Santo Antônio, São João Batista e São Pedro tornaram-se muito populares de norte a sul, com festas praticamente contíguas e de tão sintonizadas, constituíram um ciclo festivo que chamamos junino.
Uma constante nestas festas é o costume de soltar fogos de artifício, alcançando em alguns locais uma prática ostensiva, entre espadas de fogo, rojões, busca-pés, traques, estalinhos, peido-alemão, espanta-coió, bombinhas, etc. No final do século XIX, Manoel Messias do Nascimento Brito obtinha da Câmara Municipal de São João del-Rei licença para instalar uma fábrica de foguetes, anunciava um velho jornal da cidade, em 1899. Outro jornal local, igualmente do acervo da Biblioteca Municipal Baptista Caetano d'Almeida, anunciava a venda de fogos de artifício para as festas de junho de 1925 no comércio desta urbe: “Para os festejos de Santo Antônio, São João e São Pedro grande variedade no BAZAR JAPONEZ. Rua Municipal, 5 – preços especiaes para quantidade.”
Esses mastros de junho muitas vezes vem enfeitados de frutas como vi em Passos, no sudoeste mineiro (1997), ou de flores do cipó de São João (Pyrostegia venusta, bignoniaceae), como notei em São João del-Rei e Bias Fortes (1999). No norte do Brasil são enfeitados com ramos, flores, frutos e alimentos. São sinais vestigiais de fitolatria, dizem uns pesquisadores, mas outros apostam apenas no simbolismo da pujança alimentar desses festejos que acontecem quando no campo, findas as colheitas, a lavoura descansa até o replantio[2].
Ainda Burton assim se expressou sobre as festas juninas de 1867:
O devocionário popular enxergou em Santo Antônio de Pádua o casamenteiro. O taumaturgo lisboeta é festejado a 13 de junho, antecedido por treze dias de rezas preparatórias (trezena). Seu festejo via de regra contém celebrações nas igrejas, procissões, levantamento de mastros, arraiais com fogueiras e brincadeiras, como o pau de sebo e o leitão ensebado, quadrilhas, comes e bebes típicos nas barraquinhas enfeitadas de folhas de coqueiro e pita, soltura de balões, bailes à sanfona. É o santo mais popular do cristianismo e sua oração mais conhecida é o responsório, conhecidíssimo no Brasil e Portugal, com alguns variantes, como esta são-joanense (1998):
Quem milagres
quer achar
|
Aplaca a fúria
do mar,
|
Contra os
males e o demônio,
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Tira os presos
da prisão,
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Busque logo a
Santo Antônio
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Os doentes
torna sãos
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Que aí há de
encontrar.
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E faz achar.
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Sem respeitar
qualquer anos
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Socorre a
qualquer idade,
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Abone esta
verdade
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Os cidadãos
paduanos.
Uma antiga procissão de Santo Antônio, em São Gonçalo do Amarante
(São João del-Rei/MG). Data e autor não identificados. Fotos gentilmente cedidas por João Bosco Alves |
Tamanho: 24 x 33cm. Impressão em papel-jornal.
Senhor São Pedro vem por último, protetor das viúvas, com festejo a 29 de junho. Sua festa ultimamente esmaeceu mas tem as mesmas linhas gerais. É em geral mais forte onde o mar ou os grandes rios tem importância econômica para as comunidades de pescadores, sendo então comuns as procissões marítimas ou fluviais com barcos enfeitados e as puxadas de mastro. São Pedro, o primeiro papa, é o guardião das chaves do céu. São muitos os contos populares que narram suas peripécias apostólicas, colocando-o como um turrão que faz trapalhadas ante Jesus. A crença indica a mãe de São Pedro como uma verdadeira megera.
É no dia de São Pedro que o homem do povo toma de um facão ou machadinha e dá piques (talhos) no tronco das mangueiras em sentido perpendicular ou diagonal como método que garante uma melhor produtividade. Naquele talho escorre parte da seiva, num mecanismo de sangria. Ainda é muito frequente esta prática em São João del-Rei e arredores.
No Maranhão e Amazônia as festas desses santos são animadas pela presença de numerosos grupos dançantes de bumba-meu-boi / boi-bumbá e os de tambor-de-crioula. No agreste e sertão acorrem os bacamarteiros, os ternos de zabumba. Pelo litoral são as rodas de coco, improviso ao som ritmado do ganzá; zambê, bambelô. Ainda em 1997 vi na praia de Caraúbas (Maxaranguape/RN), a capelinha de melão, espécie de pastorinhas do inverno, cantando não ao Menino Jesus mas a São João Batista.
