em 02/10/1998. Aprendido
com sua mãe, Luíza dos Santos (1894-1986), São João del-Rei/MG.
Nenhum comentário:
Postar um comentário