Ulisses Passarelli
Foi numa
noite dos tempos de Natal, ou do comecinho de janeiro, com garoa manhosa e
intermitente. Na casa de vô Aloísio, eu brincava no chão da sala com meus brinquedos novos. Os adultos se ocupavam de seus assuntos esquisitos.
De repente o
chamado estridente de um apito impôs o toque de vários instrumentos musicais e
um grito firme chamou lá fora pelo dono da casa: “ôh...patrão! Olha só quem tá chegando!”
Na carreira
o menino de curioso foi ao portão e estancado pelo medo, se deparou com um
monte de homens de chapéus enfeitados de fitas e flores, tocando uma música diferente;
adiante uma bandeira colorida e ao seu lado uma figura extravagante, de roupa colorida
e folgada no corpo, máscara horrenda, chapéu de cone, porrete à mão, dançando
com trejeitos e fazendo sons estranhos: “
pruuuuuuu....” e gargalhando de tanto em tanto.
Num instante eu ainda menino observei e noutro corri pra dentro. Tomado de uma mistura indescritível de
pavor e curiosidade, me escondei num cômodo, de ouvido atento porém,
olhando pelas gretas da velhíssima porta de tábuas.
Os adultos
da casa se agitaram _ “vamos, gente, a
folia de Reis chegou! Abre lá...” _ pois o mestre já cantara da rua:
“ Vem abrir a
sua porta
E acender a
sua luz,
Hoje veio lhe
visitar
Os
mensageiros de Jesus.”
O avô tomou
a frente, virou a chave no cadeado ferrugento e trouxe atrás o portão de ferro
trabalhado de duas bandas. Com uma genuflexão recebeu a bandeira, passou-a a vó
Maria que a beijou e ofereceu a cada um dos presentes. Por essas alturas o
menino já olhava de esgueio da quina do alpendre. Os visitantes foram
convidados a entrar, sempre tocando e cantando, enquanto o mascarado dançava
sem parar (e só ele dançava) _ “ dá
licença nhônhô! Dá licença iaiá!”_ e foram até a sala.
Havia um
presépio armado, humilde e devoto, com bichinhos ao redor do Menino. “_Ôôô...que beleza! Olha só embaixador que
encontramos!” e assim ajoelhou-se e tirou a máscara diante daquela Belém
doméstica. Foi aí que o medo foi deixando o menino, seguro do lado humano do
bastião da Folia de Reis.
O mestre
cantou o nascimento de Jesus e a visita dos Reis Magos, verso a verso, respondido
pelos companheiros de folia numa voz fininha que ecoava pela sala cheia de
lamentosos “ais”, delongando as notas como num eco. A bandeira já estava sob a
cama de casa. Benção para a família.
“Que senhores são
aqueles
Que en’vém beirando o
mar?
É os três reis do
oriente
Que Jesus vão adorar!”
E pelos
versos seguiam as lições morais:
“Bem podia Deus nascer
Num lençol de ouro fino
Para dar exemplo ao
mundo
Nasceu pobre e
pequenino.”
Vencida a
praxe religiosa, o bastião ergueu-se, recolocou a máscara e retomou a dança.
O mestre voltou-se
ao povo da casa e pediu em versos a oferta para a caridade. Deram algumas notas
e foram agraciados com versos gentis que prometiam a paga celeste, até que,
umas moedas em reservado foram entregues na sacolinha do bandeireiro com a
recomendação de serem na intenção de um falecido. Respeitosamente ecoou...
“Essa oferta da saudade
Jesus Cristo anotou,
Uma jóia dessa casa
Os anjo pro céu
levou...”
O dono da
casa a meia voz chegou-se ao mestre e convidou-o a tomar um café. Completou-se
a harmonia das cordas e fole. “_ Viva
Santos Reis! _ Viva!” Deixaram os chapéus e instrumentos junto à poltrona.
Na cozinha uma breve oração para a benção da mesa. Descontração. Os já satisfeitos com as quitandas foram lá
pro alpendre pitar um cigarrinho de palha e entre baforadas surgiam comentários
sobre a afinação da folia ou o jeito de tocar caixa, ou velhas lembranças,
embaçadas como a fumaça do pito: “_ É sô,
tempo bão era da folia do sô Zé Franguinho, folião de peso. Aquele era entendido
nos fundamento!”
