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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




terça-feira, 18 de junho de 2013

Romanceiro das Vertentes - parte 2

Entendendo os Romances

Ulisses Passarelli

                Romanceiro é uma coleção de romances. Conjunto de composições que obedecem ao estilo da literatura popular chamado “romance”.
                Romance é uma composição poética, ou antes, gênero poético-musical, de origem européia, medieval, que narra uma estória em versos. O fundo moralizante não é obrigatório mas eventualmente surge. Na história de Eulina (*), a moça que abandona o pai idoso para sair mundo afora à procura de serviço e uma vida melhor, termina arrependida ante o lamento paterno:

_ Adeus, adeus, adorável Eulina,
_ Este teu pranto, tão amargurado,
Sozinha pelo mundo vai...
Ó pai amado, embarga minha partida...
A Estrela d’Alva que no céu mais brilha
Eu de joelho, mil perdão te peço
Quando voltares não acharás teu pai!
E me confesso louca e arrependida!

_ Retrocedeste, este passo errado,
Ó filha amada, do meu coração...
A Estrela d’Alva, que no céu mais brilha,
És minha filha, já tens o perdão!

Algumas vezes os temas dos romances serviram no Brasil de inspiração para composições de outros estilos, como modas, ABC’s, dramas, contos, etc., numa visível adaptação ou desdobramento.
                Cascudo define os romances em seu dicionário como sendo:

“poemas em versos octossílabos (pela versificação castelhana e setissílabos pela nossa) refundidos e recriados nos sécs.XV e XVI, com rimas assonantes nos pares, e os ímpares livres, vindos dos sécs. X, XI, XII (...) foram poemas feitos para o canto nas cortes e saraus aristocráticos, e não a poesia democrática e vulgar, feita para o povo. No séc.XVI, a recriação  foi um processo de acomodação ao gênio popular”, (etc.)

                E na Literatura Oral no Brasil ensina com frases magistrais: “foi um gênero que resistiu até princípios do séc.XX” ; “os romances vieram na memória portuguesa” ; “eram queridos por todas as classes” ; “creio ter sido o romance o primeiro verso cantado pelo português no Brasil”. Sobre a fragmentação das versões que hoje encontramos como meras sobrevivências nos diz: “cada ano diminui o número dos que sabem recordar algumas estrofes, cada vez mais interrompidas pelos hiatos da memória. Um romance ou rimance completo já é uma impossibilidade”.
                 Os trovadores feudais mantiveram vivos os romances, cantando-os e tocando-os nas cortes e feiras. Eram a princípio composições volumosas, com um grande conjunto de estrofes. Acredita-se que pelo século XV e XVI tenham passado por uma remodelação de forma que lhes conferiu o aspecto típico que chegou ao Brasil, com estórias menores e independentes.
                Em nosso país ganhou rápido a preferência popular, sendo recriado com temas nacionais, tais como o cangaço, a pecuária e temas líricos.
                A palavra romance ganhou um sentido genérico aplicado a algumas formatações poéticas variantes, porém inter-relacionadas, que convém explicitar:

- novela: são romances avultados, envolvendo muitos personagens, embora tenha os agentes centrais claramente definidos. O desenrolar do enredo é complexo na confluência de temas e eventos, mas o sistema poético é mantido no conjunto de estrofes. Algumas novelas tornaram-se célebres na literatura popular, perpetuadas na vastidão continental pelos folhetos de cordel: Pavão Misterioso, a Princesa Magalona, A Imperatriz Porcina, a História de João de Calais, a História de Carlos Magno e os Doze Pares de França, Roberto do Diabo (ou Roberto de Deus). 
- romance (propriamente dito): as formas européias que recebemos por via ibérica são tipicamente o que chamamos de “romances palacianos”, que narram a vida dos fidalgos, princesas e nobres nos castelos (Bela Infanta, Juliana e Dom Jorge, etc.). O Brasil memorizou estes modelos e os difundiu no seio popular. Mas também tivemos o poder criativo, gerando um verdadeiro ciclo de poesias populares, com os romances do ciclo do gado, por exemplo, narrando feitos notáveis de vaqueiros, de cavalos inigualáveis e de bois fantásticos. Deífilo Gurgel classificou os romances quanto à origem em ibéricos e brasileiros, ambos vivendo em nosso país. Os ibéricos podem ser quanto ao tema, palacianos, sacros (religiosos) e plebeus. Os brasileiros: do gado, do cangaço, burlescos.
- romance de relação: ou simplesmente relação. São romances enumarativos; poemas romancísticos com uma sequência numérica ou mnemônica de fatos que se encadeiam. Estrofes corridas listando uma continuidade de atos. Hélio Galvão advertia: “mais abundante na Espanha que em Portugal, não é entretanto de encontro freqüente a relação. Mesmo no Brasil, ao que parece, seu número é reduzido, posto em confronto com a vastidão do gênero.” Seu modelo seria mais recente que dos romances típicos (após o séc.XVI).
- xácara: espécie de romance cuja característica marcante é o diálogo dos personagens, com pouca intervenção do narrador. “Canção narrativa”, nos dizeres de Cascudo.
- solau: “é mais plangente e mais lírico, lamenta mais do que reconta o fato, tem menos diálogo e mais carpir” (Almeida Garret, O Romanceiro. Apud Cascudo, Dicionário, verb.Xácara).
- gesta: romances que tem como tema central as narrativas heróicas, a saga guerreira em versos. Aventuras humanas.