É uma imagem idealizada, a bem da verdade, meio às avessas, porque, à primeira vista ridiculariza os valores rurais levando ao exagero o aspecto e o comportamento do rurícola. Assim os dançantes da quadrilha, a dança típica dessa quadra do ano, põe roupas com remendos avantajados, chapéus desfiados, calças esgarçadas, rabiscam no rosto cavanhaques e bigodes desgrenhados, cigarrões de palha são adereços indispensáveis. Botinas graúdas favorecem o andar trôpego. As mulheres não ficam para trás com seus vestidos de chita e outras estampas berrantes, fora da moda; tranças postiças, maquiagem exagerada e até por vezes um dente é borrado de preto simulando vasta cárie ou ausência de elemento dentário.
O local das danças é chamado arraial, ou melhor, “arraiá” e ganha nomes próprios: Arraiá do Arranca-unha, Arraiá do Pito Aceso, Arraiá da Vila Mendes, etc. É limpo e enfeitado. De terra batida, gramado ou cimentado, não importa, ganha arcos de bambu, carreiras de bandeirolas e rabiolas coloridas, balões multicores nos cantos, espigas de milho atadas às varas das barraquinhas de vender comida típica do período, sujeita a regionalismo: por aqui, canjica, quentão, broas, pamonhas, curau, pé de moleque, batata doce assada na brasa; no vasto nordeste onde estas festas alcançam uma dimensão extraordinária e economicamente importantíssima, geradora de fluxo turístico, surge dentre outros a indispensável canjica, o mungunzá, os bolos variados (preto, de milho, de carimã, da moça, etc.). E por aí vai. Nas áreas frias sulinas o pinhão é querido e o vinho.
A música se faz fartamente presente através da sanfona, ou seu irmão _ acordeon. Outros instrumentos acompanham e marcam: quadrilhas, xotes, baiões, xaxados, forrós, arrasta-pés ...
Na apresentação das quadrilhas um dos momentos mais aguardados é o casamento caipira (matuto, tabaréu), um entrecho muito apreciado já comentado na postagem sobre as quadrilhas. É bem visível que esta representação é um entremeio dramatizado que foi enxertado nas quadrilhas, não fazia parte do modelo francês original. É uma criação brasileira, e em tamanha sintonia com a quadrilha que com elas compôs um corpo perfeito. Ora, um antigo jornal[6] de São João del-Rei / MG, noticiou a um século esta representação teatral: “casamento do caipira (Nhô) é uma pantomina de successo”. Seria uma pista? O casamento hilário foi uma representação de palco que rodou Brasil afora, caída nas graças do povo que a manteve no contexto das quadrilhas? É só uma possibilidade, aguardando pesquisa.
Por estas alturas é interessante repensar o significado do universo rural colocado com jocosidade nas festas juninas. Aqueles remendos das roupas, os trejeitos dos dançantes, os babados dos vestidos e toda a irreverência do arraiais e seus figurantes, seria apenas mero deboche? O corre-corre urbano, a vida na selva de pedra não induz a horas tantas a saudade da paz campesina?
A figuração do mundo rural nestas festas e danças parece puramente alegórica. Por fim faz parte da própria identidade destas manifestações. O olhar mais focal pode ser assaz revelador.
Estas festas além de quebrarem a rotina como todas em geral o fazem, podem também ser um oportuno canal de manifestar os valores da ruralidade, ainda que sob a ótica urbana calcada pela ironia, mas isto pode ser um disfarce social. O roceiro ainda vive em cada um de nós? Caso positivo, para manifestá-lo precisamos de uma fantasia e um contexto?
Esta ambiguidade é que justifica o que disse atrás sobre “imagem idealizada às avessas”. Toda esta provocação (e não afirmação) visa apenas induzir pesquisas futuras neste ramo, que quiçá podem ser frutíferas.
- GAIO SOBRINHO, Antônio. São João del-Rei através de documentos. São João del-Rei: UFSJ: 2010. 260p. p.34 e 95.
- José Camilo da Silva (mastros)
* Sobre a antiguidade da Festa de São João Batista em São João del-Rei, uma referência significativa é esta, dada por GAIO SOBRINHO (2010): "1719 - REC 168 PG 03 - Por trinta e duas oitavas de ouro que deu ao Pe. Fr. Antônio Xavier de Santa Rosa pelo Sermão da festa de São João de que se lhe passou mandado em 14 de setembro." (p.34). Da mesma fonte do recibo anterior emitido pelos vereadores é este acórdão de vereança: "ACOR 09 PG 69: EM 24 DE JUNHO DE 1799 - Acordaram em ir à Matriz desta Vila digo em ir assistir à Missa conventual na Matriz desta Vila como foi obrigado por ser dia de São João Batista, como de fato foram." (p.95).
** Texto: Ulisses Passarelli
*** Fotografias: Ulisses Passarelli (cartaz e mangueira); Procissão de Santo Antônio: autor não identificado, gentilmente cedidas por João Bosco Alves, a quem este blog agradece.
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