O mestre
apitou de volta lá na sala. A música retomou louvando a benesse:
“Lá no céu tem uma
estrela
Que ilumina São José
Ela há de iluminar,
Quem nos deu tão bom
café”.
No “devorteio”
dos instrumentos (interlúdio diriam os técnicos) o marungo de máscara peluda
gritou pedindo licença, se podia fazer um agrado, quer dizer, um brinquedinho.
_ “Pode sim, xará!”
_“Então lá vai, patrão!
Catuca moçada!”
E os instrumentos irromperam a
pururuquinha, um ritmo afogueado, que fez com que o palhaço dançasse sobre o
porrete que tinha posto no chão, em passos graciosos e cruzados, sem esbarrar
na madeira, muito compassado e habilidoso. Só parou a música quando tirou o
bastão do assoalho de tacos e o ergueu como sinal. Ofegante declamou com voz
cavernosa:
“ O meu pai era João
Caco,
Minha mãe era Caca Maria
Ajuntando caco com caco
Eu sô filho da
cacaria...”
E foi por
essa linha afora, narrando palhaçadas de memória e de improviso, provocativo,
porém respeitador. Todos se divertiam e até eu gostei, já sem medo,
senão mesmo cativado pela novidade. Recebi até balas do embornal do palhaço.
Por fim, o tal pediu o dele:
“ _ ô meu patrãozinho!
_
Que foi bastião!
_Miserenobe, miserenobe, pelo amor de
Deus me dá um cobre...”
Vovô deu-lhe
umas moedas de bom grado.
“_Deus lhe
pague padrinho!”
“_ô sinhá! Ô sinhá! Tô
vendo ali de banda um punhado de banana naquele balainho lá do canto, senhora
sabe como é que é... Tem lá em casa a minha dona Catirina, esganada que só, a
mulecada tá com fome... Coisa e tal, tal coisa...
_ Você não trabalha pra plantá não, pidão? (mas não era grosseria da vovó não,
que faz parte da brincadeira embromar o bastião e no mais dar algo à folia é
crença de fartura que retorna à casa).
_Oh, ah! Inté demais
patroa! Vô contá como é que é...
Catirina casô comigo
Que eu sô bom trabalhadô,
Com chuva num vô na
roça,
Com sol também num
vô...
_ Ah! Num tem jeito
com’ cê não... Toma essa penca.
_ Há,há! A criança
chora é pra mamá, eu choro é pra ganhá! Deus me pague, Deus me ajude...”
Cantou o
folião pedindo a bandeira, que a hora era vencida. Outra família esperava a
embaixada santa dos mensageiros de Jesus. Lá veio ela do quarto mais de dentro,
balanceando nos braços de Maria, cheirosa e agraciada, de cômodo em cômodo,
arrastando todos os males, expurgados por palavras inconfessáveis que os lábios
de vovó balbuciavam. Eu vi tudo. Gravei tudo na mente.
Todos
beijaram seu pano já desbotado de andanças jornadeiras. Marcas de baton das
fiéis maculavam o tecido. Raminhos secos de alecrim e manjericão ainda a
perfumavam. Muitos devotos já receberam a bandeira de joelhos ao chão e
enxugaram lágrimas em seu pano bento. Sobre a minha cabeça a bandeira foi passada, para dar juízo e boa sina.
Entre o “muito
obrigado” e o “viva” partiu na guia a bandeira em missão, qual a estrela do
oriente, servindo de luz aos foliões, que naquele momento eram como uma reencarnação
dos magos, a comitiva dos primeiros romeiros da cristandade.
Saudade
partiu. Saudade ficou. “Até para o ano,
se Deus quiser!”. Fui dormir. Ainda não acordei. Muitos janeiros
passaram mas continuo sonhando com o batido da caixa. É o mesmo compasso do meu
coração.
O dono da casa recebe a bandeira da Folia de Reis ...
é o saudoso sr. Aloísio dos Santos, o Vô Aloísio do texto, avô materno do autor.
Autor: Ulisses Passarelli, 1993.
*Obs.:
- esta foto não fazia parte da publicação original.
- o texto original não trasncorre na primeira pessoa: o "eu" era substituído por "Carlinhos", nome fictício.
- texto escrito em 2010, sobre lembraças da década de 1970.
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