                A coletânea de romances apresentada na parte 1 desta postagem foi toda coligida nas Vertentes de fontes populares. Revestem-se da maior importância dentro dos estudos de literatura oral porquanto conservadas unicamente por memória e embora em fragmentos, não perderam seu valor etnográfico. Algumas versões são bem conhecidas no Brasil, como o tangolomango, palavra que significa azar, fatalidade. Para alguns estudiosos o canto do tangolomango é uma parlenda e não um romance no sistema classificatório da folclorística.
                O Romance da Bela Infanta me foi cantado com o nome de “Conde Alemanha” mas Brasil afora surge com outras designações (Conde Amarante, ...). É um típico romance ibérico, palaciano. Encontra-se bem preservado sendo também um dos mais populares do país.
                O de Zezinho e Mariquinha é bem à moda nacional e foi amplamente difundido pela literatura de cordel.
                A história de Antoninho (ou Antonino) conta a narrativa de um escolar que matou o pavão do professor e temia voltar à escola pela represália do mestre. Vai forçado pelos pais. É assassinado pelo professor. O informante só conservava de memória os últimos versos.
                A narrativa de Santo Antônio com algumas perdas de rima e métrica pela falha da memória conta-nos o extraordinário fenômeno mediúnico da bilocação, acontecido com o glorioso santo: celebrando uma missa, teve um aviso sobrenatural de que seu pai, Martim de Bulhões, ia morrer inocente longe dali. Deixou o povo a rezar ave-marias, cobriu-se com o capuz de seu hábito e de mãos postas concentrou-se ao extremo. Seu corpo permaneceu ali diante dos fiéis mas a alma viajou até o local da execução do pai na forca. Lá se materializou e inocentou o pai, obrigando o defunto a erguer da cova e anunciar a inocência de Martim. Desnecessário frisar que semelhante tema impressiona fortemente o espírito popular interiorano.
                Duas gestas cangaceiras trazem as memórias quase perdidas ou aos pedaços de velhos bandidos sertanejos: o famigerado “Rio Preto”, um ladrão de donzelas, que as roubava no ato do matrimônio. Depois de violentá-las, as devolvia ao pai com desaforos. Colhi-a com o nome de “Décima do Rio Preto”, denunciando o formato original em estrofes de dez versos, bem mais recentes que as quadras. Este bandido era paraibano, dos oitocentos. Seu romance é bem conhecido. Já o tal “Dentinho de Ouro” teve seus feitos de banditismo apagados na poeira dos tempos. Muito menos conhecido, dele, Cascudo, na Flor de Romances Trágicos, apenas diz, laconicamente: “não conheço versos narrando as aventuras dos criminosos do sul do país, um Dente de Ouro, com o romance de Menotti Del Picchia (S.Paulo, 1923)”.
                Mas de quantos romances colhi, o mais relevante me parece o do Boi Lolô, uma típica poesia do Ciclo do Gado, criação nacional legítima, até prova em contrário, bem aos ares de outros elementos do romanceiro nacional, como o Boi Surubim e o Boi Espaço, que ouvi cantado nos bumba-meu-boi do nordeste brasileiro. A composição em quadras e o palavreado denunciam sua antiguidade. Narra um boi fantástico, gigantesco. Por fim é dividido numa partilha, cada parte do corpo com um destino mais jocoso. A partilha do boi é outro elemento típico do cancioneiro do bumba-meu-boi. Mas neste caso a colheita foi independente e sem canto, apenas narrada, ao contrário de todas as outras peças dessa coletânea, que foram cantadas.
                Rapidamente os romances estão desaparecendo do cenário nacional. Sua transmissão oral era facilitada no ermo do interior, sem atrativos da tecnologia para entreter. O entretenimento diário era ouvir as narrativas dos velhos, com seus contos e cantos, impressionando as mentes e fixando a cultura na memória. Antes de dormir, após o serviço diário, junto ao fogão à lenha, nos alpendres, nos ranchos de pouso, em torno “dos antigos” se formava uma roda de conversa. Não se tem mais paciência nem tempo para ouvir os idosos. O diálogo acabou. Seu saber rompeu-se na linha de transmissão... Dentro desta realidade o romance é uma poesia em ocaso.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura Oral no Brasil. 3.ed. BeloHorizonte: Itatiaia; São Paulo: USP, 1984. 435p.
CASCUDO, Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d]. 930p.
CASCUDO, Luís da Câmara. Flor de Romances Trágicos. 189p.
GALVÃO, Hélio. Romanceiro: pesquisa e estudo. Introdução e notas de Deífilo Gurgel. Natal: UFSJ, 1993. 100p.
GURGEL, Deífilo. Romanceiro de Alcaçus. Natal: UFRN/PROEX/Cooperativa Cultural Ed.Universitária, 1992. 65p.
GURGEL. Deífilo. Espaço e tempo do folclore potiguar. Natal: Pref.Mun., 1999. 235p.il.
TRIGUEIROS, Edilberto. A Língua e o Folclore da Bacia do São Francisco. Rio de Janeiro: Campanha de defesa do Folclore Brasileiro, 1977, 192p.il.

INFORMAÇÃO ORAL

(*) Informado por meu avô materno, Aloísio dos Santos (1924-2005), em 02/10/1998. Aprendido com sua mãe, Luíza dos Santos (1894-1986), São João del-Rei/MG. 

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